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A Tarde Memória

Por Priscila Dórea*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sexta-feira, 26 de dezembro de 2025 às 21:09 h • Atualizada em 26/12/2025 às 21:20 | Autor:

Dique do Tororó integrou rota fluvial que ligava centro e periferia de Salvador

Manancial foi represado com uso de mão de obra indígena. Mito de que o lago foi construído pelos holandeses é a lenda urbana mais antiga da capital

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Barco de passageiros para travessia do Dique do Tororó nos anos 1960
Barco de passageiros para travessia do Dique do Tororó nos anos 1960 -

O Dique do Tororó, espelho d'água situado no coração de Salvador, é cartão postal, espaço de lazer e turismo com seus pedalinhos e embarcações, território de rituais de matriz africana e testemunha das transformações urbanas ocorridas na capital desde o século XVII. Recentemente, o Dique registrou a mortalidade de dezenas de peixes que compõem a sua fauna aquática e as autoridades ambientais do Estado investigam a ocorrência para garantir a saúde do ecossistema do lago. O caminho dessas águas, no entanto, é antigo e tem ligações com a navegação fluvial na cidade. No último A TARDE Memória de 2025, contamos essa história pontuada por fatos e mitos.

O sistema de diques de Salvador se inicia com a invasão holandesa, em maio de 1624. Para protegerem o território invadido, os holandeses ampliaram a defesa da cidade a partir do represamento do antigo rio das Tripas, que nasce atrás do Mosteiro de São Bento, em uma das encostas da Barroquinha. As águas do rio das Tripas percorriam a extensão do que hoje é a Avenida Barros Reis e seguiam até encontrar o rio Camarajipe, na região do Dois Leões.

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"Essas informações foram reveladas em 2022, a partir da descoberta do mapa feito pelo engenheiro responsável pela obra do sistema de diques, o capitão Joos Coecke; além de pesquisas realizadas em Haia, na Holanda, onde foram encontrados documentos assinados pelo próprio Joos Coecke, que o confirmava como autor do projeto do dique junto com os soldados da Companhia das Índias Ocidentais", explica o doutor em história Pablo Magalhães, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

O dique de Joos Coecke foi o primeiro de Salvador e, naquele momento, século XVII, considerado a maior obra hidráulica do Brasil e da América portuguesa. No centro de cidade, o dique, explica o professor Pablo, dividia as duas cumeadas da cidade antiga, ou seja, a região do Pelourinho e o território que hoje é ocupado pelo bairro da Saúde.

"Esse não é o Dique do Tororó, mas sim o que chamamos de Dique Velho, que foi sendo aterrado e canalizando, deixando de existir. No século XVIII, inclusive, já se reclamava da questão de saúde pública, pois boa parte dele havia se tornado águas pantanosas", acrescenta o professor.

O Dique do Tororó, por sua vez, começou a ser formado em 1642, através da exploração de indígenas como mão de obra. O lago foi construído a partir de um sistema de represamento das águas do rio Lucaia. O Dique Novo, também chamado Dique Grande, tinha também função defensiva, como explica a dissertação “O papel das fortificações no espaço urbano de Salvador”, do mestre em geografia Marco Antônio dos Santos.

Embarcação no Dique do Tororó nos anos 1980
Embarcação no Dique do Tororó nos anos 1980 | Foto: Antônio Queirós / Cedoc A TARDE / 22.02.1988

No texto, ele explica que a configuração do Dique Grande limitava o acesso à cidade por possíveis inimigos em diferentes pontos. “A concepção de João Coutinho [engenheiro] foi balizada aos moldes da Escola Holandesa de fortificar, ou seja, a lógica do represamento d’água", escreve.

Lenda urbana

Talvez, seja justamente pelo uso de modelo da Escola Holandesa que muita gente acha até hoje que o Dique do Tororó foi uma obra executada pelos holandeses durante a ocupação de Salvador. E essa não é a única confusão em torno das origens do espelho d´água. Entre histórias e causos, há quem diga também, por exemplo, que o Dique tem assoalho feito de azulejos.

