Encourados de Pedrão simbolizam força e resistência sertanejas
Único batalhão remanescente das guerras de independência, os vaqueiros baianos têm parte de sua história preservada no acervo de A TARDE

Força produtiva essencial, os vaqueiros são o símbolo da resistência sertaneja, em especial no Nordeste. Desde 2009, anualmente, o Dia do Vaqueiro Nordestino é comemorado no terceiro domingo de julho (20, neste ano). A data foi instituída pela lei federal 11.928. Ao longo da história do Brasil, desde a colonização, em meados do século XVI, os vaqueiros impulsionam a economia. No rastro das boiadas, avançando do litoral para o sertão, moldou-se a ocupação do território brasileiro.
Na Bahia, a força e resistência sertaneja simbolizadas na figura dos vaqueiros tem representação no grupo Encourados de Pedrão, destacamento guerreiro criado, originalmente, na esteira das lutas pela Independência, em 1823.
"O vaqueiro é uma figura ancestral", afirma o historiador e professor Jaime Nascimento. Ele acrescenta que desde o início da colonização, a criação de gado se tornou um trabalho essencial para a produção de alimentos, a movimentação da economia e o desenho dos territórios.
"Existem relatos de que o próprio Tomé de Sousa trouxe algumas cabeças de gado e que um dos protegidos dele seria o Garcia D'ávila. Estima-se que o território da Casa da Torre de Garcia D'Ávila [onde hoje é Praia do Forte, em Mata de São João], na época, chegava até o Piauí, tornando-a a maior propriedade rural do Brasil", explica o professor.
Ele ressalta, ainda, que o crescimento da pecuária na Bahia fez dos vaqueiros e do manejo de gado "vetores de ocupação do território, criando acessos e expandindo domínios no Nordeste e no resto do Brasil”.
No rastro do gado
A população brasileira começou a crescer e o país avançava após a ocupação portuguesa. Aquela figura vestida de couro, robusta, montada em seu cavalo e endurecida pela vida de trabalho árduo se torna, com o passar do tempo, parte do imaginário que representa o sertão.

"O imaginário popular construído sobre a ideia do sertão inclui como um dos principais protagonistas de resistência à rudeza e aridez da região, o vaqueiro. Valente, ele desbrava as adversidades da caatinga nordestina protegendo e conduzindo o gado solto para lugares favoráveis e seguros", explica a professora Cristina Damasceno, doutora em artes visuais, em artigo publicado na Revista Muito, de A TARDE, em 04 de dezembro de 2022.
Na literatura, sinaliza o artigo, o vaqueiro do sertão, que difere do peão de rodeio do Centro-Oeste do país, aparece nas obras de João Guimarães Rosa. O autor do clássico Grande Sertão: Veredas nos anos de 1950 acompanhou durante cerca de 10 dias uma caravana de gado no norte de Minas Gerais, próximo à divisa do estado com a Bahia.
“A rudeza do entorno e da lida que força o homem a converter sua pele em couraça, sem perder sua nobreza, está caracterizada em muitos de seus livros. A figura do vaqueiro ganha um aspecto universal estando poeticamente associada ao respeito e sabedoria de como devemos lidar com as adversidades da vida”, escreve a professora Cristina Damasceno.
Foram as caminhadas dos vaqueiros conduzindo gado que deram origem à Estrada das Boiadas. A região ganhou esse nome após as inúmeras viagens de manejo de boiadas de Feira de Santana para Salvador, onde o gado seria abatido e sua carne comercializada. Após os eventos do dia 2 de julho de 1823, a Estrada das Boiadas passou a ser chamada de Estrada da Liberdade - hoje bairro da Liberdade -, pois foi por aquele caminho aberto por vaqueiros e pelo gado que o Exército Libertador marchou para a guerra final que culminou na Independência do Brasil na Bahia. Entre os batalhões de voluntários que se uniram ao exército comandado pelo francês general Labatut estavam os Encourados de Pedrão.
A entrada desse destacamento na guerra se deve ao pároco de Pedrão, na época um distrito da cidade de Irará, frei José Maria do Sacramento Brayner,. Ele convocou 39 vaqueiros para participar da luta pela liberdade e descolonização do território brasileiro. Como o exército oficial era justamente o inimigo a ser combatido, ou seja, os portugueses, a guerra da independência foi travada a partir de destacamentos populares como o dos encourados sertanejos ou os periquitos organizados pelo pai do poeta Castro Alves.
"Como bem disse o professor Luiz Henrique Dias Tavares, a guerra da Bahia foi feita pelas pessoas do povo. Isso é indiscutível. Os encourados, inclusive, foram alistados como parte do regimento do próprio comandante, o general Labatut. Pedrão fica entre as regiões de Entre Rios e Alagoinhas, e os Encourados vêm desde lá lutando para chegar em Salvador, que estava sitiada pelo exército português”, explica o professor Jaime Nascimento.
Armadura de sertanejo
Agigantados em cima de seus cavalos, cobertos de couro com uma indumentária formada por gibão, guarda-peito, chapéu e perneira; além de armados com espingardas, espadas e facas, não havia como confundir os Encourados de Pedrão, essa versão sertaneja dos antigos cavaleiros medievais em suas armaduras.
"Os agrupamentos patrióticos possuíam cada um a sua identidade própria e as roupas de couro, usadas todos os dias durante a lida com o gado e também no descanso dos vaqueiros, são a armadura do vaqueiro, a proteção deles, assim como de seus cavalos, que também recebem peças de couro", aponta o historiador Jaime Nascimento.
Assim como ocorria nas batalhas de mais de 200 anos atrás, a chegada dos Encourados de Pedrão nos desfiles cívicos de Salvador, até os dias atuais, é facilmente notada. Com suas vestes de couro, armas e entoando aboios, os sons cantados pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado, esses personagens chamam a atenção de quem assiste aos cortejos em comemoração ao Dois de Julho e também participam em desfiles como o que sai da Conceição da Praia até a Colina Sagrada, no Bonfim, em todo janeiro.

A primeira aparição oficial do grupo no desfile do Dois de Julho foi em 1948, abrindo caminho para os carros da Cabocla e do Caboclo. "Em virtude dessa forte ligação com a independência baiana, o município vem representado pela reconstituição do grupo 'Encourados de Pedrão', do qual fazem parte 22 cavaleiros vestidos a caráter, destacando-se a utilização do couro", diz texto publicado em A TARDE, em 25 de junho de 1991.
Retorno ao cortejo
A partir de 2010, quando entidades protetoras de animais passaram a criticar a presença dos cavalos em festas na capital, a participação dos Encourados de Pedrão na festa do Dois de Julho sofreu um abalo. "Na realidade, a crítica principal sempre foi sobre a presença dos jegues na Festa do Senhor do Bonfim, que puxavam carroças lotadas com pessoas em meio a toda aquela gente, calor e barulho. O que sim, era errado. Porém, virou tudo um pacote só, o que foi um grande erro, pois a participação dos Encourados no Dois de Julho entrou no meio e o Ministério [Público] proibiu os animais ", explica o professor Jaime Nascimento.
Até 2014, os Encourados, apesar das restrições, continuaram participando do cortejo com seus cavalos, pois para o vaqueiro, o cavalo não é um instrumento de trabalho, mas um companheiro de lida e jornada. No ano seguinte, o Ministério Público proibiu que o grupo trouxesse os cavalos e os vaqueiros se recusaram a desfilar sem os animais, decidindo participar apenas das manifestações cívicas na cidade de Pedrão.
Este ano, o Desfile do Dois de Julho em Salvador ficou marcado pela volta dos Encourados de Pedrão ao cortejo após anos de ausência. Entre vaqueiros e civis, cerca de 300 pedronenses vieram para a capital participar do desfile. Todos a pé. "O retorno do grupo para o desfile cívico é importantíssimo, porque esse é o único grupo que, de fato, tomou parte nas lutas e que ainda existe. Não são as mesmas pessoas, claro, mas os encourados que desfilam hoje são as gerações que sucederam os primeiros, seus descendentes e herdeiros. Eles são de fato o elo que nos liga àquele momento", salienta Jaime Nascimento.

O respeito a histórias como a dos Encourados de Pedrão é fundamental, pois festejos como o Dois de Julho mostram que "a festa como um patrimônio cultural se apresenta fundamentada no processo de identificação coletiva", diz o mestre em Crítica Cultural Wellington de Souza Madureira, na dissertação "Memórias e narrativas: A representação dos encourados pelos vaqueiros de Pedrão-BA", defendida pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
"A fusão simbólica entre passado e presente se dá a partir de elementos sociais, culturais e ideológicos dos grupos sociais, os quais são significativos para a formação de sua identidade. Várias são as personagens que ainda hoje habitam o imaginário popular e são lembradas, muito embora essas personagens adquiram o valor subjetivo em cada sujeito que o abarca", destaca outro trecho da dissertação do pesquisador.
*Colaboraram Andreia Santana e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do Cedoc/A TARDE