Encontro de culturas trouxe alegria e fartura ao São João | A TARDE
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Encontro de culturas trouxe alegria e fartura ao São João

Festa é celebrada com comidas, danças e bebidas típicas, além de sortilégios para relacionamentos amorosos

Publicado sábado, 18 de junho de 2022 às 00:10 h | Autor: Cleidiana Ramos*
Profeta rigoroso, São João Batista é celebrado com muita alegria
Profeta rigoroso, São João Batista é celebrado com muita alegria -

Após dois anos de espera as festas de São João prometem ser realizadas em meio a uma animação sem precedentes. Em várias cidades da Bahia as comemorações com shows públicos devem durar, em média, uma semana. Além disso, é época de comer canjica e lelê, beber licor e aproveitar outras delícias típicas dessa época. Mas, dentre os santos festejados em junho, como Antônio, Pedro e Paulo, São João é o mais sisudo de todos. De acordo com a sua biografia evangélica, ele vivia no deserto, comia pouco e anunciava a necessidade de arrependimento. A combinação de elementos de culturas diferentes transformou a sua festa em uma celebração com música, fogueira e muita comida. Nas edições e A TARDE quando o assunto foi o santo a ênfase esteve na sua condição de profeta rígido em relação ao comportamento. 

“Fazendo-se homem, João andou pelo deserto alimentando-se de gafanhotos, hervas e mel sylvestre, preparando o caminho do Senhor. Foi elle quem nas águas do Jordão baptizou a Christo”. (A TARDE, 23/6/1930, p2). 

No evangelho de Marcos, João é apresentado como um profeta que preparava o caminho para o Messias. O evangelista conta que ele ouvia a confissão de pecados e batizava pessoas, em seguida, no Rio Jordão, inclusive o próprio Jesus. Veio daí o complemento de “Batista” ao seu nome. O evangelista Lucas, assim como fez com a história de Jesus, conta a de João desde antes do seu nascimento. Foi o mesmo arcanjo, Gabriel, quem anunciou o nascimento de João ao seu pai, Zacarias, que ao lado da mulher, Isabel, já estava em idade avançada. A gravidez de Isabel, portanto, foi considerada um milagre. No mesmo evangelho foi estabelecido que João era seis meses mais velho do que Jesus, quando Lucas narrou a visita que Maria fez a sua prima Isabel, após receber também a notícia de que seria mãe. Assim, como o nascimento de Jesus foi estabelecido em dezembro, o de João ficou em junho. 

“Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança se agitou no seu ventre, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. Com um grande grito, exclamou: “Você é bendita entre as mulheres, e é bendito o fruto do seu ventre! Como posso merecer que a mãe do meu Senhor venha me visitar? Logo que a sua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança saltou de alegria no meu ventre. Bem-aventurada aquela que acreditou, porque vai acontecer o que o Senhor lhe prometeu”. (Evangelho de Lucas, capítulo 1, versículo 41 a 45). 

Além do batismo, João fazia pregações convidando ao arrependimento, avisando que um novo tempo estava para chegar e denunciando autoridades devido ao comportamento considerado por ele imoral. Foi João quem apontou adultério no casamento de Herodes com uma cunhada, Herodíades, o que lhe levou à prisão e, consequentemente, à morte.  

Os evangelhos de Marcos e Mateus contam a mesma versão: durante a festa de aniversário de Herodes, a filha de sua mulher dançou a pedido do rei para os convidados. Diante da habilidade da moça ele prometeu que lhe daria o que ela quisesse.  Incentivada pela mãe, ela pediu a cabeça de João Batista em uma bandeja. Sem poder recuar, pois havia feito a promessa em público, Herodes cedeu.  

Mesmo sendo um mártir, João Batista é festejado no dia do seu nascimento, o que é uma ocorrência rara na liturgia católica. No livro Um santo para cada dia, Luigi Giovannini e Mario Sgarbossa contam que há uma segunda festa para São João, em 29 de agosto. Esta comemoração é para lembrar o seu martírio e o seu exemplo para a vida monástica e missionária. Os autores destacam que a Festa de São João é uma das mais antigas no catolicismo. 

Edições de A TARDE destacaram biografia sisuda de João Batista
Edições de A TARDE destacaram biografia sisuda de João Batista |  Foto: Cedoc A TARDE
 

“São João Batista é o primeiro santo venerado na Igreja universal com festa litúrgica particular, em data antiquíssima. Santo Agostinho nos diz que o santo era comemorado a 24 de junho na Igreja africana”. (Um santo para cada dia, Luigi Giovannini e Mario Sgarbossa, p.186). 