“A ideia de que o Dique do Tororó foi feito pelos holandeses não é verdade, mas essa confusão ainda perdura no imaginário da população. É uma lenda urbana de Salvador, talvez a mais antiga. E não se sustenta. Na verdade, o Dique dos Holandeses era o dique primitivo, que ficava no centro da cidade. O Dique do Tororó é o Dique Novo, o segundo dique construído em Salvador. Em algum momento do século XVIII o Dique Velho e o Dique Novo se tocavam. Isso dá para ser percebido, por exemplo, na planta da cidade de Salvador feita pelo Brigadeiro João Massé", explica Pablo Magalhães.

Entorno do Dique do Tororó no começo dos anos 1980
Entorno do Dique do Tororó no começo dos anos 1980 | Foto: Cedoc A TARDE / 05.07.1982

Ainda que o Dique do Tororó tenha sido criado para defesa, o espelho d'água, que era maior do que o atual, não demorou a ser usado para a navegação. Com o tempo, conta o professor Pablo, uma série de embarcações transitavam pelo lago transportando pessoas. “Nunca houve uma empresa que cuidasse da navegação no Dique, mas pequenos barcos de pescadores que transitavam por todo o espelho d´água. Na época, toda aquela região onde está a Fonte Nova era parte do sistema do Dique. Temos muitos registros iconográficos, como fotografias e cartões postais do século XIX e início do século XX, onde conseguimos ver as embarcações, pescadores e até o tipo de peixe que se produzia ali", enumera Pablo Magalhães.

Cidade das águas

Mapas do século XIX, acrescenta o professor da UFOB, indicam uma conexão fluvial ampla em Salvador, mostrando que era possível navegar desde o centro até a periferia da cidade e que o rio Lucaia, no Rio Vermelho, e o Dique do Tororó faziam parte dessa rede. Com a urbanização do entorno do Dique e a diminuição do espelho d´água, no entanto, o número de barqueiros que levavam as pessoas de um lado a outro reduziu e a sua função original foi se modificando de meio de transporte para passeios turísticos.

Em 7 de setembro de 1998, A TARDE destacou as expectativas dos dois últimos barqueiros remanescentes do Dique do Tororó: Vítor Menezes Dórea e Ivan Alves de Almeida, "(...) únicos remanescentes de um grupo que fazia navegar uma frota de 54 barcos nos bons tempos, coisa de 36 anos atrás”. Com as obras de urbanização que transformaram o entorno do Dique em área de lazer, os barqueiros, segundo o texto do jornal, viram o faturamento voltar a crescer a partir da oferta de passeios. Hoje, essa atividade turística é regulamentada e parte dos barqueiros atua como permissionários da prefeitura de Salvador, transportando tanto moradores quanto turistas.

Entorno do Dique do Tororó nos anos 1960
Entorno do Dique do Tororó nos anos 1960 | Foto: Cedoc A TARDE / 22.02.1967

Os primeiros passos para a urbanização que deixou o Dique do Tororó muito parecido com o que conhecemos hoje foram dados ainda na década de 1980. Em 18 de junho de 1989, A TARDE informou que o Dique poderia vir a ter uma "área de animação turística". A ideia partiu da Câmara Municipal e na ocasião, o vereador Jânio Natal explicou ao jornal que fez uma indicação ao prefeito. “Poderiam ser construídos parques aquáticos, ciclovias, colocação de pedalinhos nas águas tranquilas e seguras, até mesmo um restaurante aquático, desde que bem-projetado e integrado no ambiente", indicava o texto.

O projeto "Parque do Tororó" havia sido feito pelo engenheiro Robério Bezerra, então coordenador de saneamento básico da então Secretaria da Infraestrutura Municipal. Outra reportagem em A TARDE, de 12 de agosto de 1991, aproveitou que a prefeitura havia anunciado uma limpeza no Dique para questionar os motivos do poder municipal não tirar o projeto do papel.

"A prefeitura está efetuando a limpeza do Dique do Tororó. Parabéns. Mas essa medida é paliativa porque uma intervenção mais drástica deveria se registrar na área, que pode virar um parque de 400 mil metros quadrados, dando opção de lazer barata para a população (...) o projeto do engenheiro Robério Bezerra que, inclusive, foi apresentado ao então prefeito Renan Baleeiro e chegou a ter pronta a sua maquete", afirmava o texto.

