Coleção de imagens mostra a beleza do rito conhecido como Tabuleiros de Omolu
A partir do mês de julho e com mais constância em agosto, é comum visualizar pelas ruas de Salvador mulheres e homens com roupas vinculadas à prática do candomblé levando apoiados na cabeça tabuleiros com adereços como as cabaças e palhas da costa. Em seu interior há pipoca. Conhecida como Sabejé ou Tabuleiro de Omolu, a prática está vinculada à devoção às divindades das religiões de matrizes africanas ligadas à cura, como Azoany, Kavungo, Omolu, Obaluaê, Sakpata, dentre outras. Em agosto também se celebra o católico São Roque, culto que dialoga com essas tradições. Na coleção do Cedoc A TARDE, 11 imagens contêm o registro desse rito que se renova por meio de novas reflexões e narrativas para vencer o ódio religioso que, em alguns momentos, ameaçou a continuidade de realização do rito.
“Obaluaê, Omolu, Azoani e Kavungo, ou simplesmente “o velho”, são nomes como são chamados ancestrais de cura que atravessaram o Atlântico com os africanos. Em agosto, mês em que os católicos reverenciam São Roque, estes reis africanos saem às ruas da cidade de Salvador num ritual secular cumprido pelas filhas de santo dos principais terreiros de candomblé da Bahia chamado de Sabejé”, explica Vilson Caetano de Sousa Júnior, babalorixá do Ilê Obá L’Okê, doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Autor de Orixás, santos e festas, dentre outros livros, Vilson Caetano explica que, durante o Sabejé, as divindades, também conhecidas como “médicos dos pobres”, vão curando quem está sofrendo dos males que afligem o corpo, especialmente doenças infecciosas e de pele. “Durante o Sabejé, Obaluaê é conduzido dentro de um tabuleiro coberto de pipocas. Neste tabuleiro também vão cabaças e outros utensílios onde é guardada e administrada a sua medicina”, completa.
Como gesto de partilha pode-se oferecer dinheiro em troca à sacerdotisa ou sacerdote que leva o tabuleiro. A troca de gentilezas é outra característica do culto a essas divindades. Tanto que elas dividem o seu alimento sagrado por meio do Olubajé, uma cerimônia em que um farto banquete é servido na parte externa dos terreiros. A comida é acondicionada em folhas que depois podem ser passadas no corpo para dissipar as energias que adoecem.
Informação
Na coleção do Centro de Documentação de A TARDE (Cedoc) foram catalogadas até agora 11 fotografias. Poucas foram utilizadas em reportagens. O texto relacionado a uma das imagens mostra a queixa de duas filhas de santo que tiveram roubado o que receberam como retorno da romaria com o tabuleiro. Diante do furto, elas se dirigiram a uma delegacia para registrar queixa.
O texto é de 1975 e, nesse período, o candomblé ainda era acompanhado por outra unidade do sistema de segurança pública: a Delegacia de Jogos e Costumes. Era este o departamento que fornecia uma licença para que os terreiros pudessem realizar suas festas, exigência só extinta com um decreto do governador Roberto Santos em 1976.
“Vestida de baiana, com um balaio revestido com seda e fitas multicoloridas sobre a cabeça, Zilda Barbosa de Souza transitava pela rua Carlos Gomes, pedindo esmola para a festa de São Roque – a realizar-se no dia 16 de agosto no Terreiro de Mãe Célia, localizado próximo à Barragem do Cobre, em Pirajá, quando foi furtada por um ladrão que arrebatou uma mochila, onde se encontrava a quantia de Cr$ 150,00 e fugiu”. (A TARDE, 4/7/1975, p. 12).
O autor do furto simulou que queria fazer uma doação e, aproveitando a atenção da moça que levava o tabuleiro na conferência do troco, pegou todo o valor arrecadado. Esta imagem e outras relacionadas foram analisadas em uma seção da minha dissertação intitulada O discurso da luz – Imagens das religiões afro-brasileiras no Arquivo do Jornal A TARDE, defendida em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Ufba (Pós Afro- -Ufba).
Em outros textos há referências a uma tentativa da Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro (Fenacab) de normatizar a prática tentando impor algumas restrições. Mais tarde predominaram queixas de que algumas pessoas eram atacadas durante o desfile pelas ruas da cidade por outras que se diziam evangélicas.
Tanto que, atualmente, o babalorixá do Ilê Oba L’Okê, Vilson Caetano, lidera o movimento que incentiva quem se sentir atingido durante a prática do rito a buscar o seu direito à liberdade de crença. “É importante preservar, ainda mais em tempos de pandemia, uma prática antiga, bela e que conforta. Dessa forma nós sugerimos que quem sofrer algum tipo de agressão por ódio religioso e preconceito procure o Ministério Público, dentre outras instituições, para registrar a ocorrência”, acrescenta.
O Ministério Público da Bahia disponibiliza o aplicativo “Mapeamento do Racismo” para o registro de denúncias. Ele pode ser baixado nas lojas do sistema de smartphone utilizado. A Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) também disponibiliza os canais do Centro de Referência Nelson Mandela para o registro de denúncias de intolerância religiosa e racismo. Mais informações podem ser acessadas no link: https://www.sepromi.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=21.
Beleza
A coleção de imagens mostra a beleza dos tabuleiros. As fotografias permitem observar a riqueza e cuidado nos detalhes. Eles estão decorados com fitas e até imagens, não apenas de São Roque, festejado em agosto, mas também São Lázaro, cuja festa, em Salvador, ocorre em janeiro.
Em algumas das imagens as sacerdotisas usam roupas enfeitadas com padronagens variadas. A força das estampas pode ser percebida mesmo com os registros em preto e branco. Mas há também as que estão com trajes em tons totalmente claros.
As imagens mostram detalhes como as contas e outros adereços característicos de quem passou pelos ritos de iniciação do candomblé. Em todas as fotografias as sacerdotisas estão com as suas cabeças cobertas pela peça conhecida como ojá.
Algumas das mulheres foram fotografadas com o rosto à mostra. Outras têm a sua identidade protegida. Para este fim às vezes são as pontas dos tecidos que formam o tabuleiro que descem pelas laterais e escondem o rosto de quem o está conduzindo. Em outras imagens, as sacerdotisas estão de costas para a câmera.
A coleção de imagens tem como um dos registros mais antigos o realizado em 1975 e relacionado ao furto do dinheiro que foi registrado na delegacia. Mas como há fotografias que não têm uma data específica, elas podem ser mais antigas, afinal as referências ao culto de São Lázaro em Salvador mostram uma igreja já construída em 1737.
Como Salvador viveu diversas situações de surtos e epidemias de doenças infecciosas é possível imaginar a importância que a devoção a essas divindades ganhou. Outro aspecto da beleza desse culto é a sua ligação à terra como elemento principal.
“A terra é a energia que quebra o período de dormência da semente. Esses deuses nos mantêm vivos. São os responsáveis pelo calor. Daí a relação com o sol. Daí a relação com a comida. Daí a reunião destes elementos todos dentro de um tabuleiro. Daí a pipoca chamada de doburu ser um dos seus maiores símbolos. O grão que foi aquecido e estourou e formou uma flor. A flor do velho. Assim como tenho dito pipoca e remédio. Ela acalma”, completa o babalorixá Vilson Caetano.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia