Contaminação por césio-137 causou tragédia social em Goiânia
Em 13 de setembro de 1987, cápsula contendo elemento radioativo e abandonada em clínica desativada foi aberta, causando quatro mortes

Um pó azul, brilhante, letal e radioativo mudou a rotina de Goiânia há 38 anos. Em 13 de setembro de 1987, uma cápsula contendo o elemento químico césio-137, encontrada em uma clínica médica abandonada, provocou aquele que ficou conhecido como o maior acidente nuclear fora de uma usina no mundo. Os 19,26 gramas da substância foram suficientes para matar quatro pessoas, sendo uma das vítimas uma criança de 6 anos, depois que centenas foram expostas aos seus efeitos.
Os impactos da chamada Tragédia de Goiânia repercutiram na saúde e na economia da capital do estado de Goiás. Os expostos ao produto tiveram, ainda, de conviver por muito tempo com o estigma social. Em pânico e sem entenderem os efeitos de uma possível exposição, moradores da cidade chegaram a apedrejar o carro funerário que levava o corpo de uma vítima. O vazamento do césio-137 também acendeu um alerta no Brasil para os perigos do descarte irresponsável de resíduos com potencial de contaminação.
O césio-137 é um material radioativo que, antigamente, era usado em fontes de radioterapia, mas que na atualidade já está em desuso. Até os anos 1980, o produto era muito encontrado em equipamentos médicos, o que já não ocorre. A substância emite radiação e pode contaminar, caso seja mal-usada ou descartada de forma incorreta no meio ambiente. E foi exatamente isso que aconteceu em Goiânia, em setembro de 1987. No dia 13 daquele mês, dois catadores de recicláveis, sem ter noção do risco, coletaram sucata nas ruínas do Instituto Goiano de Radioterapia, que havia sido desativado em 1985. No meio do material havia uma cápsula com o material.

"A antiga clínica foi invadida, a fonte foi levada para um ferro-velho e o césio-137 foi irradiado. A fonte então foi aberta, quatro pessoas morreram diretamente como fruto da contaminação, enquanto dezenas foram irradiadas. O material radioativo se espalhou por uma grande área, causando um impacto social e econômico devastador", afirma o pesquisador e professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Marcus Navarro.
Pó luminoso
Cinco dias depois que os catadores levaram a cápsula da clínica, em 18 de setembro de 1987, Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho, comprou o cilindro de metal de 98 quilos e o armazenou em seu depósito. À noite, ao passar pelo pátio, percebeu um intenso brilho azul vindo da peça, segundo conta o livro Césio 137 - A História do Acidente Radioativo em Goiânia, publicado pela Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, no ano passado.
"Atraído pela luminosidade, ele ficou encantado e levou a cápsula para casa. Nos dias seguintes, Devair distribuiu partículas de césio-137 para os parentes e amigos que o visitaram", diz trecho do livro. As tonturas, náuseas, crises de vômito e diarreia começaram logo nos primeiros dias, mas ninguém associou os sintomas ao pó azul luminoso.

Entre as visitas de Devair estava seu irmão, Ivo Alves Ferreira, que levou fragmentos do pó no bolso da calça para casa e espalhou em uma mesa. O fascínio foi imediato e a filha de Ivo, Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, brincou com a substância e depois jantou com as mãos ainda sujas com o brilho azul, ingerindo fragmentos radioativos sem saber.
Leide começou a vomitar logo depois. Ela foi a vítima mais afetada pela radioatividade em Goiânia e a primeira morte oficialmente confirmada pela exposição e contaminação pela substância. A segunda pessoa a morrer foi a esposa de Devair, Maria Gabriela Ferreira, 37 anos. Assim como a sobrinha de 6 anos, sua morte ocorreu em 23 de outubro de 1987.
Maria Gabriela, instigada por uma vizinha, também foi a primeira a suspeitar que o pó brilhante era o causador dos problemas de saúde repentinos em familiares e conhecidos. Ela recolheu a cápsula e, no dia 28 de setembro, levou até a sede da Vigilância Sanitária da cidade. A sacola com a cápsula ficou no pátio da instituição e, no dia 30, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) foi acionada, os técnicos identificaram a presença de material radioativo e começaram a isolar as áreas afetadas. Foram identificados e isolados sete focos principais na área metropolitana de Goiânia.