Penitência e alegria

Em Salvador há apenas uma paróquia dedicada a São João Batista, localizada na Avenida Vasco da Gama. Na liturgia católica é sempre lembrado o papel de João Batista como o “precursor”, ou seja, o que veio à frente de Jesus preparando o caminho para que ele realizasse a sua missão de salvador da humanidade, conforme a crença dessa religião. A atmosfera de celebração mais lúdica ultrapassa esse território de fé. 

Na coluna Religião, publicada em A TARDE, o padre Pereira de Sousa, questionou a realização das festas para além dos ofícios católicos classificando-as como resultado da lacuna de estudos bíblicos por considerá-las “quase pagãs”.   

“Não sei a que atribuir as festas (quase pagãs, desculpem os leitores) que se programam por ocasião do aniversário do nascimento de João. Não sei. Talvez a decadência dos estudos bíblicos do passado nos explique esta situação”. (A TARDE, 23/6/1990, p6, Caderno 2). 

O paganismo, entendido como as celebrações do campo, realmente está profundamente emaranhado aos festejos de São João no Brasil. No lugar do homem de comportamento áspero e hábitos penitenciais, o santo passou até por uma mudança etária: São João é frequentemente celebrado como um menino com iconografia em que segura um cordeiro. 

Câmara Cascudo, em seu livro Dicionário do Folclore Brasileiro, produziu um longo verbete sobre São João. Nele, aponta a conexão da sua festa com a passagem de estação, que é o solstício de verão nos países europeus, quando se celebrava a proximidade das colheitas com a adoção de ritos para afastar os demônios, danças ao redor do fogo e sortilégios para espantar a esterilidade e adivinhar o futuro. 

“Pregador de alta moral, áspero, intolerante, ascético, São João é festejado com as alegrias transbordantes de um deus amável e dionisíaco, com farta alimentação, músicas, danças, bebidas e uma marcada tendência sexual nas comemorações populares, adivinhações para casamento, banhos coletivos pela madrugada, prognósticos de futuro, anúncio da morte no curso do ano próximo”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, p.104). 

Embora dentre os santos festejados no mês de junho Santo Antônio é que tenha a fama de casamenteiro, na festa de São João são feitas diversas simpatias para se saber desde as iniciais do nome da futura companhia até o tempo que falta para firmar o compromisso, especialmente de casamento. Várias destas práticas foram relacionadas por Câmara Cascudo. 

“Na noite de S. João duas agulhas metidas numa bacia d’água indicam casamento, se as agulhas se ajuntarem. Em noite de S. João, escrevem-se em papelitos os nomes de várias pessoas, enrolam-se os papelitos, e se põem numa vasilha com água; o papel que amanhecer desenrolado indicará o nome da noiva ou do noivo”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, p.105). 

Câmara Cascudo destaca ainda que há também a crença de que São João dorme durante todo o dia da sua festa. Se ele acordar e ver o clarão das fogueiras acesas vai querer descer do céu para festejar e o mundo, então, acabará em fogo. No Brasil, a festa católica encontrou-se também com as religiões afro-brasileiras no culto a Xangô, que tem o fogo como seu elemento. Por isso alguns terreiros fazem celebrações para esse orixá acendendo fogueiras, embora Xangô seja mais frequentemente associado a São Jerônimo. São João, portanto, ganhou no encontro entre culturas a alegria que lhe faltou nas biografias evangélicas. 

Serviço 

O novenário a São João, iniciado no último dia 14, prossegue até o dia 22, sempre às 19 horas na Igreja de São João Batista, localizada na Avenida Vasco da Gama. 

Como este ano haverá a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus em 24 de junho, a Festa de São João Batista será no dia 23 com a seguinte programação: 7h -Oração das Laudes; 10h- Missa dos devotos, presidida pelo bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador, dom Marco Eugênio Galrão; 15h- Recitação do Terço da Misericórdia; 16h- Missa pelos enfermos.  

A missa solene da festa será às 19 horas, presidida pelo arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, cardeal Dom Sérgio da Rocha.

Para saber mais: Dicionário do Folclore Brasileiro (Luís da Câmara Cascudo, Editora Itatiaia Limitada, 1984); Um santo para cada dia (Luigi Giovannini e Mario Sgarbossa, Paulus, 1983).  

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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