Elite dominava o Carnaval nos salões e se mantinha afastada na rua
Classes dominantes demarcavam seu lugar em áreas fechadas e no espaço público

Uma fotografia do acervo do Centro de Documentação A TARDE (Cedoc A TARDE) com data de 1937 mostra quatro homens fantasiados como os reis do baralho. Em outra imagem, que, infelizmente não tem a informação sobre o período, quatro mulheres aparecem com longos vestidos e outros adereços que indicam uma escolha por representação também da monarquia. Já a reprodução de um anúncio incentiva a compra de sapatos da marca Clark para aproveitar o Carnaval. Essas informações apontam para uma característica marcante no Carnaval de Salvador de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX: a festa tinha o protagonismo dos representantes das elites locais.
A comemoração era centralizada sobretudo nos clubes sociais. Só esse princípio já era por si só excludente. “O que se chamava de Carnaval no século XIX eram os bailes de salão. O que acontecia na rua era chamado de entrudo que foi uma prática que veio de Portugal e consistia em fabricar limões de cera ou laranja de cera preenchê-los com líquidos para se jogar nas pessoas. Isso prevaleceu durante muitos anos”, diz o jornalista, publicitário e escritor Nelson Cadena.
A partir de 1884 tentou-se acabar oficialmente com o entrudo. Segundo Cadena esse foi um passo importante para a oficialização do Carnaval, mas o espírito do entrudo, ou seja, a provocação e a brincadeira persistem. “Até hoje as pessoas jogam, por exemplo, espuma umas nas outras e jatos de água durante os desfiles de associações carnavalescas nas ruas”, completa.
Música clássica
A Associação Comercial da Bahia recebeu o primeiro Carnaval oficial de Salvador em 1884. O estilo da festa era controlado e organizado, inclusive pelo chefe da polícia. A festa tinha como trilha sonora a música clássica. O que se tocava nos salões eram ritmos como a polca e composições de Giuseppe Verdi. Uma delas era La Traviata,
“Por que se dançava a música de Verdi? É que ela tinha uns trechos acelerados e esses eram aproveitados no Carnaval. Tinha algumas danças aceleradas, como as que eram realizadas no Teatro São João, chamadas de galope. A banda da Polícia Militar tocava o galope com efeitos de sonoplastia fantásticos: tiro de pistola, estalo de chicote, vidros quebrados. Imagine isso numa área fechada”, relata Nelson Cadena.
O galope fazia com que a orquestra acelerasse o ritmo. Embora emocionante era algo de cinco a dez minutos em uma festa com duração de quatro a cinco horas. “Mas era o momento em que o pessoal se soltava. Geralmente estava todo mundo mascarado e esse era o momento para, digamos, o grand finale. Isso teve origem na França”, acrescenta o pesquisador.
Na edição de 21 de fevereiro de 1914, A TARDE publicou uma crônica sobre Carnaval que ilustra essas, mesmo que mínimas, quebras do controle em uma festa que se tentava manter dentro de certos protocolos. De acordo com o texto, a personagem chamada de “Madame”, mais jovem que o marido, identificado como “Monsieur” avisou que aproveitaria sozinha o domingo de Carnaval em uma festa de salão.
“Burguez, pacato, quinquagenário, Monsieur, sem ao menos indagar a Madame onde ia passar o domingo concordou em privar-se da sua amável companhia docemente constrangido”. (A TARDE, 21/2/191, p.3).
Após resolver ir ao baile de um clube para distrair-se da preocupação com a mulher, o personagem ficou fascinado por uma senhora fantasiada de Dominó (uma fantasia que consistia em uma roupa escura acompanhada de capuz e máscara). Com a ajuda de um empregado do clube, de acordo com a crônica, Monsieur conseguiu uma conversa em canto isolado e declarou toda a sua momentânea paixão, embora a moça se esquivasse por ser casada. Ele ainda insistiu e tentou beijá-la até que veio o susto.
“Contenha-se, senhor! Olhe que pode vir gente. Mas Monsieur não estava por nada:- Abandone-o por alguns instantes! Tenha pena desse pobre ancião apaixonado! O dominó deu uma estridente gargalhada e tirou a máscara...-Tu? Estou trahido, rugiu Monsieur, desanimado, pondo as mãos na cabeça...”. (A TARDE 21/2/1914, p.3).
Influências
O uso de termos em francês para um texto sobre o Carnaval é coerente com a série de elementos estrangeiros que estavam presentes nessas festas de salão. O traje formal, por exemplo, como os vestidos longos para as mulheres, logo abriu espaço para as fantasias de pierrot e colombina, de influência italiana; das odaliscas e outras referências árabes e, posteriormente para personagens que povoavam os filmes norte-americanos. E as contribuições de outras culturas foram diversas.
“O Carnaval de rua teve a influência mais marcante dos carros alegóricos puxados por cavalos e bois com um tema enredo e isso era oriundo do Carnaval de Nice e de Paris, mas tinha também um pouco do Carnaval de Veneza com as fantasias e as máscaras; tinha o entrudo português e as primeiras fantasias dos primeiros blocos vinham da Alemanha. De lá também veio o lança-perfume. As serpentinas e os confetes vieram da França”, lista Cadena.
Mas houve uma invenção típica da elite baiana: as pranchas. Estas se constituíam no desmonte dos bondes e que se transformavam em um camarote móvel. “Ficava só o chassi do bonde e se colocava um camarote de madeira, um espaço para a banda, e ele seguia pelo trilho. Era uma forma de se afastar do povo”, acrescenta Cadena.
Outra forma de aproveitar o Carnaval adotada pela elite eram os corsos: carros conversíveis enfeitados que desfilavam pelas ruas do Centro Histórico, mas também em festas como as do Rio Vermelho. Ou seja: mesmo na rua, a elite baiana dava um jeito de se manter afastada do povo.
Para este sobravam as brincadeiras de sujar o outro que marcava o entrudo e, para que tudo ficasse tranquilo, o ideal era não acertar alguém que estivesse em uma posição privilegiada. A tensão racial, por exemplo, era persistente. “Nos jornais há registros de que uma pessoa negra ´havia ´entrudado um casal que passeava tranquilamente, imagine. Se ocorresse o oposto, ou seja, alguém branco jogando algo em uma pessoa negra não havia esse tipo de crítica”, diz Nelson Cadena.
Os modelos, portanto, foram sendo substituídos por outros, mas algumas questões estavam presentes para lembrar que as festas não fazem um rompimento rigoroso do cotidiano. As tensões sociais podem estar até escondidas em uma fantasia, mas nem por isso deixam de ser fazer presente mesmo em algo tão dinâmico como o Carnaval.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE