Defesa do acesso à informação e à liberdade de imprensa marcam história de A TARDE
Jornal se articulou nos anos 1930 ao movimento de jornalistas que resultou na criação da Associação Baiana de Imprensa
A informação é um bem público. Partindo dessa afirmação, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em conferência geral realizada há 10 anos, instituiu o Dia Internacional para o Acesso Universal à Informação, em 28 de setembro. Todo ano, a entidade organiza um evento alusivo à data. Em 2024, nos dias 01 e 02 de outubro, integrantes de governos e da sociedade civil organizada de diversos países vão se encontrar em Gana, na África, para debater a implementação de políticas que garantam esse direito fundamental.
Muito antes da criação de um dia oficial ou das reuniões anuais da Unesco existirem, jornalistas já se mobilizavam para revelar os fatos de interesse social à população. Na Bahia, a criação da Associação Baiana de Imprensa (ABI), em 1930, contou com a articulação da imprensa da época e com uma forte campanha de adesão encabeçada por A TARDE e outros veículos.
Em edição de 18 de agosto de 1930, o jornal noticiou a reunião ocorrida no dia anterior, na sede da "Associação Typographica Bahiana", que emprestou seu espaço para o encontro. "Está dado o primeiro passo para a fundação da Associação Bahiana de Imprensa", diz a chamada da reportagem que, em seguida, enumera quem foram os participantes e lista as 62 assinaturas conseguidas até ali e mais as adesões obtidas durante o evento, totalizando 73 jornalistas e empresários de comunicação. Até representantes de jornais médicos, jurídicos e de educação do período estavam entre os signatários, como Aristides Novis, da Gazeta Médica da Bahia.
A ABI fez 94 anos recentemente e A TARDE fará 112 em 15 de outubro próximo. As histórias da entidade representativa e do periódico estão entrelaçadas e, ao mesmo tempo que contam sobre o desenvolvimento da imprensa baiana, também representam a resistência do jornalismo às muitas mudanças sociais das últimas décadas. Com o advento da internet, das redes sociais, da figura dos influenciadores digitais e das fake news, os desafios para o jornalismo ético e responsável aumentaram.
O atual presidente da ABI, Ernesto Marques, destaca que o exercício do jornalismo sempre vai gerar reações, seja na política, com as pressões exercidas pelas esferas de poder; ou na economia, com as grandes empresas também esticando a corda. Esse tensionamento, no entanto, faz parte do cotidiano de veículos e profissionais de imprensa. Por isso, os pontos de atenção, para ele, estão em outros lugares:
“O que a gente tem visto ultimamente, e isso é extremamente preocupante, é uma dificuldade adicional por conta dessa onda que genericamente podemos chamar de polarização da política. Não gosto muito desse termo, prefiro chamar de sectarização da política, uma sectarização, inclusive, pautada por muita ignorância, por muita opinião sem base consistente no aspecto intelectual, teórico. Está muito fácil odiar. E a partir do ódio, é muito fácil não tolerar. E a partir do ódio e da intolerância vem a violência quase como uma consequência inevitável”, analisa.
Alvo do negacionismo
Ernesto Marques pontua que o fato da onda negacionista ter escolhido a imprensa como alvo é outro nó para os profissionais da área desatarem. “A imprensa passou a ser uma instituição alvo, assim como a ciência e as instituições do chamado estado democrático também foram fortemente atingidas. Nós estamos sendo atacados diariamente, cotidianamente, no quesito credibilidade, na própria legitimidade da imprensa como uma instância que no passado fazia de fato a mediação entre os governos, as empresas, as instituições e nós, a sociedade”, acrescenta.
Com o advento das redes sociais e o aumento na circulação de informação nem sempre checada com apuro técnico, esse papel de mediação da imprensa nunca foi tão necessário, defende o presidente da ABI.
“Hoje, com o advento das redes sociais, cada vez mais essa mediação vai se tornando menos essencial. Necessária ainda é, mas vai se tornando menos essencial porque a informação circula de alguma maneira. A qualidade da informação que circula é que são outros quinhentos. E é isso que nos diferencia dos influenciadores. A informação que é propagada por um influenciador pode até ser verdadeira, mas ela não é uma notícia, ela não foi trabalhada tecnicamente como notícia e isso é o que nós jornalistas aprendemos no processo de formação e no cotidiano.”
Censura, violência e fake news
Em 23 de agosto de 1947, pouco menos de vinte anos após a reunião que criou a ABI, A TARDE noticiou uma cobrança da entidade de classe à administração pública do período. A ABI queria explicações sobre o “constrangimento sofrido pelos confrades da Rádio Sociedade da Bahia com a visita de um censor da polícia, indagando das obrigações a que se acham sujeitas as emissoras locais”, dizia a nota no jornal.
