Devoção a Santo Antônio ganhou contornos lúdicos no Brasil
Patrono dos casamentos tem uma das festas mais divertidas do período junino no Nordeste
Fernando de Bulhões y Taveira de Azevedo nasceu em 1195. Impressionado ao ver a chegada dos corpos de cinco franciscanos que foram martirizados no Marrocos resolveu ingressar na ordem fundada por São Francisco de Assis. Foi com o seu nome religioso, Antônio, e por feitos, especialmente na área de oratória sacra, que se tornou santo com uma devoção que cresceu e se fortaleceu não apenas em Portugal, mas em sua mais importante colônia, o Brasil. A Santo Antônio não apenas se dedicam grandes festas, como acontece em Salvador, nas igrejas de Santo Antônio da Barra, de Nossa Senhora da Piedade e na de Santo Antônio Além do Carmo, como foram estabelecidas conexões com outras culturas religiosas. Para forçá-lo a cumprir pedidos, especialmente os no campo do amor, se tomam ações que não são comuns no culto a outros santos. A devoção a Santo Antônio foi tema constante em reportagens de A TARDE:
“As "trezenas" de Santo Antônio. padrinho espiritual dos noivos, o santo casamenteiro por excellencia das mulheres, constituiam uma das notas características ' dos nossos costumes herdados de avós Pôrtuguezes, de que o thaumaturgo festejado é o padroeiro patrício e por isso mesmo melhor, muito embora o rifão de que “santo de casa não faz milagres”... Este anno, porém, até a paisagem friorenta de outras eras, nas primeiras chuvas impertinentes do inverno dir-se-á que foi modificada nessa contradicção de noites consteladas e primaveris. Mas ainda há muito prato de cangica boa, muito milho assado, muito licor de genipapo e muitos festejos na cidade, dentro de casa e nas ruas por apego de alguns a tradição inviolável”. (A TARDE, 13/06/1925, Capa).
Santo Antônio morreu no dia 13 de junho, em Arcela, nas proximidades de Pádua e, por isso, às vezes é chamado “de Pádua”, o que causa confusão em relação à sua nacionalidade. Mas os portugueses sempre fizeram questão de enfatizar a sua origem como cidadão de Portugal, inclusive o envolvendo em suas disputas por território a partir das Grandes Navegações.
Por conta disso sua biografia acabou recheada das atribuições por feitos e milagres militares a favor das causas portuguesas. Luis da Câmara Cascudo listou várias dessas ocasiões no verbete sobre o santo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro:
“Justificando-se sua intervenção quando de lutas armadas, na Bahia, Santo Antônio foi capitão na Fortaleza da Barra, em 1705, alferes no bairro da Mouraria em 1800, com 120$ anuais, sargento-mor em 1810 e tenente-coronel em 1814, com o soldo anual de 720$, pago até 1907. Em São Paulo foi coronel. Capitão em Goiás. Soldado na Paraíba e Espírito Santo. Tenente-coronel no Rio de Janeiro em 1814. Capitão de cavalaria de Vila Rica (Ouro Preto, Minas Gerais). Tenente no Recife, com 34$400 anuais”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luis da Câmara Cascudo, p.61).
Não é difícil entender por que na Bahia, no encontro entre as religiões afro-brasileiras e catolicismo houve a sua associação com as características guerreiras de Nkosi e Ogum, nos candomblés de nação angola e nagô, respectivamente. Essa aproximação enriqueceu ainda mais a culinária das celebrações a Santo Antônio, pois além dos pratos à base de milho- canjica, lelê, mugunzá, dentre outros-, mais frequentemente em Salvador, é servida a feijoada, que é considerada uma comida de Ogum.
Milagres
Na tradição católica, há muita ênfase para a habilidade de Santo Antônio como um orador sacro e profundo conhecedor das escrituras sagradas. Uma das histórias associadas a essa habilidade é de como, ao ser ignorado em uma de suas pregações, se dirigiu a uma praia e os peixes prontamente vieram à tona para ouvi-lo.
Santo Antônio também é considerado autor do milagre da bilocação, ou seja, de estar em dois lugares ao mesmo tempo, prodígio que realizou para livrar o pai da acusação de um crime. Ele também é considerado um santo especialista em fazer encontrar coisas perdidas e dar providências em muitas demandas classificadas como difíceis.
Como franciscano, Santo Antônio é imediatamente associado à sensibilidade com os pobres. Assim os seus devotos são chamados a praticar a caridade e muitos pagam as promessas feitas ao santo distribuindo pães aos pobres. Em Salvador, não apenas durante a festa do santo, mas nas terças-feiras em que se reza para ele ou lhes são dedicadas missas é muito comum ocorrer a distribuição de pães.
Há também, durante a missa, especialmente as das festas em 13 de junho, a distribuição de pães abençoados pelos sacerdotes:
“O padre Pedro Moretta, da Igreja de Santo António da Barra, informou, ontem, que, após a missa principal da festa, hoje pela manhã, será dada a bênção aos fiéis e distribuídos pãezinhos bentos, que geralmente são guardados pelos devotos do santo, como símbolo de fartura durante o ano seguinte. Na Igreja de São Francisco, está previsto o comparecimento de muitos pagadores de promessas”. (A TARDE, 13/06/1980, p.2).
Os pães abençoados costumam ser ainda muito procurados na Bahia. Em localidades do interior do Estado, eles são acondicionados na vasilha onde se guarda a farinha de mandioca. Acredita-se que o Pão de Santo Antônio, como também é chamado, vai garantir a fartura e jamais vai faltar alimento nessa casa onde ele é guardado dessa forma. A cada ano, o pão é renovado.
Patrono do Amor
Mas é na condição de padroeiro de quem deseja uma companhia que Santo Antônio ganhou maior prestígio entre o povo. São muitas as chamadas simpatias onde se tomam licenças com o santo que não tem comparação com outro.
Imagens de Santo Antônio costumam ser colocadas com o rosto virado para a parede; em outros casos ele é até deixado na parte externa da casa para tomar chuva. Outra simpatia, hoje mais difícil de ser executada por conta da mudança nas imagens que agora são esculpidas em uma só peça, é roubar o menino que ele carrega nos braços, uma representação de Jesus ainda criança.
Essas ações são para conseguir o sonhado casamento que em alguns casos já se tem a certeza de que é possível ser apenas o primeiro empurrãozinho na batalha pelo, digamos, par dos chinelos, afinal uma quadrinha muito popular dedicada a Santo Antônio diz o seguinte:
“Meu Santo Antônio querido, Eu vos peço, por quem sois/Dai-me o primeiro marido, que o outro arranjo depois”.
Em um dos seus muitos registros sobre a festa do santo, ao longo do tempo, A TARDE listou uma série de simpatias para garantir a vitória na primeira fase da conquista afinal a data oficial da festa acontece logo após o Dia dos Namorados no Brasil:
“Pegue uma imagem de Santo Antônio e a amarre de cabeça para baixo. Só a tire do castigo quando o pretendente surgir”. (A TARDE, 09/06/2002, p.22).
Para quem já conquistou o amor também não custa pedir a ajuda do santo para manter os laços:
“Pegue fotografias sua e da pessoa amada, de corpo inteiro, passe cola nas faces das duas e coloque-as uma de frente para a outra, enrolando um retrós de linha vermelha, em cruz, até o final. Cole-as, em seguida, no verso de um quadro com a imagem de Santo Antônio, colocando-o na parede do seu quarto, acima da cabeceira de sua cama. Toda manhã, quando se levantar, e à noite quando for se deitar, olhe para os olhos do santo e mentalize seu amor e você, unidos para sempre pela influência de Santo Antônio”. (A TARDE, 09/06/2002,p.22).
Associar à fé ao lúdico e à resistência de tantas culturas religiosas é mais um dos milagres que Antônio de Lisboa, mas também de Pádua, conseguiu criar. Uma devoção que foi originada por imposição de um processo colonizador acabou ganhando contornos impostos pela forte contribuição de outras culturas, especialmente a africana e a indígena. Isso fez do culto ao santo algo bem brasileiro e que conquista admiração para além da religião.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia