Crônica sobre o corneteiro encantado pelas matas de Pirajá | A TARDE
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Crônica sobre o corneteiro encantado pelas matas de Pirajá

Publicado sexta-feira, 02 de julho de 2021 às 06:00 h | Autor: Cleidiana Ramos
Não se encontram dados biográficos sobre Luís Lopes e há quem afirme que é um personagem imaginário | Ilustração - Bruno Azis - Ag. A TARDE
Não se encontram dados biográficos sobre Luís Lopes e há quem afirme que é um personagem imaginário | Ilustração - Bruno Azis - Ag. A TARDE -

*Uma história de ficção baseada nas poucas informações defendidas como reais sobre um personagem impressionante. Antes de ler, confira o vídeo.

O cabo-corneteiro Luís Lopes encaixa-se naquela definição de quem mirou no que viu e acertou o que não viu. Fez do que seria um erro o estopim para a mudança de rumos de uma batalha perdida na Guerra da Independência da Bahia. Infelizmente este é um daqueles feitos controversos entre os muitos que cercam as narrativas sobre esse episódio. Mas o que é uma boa história fiel à tradição da boa oralidade baiana se não deixa brechas para o fuxico, o disse me disse? O povo é sábio no que diz e no que cala. Ah, se é.

Não se encontram dados biográficos sobre Luís Lopes e há quem afirme que é um personagem imaginário. Mas há informação sobre ele nas fontes consideradas oficiais sobre a guerra como no texto de Ladislau dos Santos Titara, autor do poema épico Paraguassu, aceita por Inácio Accioli e Brás do Amaral.

Não se sabe onde Luís Lopes nasceu e qual o seu destino depois do fim da guerra. Dá, portanto, margem para imaginarmos esse personagem mais ou menos próximo do que deveria ser o perfil da maioria da Legião Baiana do Exército Pacificador, comandado em um primeiro momento pelo general Pedro Labatut: soldados regulares e voluntários, dentre os quais brancos pobres, negros libertos e escravizados. De acordo com o professor Luís Henrique Dias Tavares, no seu clássico livro História da Bahia, Labatut, em carta para o ministro José Bonifácio, disse que nenhum filho das elites baianas havia se apresentado como voluntário para a guerra.

Imagino Lopes como um sertanejo, inserido na guerra no meio dos que seriam conhecidos mais tarde como Encourados de Pedrão. Filho de escravo alforriado e uma descendente de indígenas, vivia com os pais de “favor” em uma fazenda de criar gado. Já na infância teve que aprender o ofício do pai: vaqueiro.

Quando começou o alistamento de voluntários para combater na guerra, Lopes foi um dos rapazes que o dono da fazenda entregou como sua contribuição para defender o “augusto príncipe”. Ao se despedir dos pais não tinha a menor ideia do que era uma guerra. Foi para a batalha porque mandaram, como era quase tudo na sua vida até então.

No ofício de vaqueiro, Lopes teve que aprender o “aboio”, a forma cantada que os vaqueiros ainda hoje utilizam para reunir o rebanho. Todos sempre elogiavam a harmonia com que sua voz ecoava caatinga adentro, assim como acontecia com o pai.

Sem jeito para armas, o que gostava na sua agora vida de soldado era os momentos em que ficavam cantando em torno de fogueiras no acampamento em Pirajá. Logo, um dos comandantes viu no rapaz alguém com potencial para aprender os toques que serviriam como comunicação durante as batalhas.

Lopes foi uma revelação. Aprendeu tudo rapidinho, mas já estava convencido que nunca ia precisar usar. Era tudo uma pasmaceira só. Exercícios, gritos dos oficiais, marcha, corridas, notícias de um ataque em Cachoeira, uma confusão entre tropas aqui e ali, mas nada da grande batalha que se anunciava.

Erro ou magia?

Até que no dia 8 de novembro de 1822, eis que o acampamento acordou em polvorosa e o seu comandante gritava para que ele fizesse soar os toques de alerta. Todo mundo corria de um canto para o outro. Os portugueses estavam bem perto do acampamento em Pirajá.

Foram horas terríveis. Para Lopes foi como se o tempo não passasse. Viu dezenas de soldados encharcados em sangue. As cenas, que se atrapalhavam no que conseguia captar enquanto tentava sobreviver, misturavam fogo, barulho ensurdecedor, fumaça e muita confusão. Em muitos momentos, Lopes já não conseguia nem distinguir quem era seu aliado e quem era o inimigo.

À medida que o tempo passava, percebeu que a batalha estava realmente perdida. A quantidade de portugueses parecia aumentar cada vez mais. A suspeita virou certeza, quando o comandante Barros Falcão, ofegante, gritou para o superior de Lopes: dispersar, dispersar, dispersar.

Lopes esperou o sinal. Assim que o comandante acenou, dois dos tocadores de tambor caíram quase aos seus pés. Em seguida, Lopes sentiu ainda o vento ameaçador da lâmina de um português antes que se jogasse em uma trincheira.

Assustado, ainda conseguiu ouvir o grito do comandante: dispersar, dispersar, dispersar. O problema é que agora, percebeu em pânico, não conseguia se lembrar do toque. Havia treinado tanto os de vitória, que tinha sérias dúvidas sobre o que tirar da corneta para sentenciar rendição.

O pior de tudo é que não tinha tempo. Como é que ele ia explicar naquela confusão- e mais um corpo caiu do seu lado- que estava confuso? De repente, veio na memória de Lopes o toque que ele mais gostava. A sedução era a melodia- intensa, marcial, agitada- e que parecia os gritos de guerra das histórias que seus pais contavam dos antepassados envolvidos em batalhas para ser homens livres.

Lopes, então, soltou a melodia. Por um segundo, a cena que assistia pareceu ficar congelada. Viu o comandante Barros Falcão assumir uma expressão de total surpresa. Em seguida, percebeu algo inacreditável: os portugueses, antes tão determinados, pareciam confusos. Ao grito de “lá vem reforço”, houve um tropel deles correndo para além das matas de Pirajá.

Aliança de encantados

O primeiro grupo a sair em perseguição foram os soldados- vaqueiros, grupo em que Lopes foi alistado para a guerra. Logo, os batalhões do lado brasileiro já não estavam empunhando espingardas ou sabres, mas o que achassem pelo caminho.

Lopes viu um soldado chamado “Caboclo” correndo atrás de uma dezena de portugueses brandindo uma cascavel completamente enrolada em seu braço esquerdo e uma jaracuçu, totalmente negra e mortal, no outro.

A noite já estava chegando e Pirajá vibrava com os gritos de vitória das tropas do Exército Pacificador em meio aos lamentos pelos mortos, mas que agora eram celebrados como heróis. Só agora, Lopes conseguiu encontrar os olhos do seu comandante. Seria punido por ter desobedecido?

Que nada. Só muito mais tarde, a história do seu erro que virou vitória seria contada. Naquele momento, os heróis eram Barros Falcão, o general Labatut e outros engalanados oficiais. Lopes fazia parte apenas do grupo de meninos mandados para o sacrifício na briga dos grandes.

Mas esses não eram pensamentos para um corneteiro. Não. Ainda mais naquele dia. Lopes agora só queria celebrar uma vitória. Pegou a corneta e ensaiou um toque parecido com uma cantiga do deus que seu pai dizia ser o dono da sua cabeça, misturado ao louvor a um encantado que sua mãe contava ouvir seus país indígenas relatarem que era o dono das matas. Lopes só sabia que aquilo foi coisa deles, envolvidos em uma aliança que a cabeça humana não alcançava.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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