Ainda de acordo com o livro Césio 137 - A História do Acidente Radioativo em Goiânia, das 249 pessoas que apresentaram contaminação, 129 necessitaram de acompanhamento médico especial. "Dessas, 30 foram assistidas em semi-isolamento em albergues montados no Estádio Olímpico e na [então] Fundação do Bem-estar do Menor (Febem). Vinte pacientes foram encaminhados para cuidados no Hospital Geral de Goiânia. [Outras] 14 dessas pessoas evoluíram a um estado mais grave e foram transferidas para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro (RJ)", lista a publicação.
Exames em massa
Mais de 1.600 pessoas foram examinadas para detectar possível exposição ao césio-137; além de Leide e Maria Gabriela, outras duas vítimas morreram pelo contato direto com o elemento radioativo: Israel Baptista dos Santos, 22 anos, no dia 27 de outubro; e Admilson Alves de Souza, 18. no dia 28 do mesmo mês. Os dois eram funcionários do ferro-velho.
O impacto da tragédia não parou nos riscos à saúde, consequências sociais vieram junto com o medo da contaminação. Na época do acidente, explica o professor Marcus Navarro, a maioria dos estados suspenderam a importação de produtos que vinham de Goiânia.
"Aeroportos chegaram a tentar suspender voos vindo de Goiânia, porque a sensação que se passava era que todos da cidade estavam contaminados. A Agência Internacional de Energia Nuclear considera esse estigma social um dos grandes impactos da radiação. É a consequência para além do dano direto. No caso da menina, por exemplo, quando ela foi enterrada, a população foi para a rua apedrejar o carro funerário, dizendo que se ela fosse enterrada ali, iria contaminar todo o lençol freático", conta o professor.
Apesar dos ataques da população assustada, Leide e Maria Gabriela - e posteriormente as outras duas vítimas - foram enterradas na cidade, em túmulos blindados que seguiam os protocolos para acidentes radioativos. "Para evitar que a radiação ainda existente nos corpos seja transferida para o solo, o túmulo será revestido por paredes de concreto com uma espessura de 20 centímetros. Além disso, serão utilizadas urnas funerárias especiais, isoladas por chumbo e que pesam aproximadamente 650 quilos. (...) A possibilidade de cremação dos corpos também estava sendo examinada, mas essa alternativa não era a preferida dos técnicos pela eventual contaminação do meio ambiente pela fumaça", explicou a edição de A TARDE do dia 25 de outubro de 1987.
Os planos para a descontaminação da região afetada foram criados logo em seguida e contou com a participação do Grupamento Especial do Exército, que de acordo com outra edição de A TARDE, de 14 de outubro de 1987, se preparava para ajudar na descontaminação dos focos identificados, "realizando a retirada do material e seu acondicionamento em tambores especiais".

O processo teve início em 30 de setembro de 1987 e foi concluído em 21 de dezembro. A fonte principal do césio-137 foi isolada nas instalações da Vigilância Sanitária e depois foi enviada para um depósito provisório à 31,4 quilômetros de Goiânia.
Desabrigados do césio-137
Durante a descontaminação, 41 casas foram evacuadas e sete foram demolidas. "As pessoas que viviam em torno do ferro-velho tiveram suas casas derrubadas com tudo que tinham dentro, inclusive seus animais de estimação, as fotos de família e os próprios documentos. Elas não tiveram a oportunidade de voltar para suas casas e o local se tornou um terreno vazio. Isso é algo bastante impactante e muito ruim para os sobreviventes. Os danos sociais, psicológicos e econômicos que acontecem em uma tragédia como essa, muitas vezes, são mais devastadores do que os danos diretos da radiação", reflete o professor Marcus Navarro.
Sem casa, sem bens e vítimas da contaminação que deixaria sequelas para o resto da vida, ficou decidido que as pessoas afetadas pelo césio-137 em Goiânia receberiam pensão vitalícia. Mas o A TARDE de 27 de dezembro de 1996 destacou que a pensão já estava atrasada há uma década e, por isso, o Diário Oficial da União havia publicado no dia anterior uma "lei concedendo pensão especial às vítimas do acidente com o césio-137". Hoje, as vítimas são asseguradas por três leis que concedem a pensão, duas estaduais (nº 10.977/1989 e nº 14.226/2002), e uma federal (nº 9.425/1996). Os pagamentos mensais variam de R$998 até R$1.996.
Menor em escala apenas que a explosão nuclear de Chernobyl (Ucrânia), que havia acontecido menos de um ano antes, a tragédia com o césio-137 resultou em cinco pessoas consideradas culpadas. Os responsáveis pela clínica de onde a cápsula foi tirada, os médicos Orlando Teixeira, Criseide de Castro e Carlos Bezerrilos, foram sentenciados a três anos e dois meses em regime aberto, a mesma pena de Flamarion Gulart, físico que dava consultoria para o Instituto Goiano de Radioterapia. O dono do prédio onde ficava a clínica, o médico Amaurilo Monteiro de Oliveira foi condenado a um ano e dois meses. Os réus tiveram as penas comutadas para trabalhos comunitários e, logo depois, indultadas por decreto presidencial.
Protocolos de segurança
Salvador recebeu um carregamento de césio-137, cujo destino era o vizinho estado de Sergipe, pouco mais de um mês após a ocorrência em Goiânia. Em 30 de outubro de 1987, A TARDE noticiou o desembarque na capital de uma cápsula contendo o elemento químico, que estava aos cuidados da empresa Schlumbeiger, prestadora de serviços para a Petrobras na época. A caixa-forte contendo o material seria levada para Catu e, de lá, para Aracaju. As medidas de segurança foram detalhadas pela reportagem: “Em um caminhão fechado, devidamente sinalizado com o símbolo da radiação nuclear, a cápsula se encontra agora em uma caixa-forte, pintada por fora de amarelo e com placas indicando a presença de material radioativo, as paredes da caixa possuem seis polegadas de espessura de concreto, sendo forrada de chumbo e aço”.
Os protocolos de segurança da empresa que levaria a caixa-forte com césio-137 para Sergipe já faziam parte das medidas que o Brasil passou a adotar após a ocorrência em Goiânia. O professor Marcus Navarro alerta que apesar dos avanços, ainda falta letramento tecnológico no país. “Isso [a tragédia em Goiânia] é típico de um país que não tem iniciação tecnológica. Nós temos muitos países que essa iniciação tecnológica e o ensino da radioatividade se dá, inclusive, no ensino primário. Crianças de 6, 8 anos já conseguem identificar a diferença de irradiação para contaminação, já conseguem identificar o símbolo da radioatividade”, diz.
Para ele, o ensino da tecnologia é importante desde o ensino fundamental e médio e, “fundamentalmente, na universidade, porque muitos profissionais formados na área de saúde ainda concluem os cursos de graduação achando que tem fonte radioativa dentro de um equipamento de raio-x odontológico. A iniciação tecnológica é fundamental para que a gente use bem as tecnologias e de forma segura”, afirma, acrescentando que os modernos aparelhos usados na medicina diagnóstica não têm riscos de contaminar os pacientes.
O professor diz que é importante aprender com o passado, mas não olhar apenas para ele. No presente, os desafios maiores são com o radiodiagnóstico. “Hoje, o maior risco não está na radiação em si, mas no erro de diagnóstico. Com cerca de 75 mil novos casos de câncer de mama por ano no Brasil, uma falha de 10% pode significar 7.500 mortes evitáveis”, exemplifica.
“Usar monitores inadequados ou laudar exames pelo celular é mais perigoso do que a própria radiação. E isso se agrava com a telemedicina, onde muitas vezes nem sabemos onde o laudo foi feito” alerta.
*Com a colaboração de Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas
*Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE
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