Naquela época, o Brasil vivia os primeiros anos da chamada Quarta República, após os longos anos do Estado Novo. O mundo e o país estavam ainda sob os efeitos do fim da II Guerra Mundial. No Brasil, o período foi marcado por grandes crises políticas e a imprensa estava sempre na mira dos censores.
Avançando algumas décadas na história e ainda sob a vigência da Ditadura Militar, A TARDE abria espaço, em 15 de agosto de 1980, às vésperas do aniversário de 50 anos da ABI, para a cobertura do Seminário de Técnica e Atualização Jornalística, cujo tema foi a liberdade de imprensa.
Em 1999, o foco da cobertura eram as ameaças de violência sofridas por jornalistas durante a prática profissional. Dessa vez, a edição do dia 27 de abril daquele ano destacava o II Seminário Violência contra a Liberdade de Imprensa na Bahia. O evento, organizado pela ABI e pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado da Bahia (Sinjorba), teve participação de entidades como a OAB e o Ministério Público do Estado e cobrava das autoridades soluções para os crimes cometidos contra repórteres investigativos, principalmente no interior do estado.
A violência física ainda é uma ameaça aos jornalistas, mas as formas de agressão simbólica, principalmente com a popularização das chamadas fake news (notícias falsas) na internet ou com gente não qualificada atuando na área, é outro desafio para, nas palavras de Ernesto, “afirmar o jornalismo e as técnicas do bom jornalismo como o caminho mais adequado para que se tenha uma notícia não somente tecnicamente perfeita, mas sobretudo com uma garantia de qualidade ética”. Ele defende que o registro profissional é o que reconhece essa qualidade ética do serviço prestado pelos jornalistas, assim como acontece com os registros para médicos ou advogados.
Essa semana, em seu perfil no Instagram, o Sinjorba bateu na mesma tecla, ao advertir que “nem todo cidadão (ou cidadã) que aparece de celular em punho querendo entrevista é, necessariamente, jornalista”. Mais adiante, a entidade acrescenta: “Se você for abordado por alguém que se diz jornalista, antes de conceder entrevista, confira se ele ou ela é mesmo o profissional que diz ser.”
Ernesto Marques complementa que cada momento histórico traz desafios diferentes para a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e o acesso à informação. E que o obstáculo colocado atualmente é compreender como se dá a comunicação em tempos de internet e de que maneira o jornalismo se insere nesse contexto.
“Não acho que o jornalismo seja prejudicado ou ameaçado por isso, pelo contrário. Eu acho que agora, mais do que em toda a história anterior, é importante e é possível demarcar, principalmente pelo comparativo da qualidade, entre uma informação trabalhada tecnicamente por um jornalista e uma informação que é repassada aleatoriamente por qualquer outra pessoa com má ou boa intenção.”
Informação é cidadania
Em maio de 2012, a Lei de Acesso à Informação (LAI 0 12.527/2011) foi regulamentada no Brasil. Ela criou mecanismos que permitem a qualquer pessoa receber informações públicas dos órgãos e entidades dos três poderes nas instâncias federal, estadual e municipal. Da entrada em vigor da LAI há 12 anos até aqui, muito ainda precisa ser feito para que, de fato, as pessoas tenham acesso às informações de interesse público.
Letramento digital é essencial, defende Ernesto Marques. Para ele, sem saber navegar no mundo tecnológico, que é onde a informação circula cada vez mais, fica mais difícil para as pessoas exercerem o direito fundamental de acompanhar o que governantes, empresas e órgãos de representação fazem.
“O direito à informação está no mesmo nível do direito à habitação, à água, à alimentação, ao trabalho, à moradia. Hoje, é impossível exercer a cidadania se você não tiver um mínimo de condição de acesso à tecnologia. Então é urgente que haja políticas públicas nessa linha do letramento digital, senão a gente vai ter uma subcidadania”, afirma.
Para o presidente da ABI, não há maneira melhor do que a educação para combater as notícias falsas e os outros perigos que circulam na internet. Sem vilanizar a rede, o que ele propõe é que existam políticas públicas de cibereducação.
“Você diz para uma pessoa: ‘olha, não acredite em tudo que vê pelo WhatsApp, consulte mais de uma fonte’. Consulte mais de uma fonte? Isso pode significar uma expressão em grego para algumas pessoas que não têm acesso cotidiano à internet ou que não conseguem ou não têm por hábito visitar os portais de notícias. Precisamos apostar muito na preparação desde a infância, mas não apenas na infância. Os jovens, os idosos também, para que a gente saiba tirar o melhor proveito da internet e saiba se defender da difusão da notícia falsa, que não é o único risco. Há outras coisas que são perniciosas na internet”, adverte.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE