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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 23 de abril de 2022 às 11:54 h | Autor:

Devoção a São Jorge é formada por diversidade de elementos

Santo foi associado no Brasil a Ogum e Oxóssi, divindades de religiões afro-brasileiras

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Culto a São Jorge surgido no cristianismo oriental espalhou-se por várias regiões do mundo, preservando tradições
Culto a São Jorge surgido no cristianismo oriental espalhou-se por várias regiões do mundo, preservando tradições -

Hoje é dia de festa para São Jorge. Em Salvador, a paróquia onde ele é padroeiro fica no Jardim Cruzeiro, mas há também uma Devoção em sua homenagem atualmente sediada na Igreja de São Francisco, no Centro Histórico da cidade.

Mesmo com a sua memória tornada facultativa pela reforma do Calendário Romano Geral, aprovada pelo decreto intitulado Do Mistério da Páscoa, publicado pelo papa Paulo VI em 24 de fevereiro de 1969, o culto a São Jorge continua forte em todo o Brasil, especialmente na Bahia e no Rio de Janeiro.

Uma pesquisa em edições de A TARDE aponta para os diversos elementos que a devoção ao santo ganhou na Bahia: reconhecimento como solidário à pobreza, ao doar todos os seus bens quando se converteu ao cristianismo; associado a Ogum, com festa que marcava o início do calendário de celebrações da União de Umbanda da Bahia, fundada em 1974; homenageado pelos terreiros de candomblé da cidade, mas aproximado a Oxóssi, o senhor da caça; e patrono católico do Jardim Cruzeiro.

A primeira referência que encontrei nas edições de A TARDE a São Jorge é de 1921. Na publicação há uma pequena biografia do santo, apresentado como um integrante do exército do Império Romano e que ao se converter ao cristianismo doou seus bens aos pobres. Por bravura e dedicação tornou-se mestre de campo e comandante de uma companhia no governo de Deocleciano, que é considerado um dos maiores perseguidores do cristianismo. Quando o imperador oficializou que os cristãos deveriam ser exterminados, Jorge se declarou como tal e, por isso, foi condenado à morte após ser brutalmente torturado.

Primeiro registro em A TARDE é de 1921
Primeiro registro em A TARDE é de 1921 | Foto: Arquivo A TARDE

“Foi carregado de ferros e mettido em uma enxovia; depois preso a uma roda armada de lâminas de ferro, que a cada volta lhe levavam pedaços de carne. A sua alegria horrível durante este supplicio, admirou os algozes, mas estes ficaram ainda mais maravilhados, quando julgando-o morto, o acharam inteiramente são. Este milagre converteu muitos pagãos e também exasperou o tyrano que mandou empregar contra Jorge todo o número de tormentos. Morreu martyr no anno 290 e o seu culto é um dos mais populares”. (A TARDE, 23/4/1921, p4).

O famoso episódio em que São Jorge derrota um dragão não é mencionado nessa referência, como também na que foi publicada na edição de A TARDE nove anos depois. Mas há outra informação importante sobre o santo: ele é apontado como o padroeiro dos escoteiros, associação que estava dando os primeiros passos na capital baiana naquele período.

“Aproveitando o dia consagrado a S. Jorge, patrono do escotismo mundial, realizou-se hoje pela manhã no parque Duque de Caxias uma parada dos escoteiros das escolas públicas da Capital. Posto o escoteirismo esteja entre nós muito no início vem elle sendo animado pelo sr. Claudionor Conceição que é hoje o Instrunctor das escolas primarias, como delegado da Directoria do Ensino” (A TARDE, 23/4/1930, p2).

Já na edição de 23 de abril de 1960, um artigo assinado pelo frei Eliseu Vieira Guedes, da Ordem dos Carmelitas, trouxe informações que não costumam circular frequentemente sobre São Jorge. No texto ele fez uma análise etimológica do nome “Jorge”, a partir do grego, apontando que ele pode ser traduzido como “cultivador da terra”. Essa referência é interessante para, talvez, melhor compreender sua associação com divindades africanas como Ogum e Oxóssi para além da sua característica de guerreiros. Ogum é também entendido por muitas culturas como o patrono da agricultura. Já Oxóssi é um caçador, e por isso também ligado à condição de quem é o provedor da sua comunidade e que a alimenta o que também é um ofício ligado à terra.

O texto assinado pelo frei Eliseu Vieira Guedes aponta para um emaranhado de narrativas com referências historiográficas misturadas a alegorias e que apresentam até duas origens para o mártir: uma na Palestina e outra na Dalmácia, denominação antiga da hoje Croácia. A Capadócia, origem mais difundida para São Jorge, não está nessa referência apresentada pelo frei que se apoia nos escritos de um estudioso denominado Alfati.

“O palestinense da antiga Luth (Lod, Lud, Lido, Lida) naquele tempo Dióspolis, era de família nobre, porém pagã. Converteu-se ao cristianismo tornando-se ardente defensor de Cristo. Morreu segundo Croisset, em 290 da era cristã. O dalmantino, oriundo de Salona onde foi martirizado a 23 de abril de 303. Para os dalmácios, São Jorge não somente é um herói religioso, senão também um herói civil: nas canções eslavas ele liberta uma jovem, com sua lança, das garras de um dragão”. (A TARDE, 23/4/1960, p2).

Este trecho do artigo do frei carmelita traz, portanto, a referência que se tornaria a mais conhecida sobre São Jorge, inclusive o centro da sua iconografia, que o mostra montado em um cavalo e dominando um dragão com o uso de uma lança. O livro Um Santo para cada dia, de Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, apresenta a versão de que um dragão saía de um lago para aterrorizar uma cidade. Para afastá-lo lhe eram oferecidas jovens escolhidas por um sorteio. Em uma dessas ocasiões foi a filha do rei que tirou a sorte para ser a próxima vítima do sacrifício. Foi quando surgiu, vindo da Capadócia, São Jorge.

“O valente guerreiro desembainhou a espada e, em pouco tempo, reduziu o terrível dragão a manso cordeirinho, que a jovem levou preso numa corrente, até dentro dos muros da cidade, entre a admiração de todos os habitantes que se fechavam em casa cheios de pavor. O misterioso cavaleiro lhes assegurou, gritando-lhes que viera, em nome de Cristo, para vencer o dragão. Eles deviam converter-se e ser batizados”. (Um Santo para cada dia, de Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, páginas 115-116).

A TARDE publicou nuances da devoção
A TARDE publicou nuances da devoção | Foto: Arquivo A TARDE

No artigo do frei Eliseu Vieira Guedes há a dimensão de como o culto a São Jorge surgido no cristianismo oriental espalhou-se rapidamente por várias regiões do mundo preservando as tradições do campo a ponto de o santo ter absorvido denominações como São Jorge Verde e São Jorge Branco:

“Do nascente bizantino, onde ele é por excelência: o Grande Mártir, elevou-se a devoção ao prodigioso santo, espalhando-se e envolvendo todo Oriente e Ocidente. Na Igreja Grega as comemorações em honra deste luminar do cristianismo são feitas desde o quinto século, muito embora já fôsse festejado entre o povo. Santa Clotilde, mulher de Clodoveu, rei da Franca, erigindo capelas em louvor deste Insigne mártir, contribuiu bastante para o desenvolvimento do culto deste herói da fé. Os russos, além de prestar-lhe homenagens, mandaram elevar em seus escudos a imagem do mártir. Entre os eslavos da Carínzia, a festa assume aspecto folclórico de um rito para obter a chuva. Daí ser ele chamado: São Jorge Verde. Os georgianos cristãos celebravam as comemorações a 14 de agosto, tempo em que se festejava o deus Luno, pelo que o defensor da fé é nomeado: São Jorge Branco”. (A TARDE, 23/4/1960, p2).

Em Salvador, o encontro com a herança de civilizações africanas deu a São Jorge novas faces. Na edição de 23 de abril de 1976 o destaque foi para a festa organizada pela União de Umbanda da Bahia, presidida pelo babalorixá Mario de Xangô e fundada dois anos antes.

A programação consistiu em alvorada e uma solenidade com início marcado para as 18h30 quando Ogum iria incorporar, pela primeira vez, em uma médium, segundo informação de Pai Mário de Xangô.

Em 29 de agosto de 1976 foi fundada a Paróquia de São Jorge, localizada no Jardim Cruzeiro. Naquele ano já estava em vigor a reforma que tornou a festa do santo facultativa, mas ainda assim a sua devoção teve força para tanto. A partir desse período, a cobertura de A TARDE passou a incluir as informações sobre a festa para São Jorge realizada pela umbanda, mas também pelo candomblé e pelo catolicismo.

“Isso só mostra o quanto a devoção a este santo é especial e muito forte”, analisa o padre Lázaro Muniz, reitor do Santuário do Coração Eucarístico de Jesus, sediado na Igreja de São Raimundo e capelão da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos às Portas do Carmo.

Em 2012, quando era pároco da Catedral Basílica, o padre Lázaro ajudou um grupo a criar a Devoção de São Jorge que no ano seguinte realizou uma festa para o santo. A Devoção, após um período sediada na Catedral Basílica, mudou-se para a Igreja de São Pedro dos Clérigos e depois para a Igreja de São Francisco onde está atualmente.

“A Devoção acabou arrefecendo um pouco, mas ela está ganhando novo fôlego na base da boa vontade dos devotos. A oficialização canônica já está tramitando na Arquidiocese e acredito que logo virá a organização civil”, afirma o padre. Hoje haverá missa às 9 horas promovida pela Devoção de São Jorge na Igreja de São Francisco.

Na Paróquia de São Jorge haverá missas às 8 e às 13 horas celebradas pelo pároco local, padre Clóvis Santos. A missa festiva será às 19 horas presidida por dom Valter Magno, bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador.

Mártir, domador de dragões e dono do culto de forte presença em várias partes do mundo, São Jorge teve ainda protagonismo nas procissões de Corpus Christi do período colonial repetindo um costume português. Vem daí para alguns historiadores do campo das festas a razão de três terreiros antigos sediados na capital baiana- Casa Branca do Engenho Velho da Federação, Gantois e Ilê Axé Opô Afonjá- iniciarem o seu calendário anual no dia dessa celebração católica com homenagens a Oxóssi. Mas essa é uma história que vou tentar contar em outra ocasião.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

**A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, e Cedoc A TARDE

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