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A Tarde Memória

Por Andreia Santana*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 26 de abril de 2025 às 7:20 h | Autor:

Crime ocorrido há quase 180 anos inspirou guia anti feminicídio

Assassinato de Júlia Fetal, em 1847, e outros crimes de ódio contra mulheres inspiram documento da ABI que completa um ano agora em abril

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Igreja da Graça é local onde está enterrada Júlia Fetal
Igreja da Graça é local onde está enterrada Júlia Fetal -

Dia sim e dia também a notícia, infelizmente, se repete: “por não aceitar o fim do relacionamento, homem mata ex-companheira”. E não é de hoje que os casos de crimes de ódio contra mulheres se acumulam na imprensa, a ponto de ser preciso ajudar os próprios jornalistas a entenderem as sutilezas da linguagem na cobertura desse tipo de caso. Foi assim que há um ano, no mês de abril, a Associação Baiana de Imprensa (ABI) decidiu dar sua contribuição e lançou o Protocolo Anti Feminicídio, um guia de boas práticas para profissionais de comunicação.

Também no mês de abril, mas do ano de 1847, Júlia Fetal, aos 20 anos, foi assassinada pelo ex-noivo João Estanislau Lisboa, porque ‘ele não aceitou o fim do compromisso’. O crime da Bala de Ouro, como o assassinato de Júlia Fetal ficou historicamente conhecido, serviu de inspiração para o protocolo da ABI, junto com outros feminicídios emblemáticos e mais recentes ocorridos na Bahia, como o da pastora e cantora gospel Sara Freitas; e no Brasil, as mortes da jornalista Sandra Gomid, em São Paulo, e da socialite Ângela Diniz, no Rio de Janeiro, todos cometidos - ou demandados - por homens com que as vítimas se relacionavam.

“Esse protocolo surgiu de uma inquietação das mulheres que são diretoras da ABI. Fomos provocadas pela colega jornalista Suzana Alice, que tem um trabalho muito grande sobre o caso de Júlia Fetal. Foi o início desse processo em que começamos a trabalhar em cima do conteúdo, a partir desse trabalho de Suzana e da ideia que ela nos trouxe”, explica a jornalista Suely Temporal, vice-presidente da ABI.

O protocolo serve tanto para quem está começando no jornalismo quanto para quem já é veterano e precisa readequar a cobertura aos novos tempos, em que já se sabe, por exemplo, que feminicídio não pode ser chamado, como antigamente, de ‘crime passional’. “O relato dos crimes cometidos contra a mulher, de uma maneira geral, punem novamente a vítima. Passional vem da palavra paixão. E a paixão não pode ser motivo para se matar uma pessoa. Então, por isso que se modificou o nome de crime passional para feminicídio”, acrescenta Suely.

O machismo estrutural da sociedade é o grande motivador dos crimes de ódio contra mulheres. E o feminicídio, que é uma qualificação do homicídio motivado pelo gênero da vítima, é um crime de ódio. “O homem se acha no direito de ter a posse sobre a mulher. Que aquela mulher é uma coisa dele, não é uma pessoa”, acrescenta a vice-presidente da ABI.

Como a mulher é desumanizada e destituída de direitos por essa visão machista, o autor do crime, geralmente um ex-companheiro ou mesmo o atual, alegando ciúmes ou algum comportamento que ele julga inadequado da vítima, sente-se no direito de destruí-la, seja quando ela se recusa a continuar a relação, muitas vezes por já sofrer violência doméstica física ou psicológica; ou quando desafia o machismo que tenta estabelecer um código de conduta feminino.

Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma e de Clara dos Anjos, dois clássicos da literatura brasileira, já apontava a atitude machista dos ex que matavam mulheres após o rompimento da relação. Ele escreveu um artigo em 1915, ou seja, há 110 anos, criticando os feminicidas: “Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto os tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão”, diz o escritor, em trecho da crônica Não as matem, publicada originalmente em um jornal carioca e, em 1953, na coletânea Vida Urbana.

É importante ressaltar que não foi Lima Barreto quem cunhou o termo feminicídio, foi uma mulher, ou melhor, duas mulheres. Segundo artigo na revista acadêmica do Ministério Público do Ceará, em 1976, a socióloga sul-africana Diana Russel utilizou o termo ‘femicídio’ (femicide, no original em inglês), pela primeira vez, para definir o assassinato de mulheres. Depois, a antropóloga mexicana Marcela Lagarde traduziu o termo para o espanhol ‘feminicídio’, mesma palavra usada em português.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece os dois termos, femicídio e feminicídio, como sinônimos. No Brasil, a tipificação do homicídio de mulheres motivado por ódio de gênero foi reconhecida em 2015, com a Lei Federal 13.104/15, chamada também de Lei do Feminicídio.

Bala de chumbo

O assassinato de Júlia Fetal, em 20 de abril de 1847, traz exatamente as características apontadas por Lima Barreto na sua crônica de 1915 e nos feminicídios ocorridos na Bahia e no restante do país desde então, que motivaram as diretoras da ABI a criar o protocolo. Não é que feminicídios não existiam antes da morte de Júlia, mas o caso da ‘Bala de Ouro’ é tão lembrado porque foi o primeiro amplamente coberto pela imprensa baiana e não só no período, mas por décadas, como mostram reportagens de A TARDE dos anos 1930 e 1940. A partir do caso de Júlia, outros assassinatos de mulheres nas mesmas circunstâncias ao longo do tempo sempre acabavam levando a imprensa a recordar o caso histórico do século XIX.

Em 1947, o historiador Pedro Calmon publicou o livro A Bala de Ouro, recontando em formato ficcional o caso de Júlia Fetal. O feminicídio também foi contado em uma novela, Espelho da Vida, escrita por Elizabeth Jhin. Mais de 50 anos depois do lançamento de A Bala de Ouro, o romance foi reeditado, em 1998. Tanto o romance de Calmon quanto a novela apareceram nas páginas de A TARDE.

Capa de A Bala de Ouro, romance de Pedro Calmon sobre o caso Júlia Fetal lançado em 1947, no centenário do crime
Capa de A Bala de Ouro, romance de Pedro Calmon sobre o caso Júlia Fetal lançado em 1947, no centenário do crime | Foto: Cedoc A TARDE / Reprodução

O jornal, inclusive, tentou desmistificar uma lenda em torno da morte de Júlia Fetal, a de que ela teria sido morta por uma bala de ouro. Na edição de 15 de dezembro de 1970, A TARDE anunciou que, na época, a bala que matou Júlia estava guardada no museu do Instituto Feminino da Bahia e, logo na abertura da reportagem, informa: “Após muito tempo de discussões, a dúvida finalmente se desfez, definitivamente: a bala com que João Estanislau da Silva Lisboa assassinou Júlia Fetal, às 16 horas do dia 20 de Abril de 1847, não é de ouro. Pelo contrário, é de chumbo mesmo".

A descoberta do material do qual a bala foi feita não diminui o peso do crime, mas ajuda a tirar a ‘aura romântica’ de um assassinato injustificável. Com ou sem bala de ouro, Júlia foi morta porque um homem não aceitava que ela era uma pessoa e não uma coisa, uma propriedade que ele podia dispor como bem quisesse, inclusive matar. O crime foi premeditado, planejado, como a maioria dos feminicídios são, e o assassino, condenado a 14 anos de prisão, chegou a ter permissão da justiça para dar aulas dentro do presídio, já que era professor e até preparou, de dentro da cadeia, filhos da elite baiana oitocentista, para exames finais.

Romantização

Não há registro de como era Júlia Fetal, cujo corpo está enterrado na Igreja da Graça, mas há um retrato de seu assassino. Na edição de 8 de agosto de 1998, sobre o relançamento de A Bala de Ouro, o suplemento A TARDE Cultural republicou o prefácio escrito por Pedro Calmon para seu romance de 1947. A página traz a reprodução de um retrato de João Estanislau Lisboa e é nesse texto que Calmon conta que o assassino de Júlia dava aulas mesmo preso.

Maria Jose Fetal, mãe de Júlia Fetal
Maria Jose Fetal, mãe de Júlia Fetal | Foto: Cedoc A TARDE / Reprodução
Pedro Calmon na juventude. O historiador baiano foi o autor do romance sobre o caso Júlia Fetal
Pedro Calmon na juventude. O historiador baiano foi o autor do romance sobre o caso Júlia Fetal | Foto: Cedoc A TARDE / Reprodução

O prefácio e o romance dos anos 1940 ajudou a criar o mito da bala de ouro, mas também a imortalizar a história de Júlia, conhecida até os dias de hoje. Mas, infelizmente, o protagonismo acabou ficando não com a vítima, mas com o criminoso. Pedro Calmon fala do arrependimento de João Estanislau, do prestígio que ele tinha na cidade e entre seus alunos, da comoção em torno da morte dele, em 1878. Jorge Amado também fala do crime cometido por “um professor doido de amor” em termos que hoje em dia não seriam mais adequados ou aceitos.

Capa de A Bala de Ouro, romance de Pedro Calmon sobre o caso Júlia Fetal lançado em 1947, no centenário do crime
Capa de A Bala de Ouro, romance de Pedro Calmon sobre o caso Júlia Fetal lançado em 1947, no centenário do crime | Foto: Cedoc A TARDE / Reprodução

É justamente para evitar a romantização, comum na época da morte de Júlia e que ainda ecoa no senso comum quando se fala em feminicídios, que as diretoras da ABI criaram o guia com orientações para quem lida com as informações desses crimes.

“O caso da ‘Bala de Ouro’ foi relatado quase que romanceado pelos jornais da época [século XIX]. Você não deve romantizar a história de um crime. Um crime é sempre algo que deve ser encarado como uma coisa negativa, nunca como uma coisa romanceada ou como uma coisa fantasiosa. Um crime real não pode nunca ser romantizado”, enfatiza Suely Temporal.

O Protocolo Anti Feminicídio da ABI existe em versão impressa e também pode ser obtido por download no site da entidade (abi.org.br). O documento, diz a vice-presidente, está acessível a qualquer profissional de imprensa, estudante de comunicação ou pessoas que têm interesse em entender como se faz uma reportagem sobre um tema difícil e doloroso como o feminicídio.

“Muitas vezes, a mulher é novamente vitimizada ao se relatar a sua morte. Por exemplo, ‘ela morreu porque o marido tinha ciúmes ou ela morreu porque traiu o marido’. Uma traição pode ser motivo para o final de um relacionamento, mas nunca para o assassinato de uma pessoa”, finaliza Suely Temporal.

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Reportagem sobre a novela Espelho da Vida que reconta o crime da Bala de Ouro, ocorrido em Salvador em abril de 1847 3167.10kb
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Texto de Cid Teixeira sobre A Bala de Ouro para o A TARDE Cultural 503.53kb
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A TARDE Cultural republicou o prefácio de Pedro Calmon de 1946, para seu romance A Bala de Ouro, sobre o Caso Júlia Fetal 595.81kb

RODAPÉS

*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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