Lago ritual

As obras e a despoluição do Dique do Tororó foram iniciadas alguns anos depois,. Uma das fases do processo era o peixamento das águas, que teve início em 1997 e foi divulgado por A TARDE em 7 de janeiro daquele ano. Em 1998, as esculturas dos orixás foram instaladas. O Dique, chamado de Bacia de Oxum por representantes das religiões de matriz africana, é considerado um local sagrado e de culto ancestral.

"Para os adeptos do Candomblé desta cidade, o Dique do Tororó é uma das moradas de Oxum, orixá da água doce, lagos e fontes (...) Apesar dele não ser tão abrangente quanto o Parque São Bartolomeu [em Plataforma] e, não conter todos os elementos essenciais da natureza (mata e flora extensa, cachoeiras) aos rituais do candomblé, contendo apenas a bacia, que para o povo-de-santo é a Bacia de Oxum, não diminui sua importância enquanto espaço sacralizado", afirma a mestra em estudos étnicos e africanos Cláudia Marques Dourado, no texto da dissertação “Orixás do Dique do Tororó: simbologia e problemática cultural da população afrodescendente baiana”.

Embarcação no Dique do Tororó nos anos 1970
Embarcação no Dique do Tororó nos anos 1970 | Foto: Cedoc A TARDE / 09.04.1979

As oito estátuas que ficam na água - Oxalá, Iemanjá, Oxum, Ogum, Oxóssi, Xangô, Iansã e Nanã – formam uma roda, enquanto outros quatro orixás, (Oxumaré, Ossain, Logun-Edé e Ewá) ficam nas margens. Todas foram criadas por Tatti Moreno. "Segundo o artista plástico, as esculturas foram escolhidas com orientações de Mãe Cleuza do terreiro Ilê Iyá Omi Asé Iyamasé, o Terreiro do Gantois, na Federação. Inclusive, no número e na escolha dos orixás. Inicialmente, o artista tinha sido orientado a realizar oito, para serem colocados na água, os outros quatro, na terra, foram feitos a pedido de uma comissão da FENACAB [Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro], dois anos após o início da confecção das esculturas", complementa Cláudia na dissertação.

O professor Pablo Magalhães aponta que ao longo do século XVIII, por ser um pouco afastado do perímetro urbano, o Dique do Tororó passa a ser buscado por membros das religiões de matriz africana para realizar rituais. "A água é importante para essas religiões, então o espaço do Dique começa a ser também esse lugar de congregação para a espiritualidade. Então vamos ter a fundação do Terreiro da Casa Branca nas redondezas e a partir dele vários outros terreiros que veem no Dique um espaço sagrado, algo que se mantém até o presente. Era uma localização importante também, pois naquele momento essas religiões eram muito perseguidas, criando ali um espaço essencial para fé e religiosidade de matriz africana", pontua.

Em seus primórdios, o Dique do Tororó era próximo ao centro da cidade que ainda se expandia, mas distante do olhar das autoridades, o que o tornou recanto para encontros de natureza clandestina e revolucionária, como os momentos que antecederam a Conjuração Baiana de 1798. “Por ser mais afastado do perímetro urbano da cidade, os rebeldes baianos se articulavam na região do Dique, o que aparece na própria documentação dos autos da Conjuração Baiana, com listas e mais listas de militares, homens negros, pardos, libertos e escravizados que se reuniam ao longo do Dique para sair dos olhos das autoridades e conseguir se articular politicamente para tentar retirar o governo português do comando da capitania da Bahia", explica o professor.

A TARDE, na edição de 4 de maio de 1998, contou parte da história do manancial. Nesse texto há a reprodução de um relato do príncipe Ferdinando Emiliano Maximiliano José, da Áustria, que visitou a Bahia em 1860 e, no ano seguinte, publicou, em Viena, suas impressões sobre a visita: "Deixando a cidade, a natureza ardente e exuberante acolheu-nos em seus braços verdes, mangueiras lançavam sua copa fresca por sobre o caminho íngreme, touceiras de bambu invadiam a rua, mato expesso, trepadeiras e etéreas formavam grupos pitorescos e, assim, a natureza, numa decoração cada vez mais rica, levou-nos à joia da Bahia, o Dique", escreve príncipe.

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*Com a colaboração de Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas

*Material elaborado com base no acervo do CEDOC A TARDE

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