Escolas de Samba foram uma das importantes manifestações do Carnaval
Ritmistas do Samba, Filhos do Tororó e Diplomatas promoviam espetáculos impressionantes em Salvador
Em um Carnaval que avança cada vez mais, por meio da criação de circuitos, para a ocupação de espaços variados da cidade ironicamente foi a suposta ameaça de restringir a festa na rua que contribuiu para o fim do desfile oficial das escolas de samba em Salvador. Ritmistas do Samba, a pioneira desse tipo de manifestação na cidade, fundada em 1957, na Ladeira da Preguiça; Juventude do Garcia, Filhos do Tororó e Diplomatas de Amaralina brilharam por décadas nos dias de folia. Mas a concorrência de novas manifestações, especialmente o trio elétrico, levaram ao fim dos desfiles que aconteciam em um palco armado na Praça da Sé para a apreciação do público e do júri responsável por escolher a vencedora a cada ano. Em 1985 a última das escolas soteropolitanas, Bafo de Onça, desfilou em espaço oficial.
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Pós Cult- Ufba), Rafael Soares aponta o surgimento das escolas de samba como um desdobramento das chamadas batucadas. “As escolas de samba representam parte do reduto do samba na capital baiana. A gente já tinha na década de 1930, 1940 e até um pouco antes os grupos chamados de batucadas. A estrutura da batucada era em fila, cortando os bairros, com grupos de homens ligeiramente fantasiados, mas não tinha um tema de desfile muito forte. A partir de 1957, com moradores da Ladeira da Preguiça, um novo modelo apareceu para o Carnaval de Salvador, muito inspirado no modelo carioca. Ele saiu do modelo de fila para o modelo de alas. A Ritmistas do Samba foi essa primeira grande escola de Salvador, na época com apenas uma dezena de pessoas participando, mas o modelo ganhou força e se desenvolveu”.
Rafael Soares é autor da dissertação intitulada As escolas de Samba da cidade do Salvador (1957-1985), apresentada no programa de mestrado em Ciências Sociais- Cultura, Desigualdades e Desenvolvimento da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) com a orientação do professor Antonio Liberac Cardoso Simões Pires. Na nova pesquisa, ele tem dado uma atenção especial aos sambas enredos dessas escolas. “Nelas estiveram em atuação importantes compositores como Walmir Lima, Ederaldo Gentil, dentre outros”, acrescenta Rafael Soares que participa do projeto Memórias de Momo, voltado para o registro de elementos que compuseram e compõem o Carnaval de Salvador.
Imagens e notícias
As coleções de reportagens e de fotografias do Centro de Documentação A TARDE (Cedoc A TARDE) reúnem informações preciosas sobre as escolas de samba. Os registros de figurinos e fantasias, das evoluções dos músicos e dos passistas, além da elegância de porta-bandeiras e mestres-salas e do luxo das fantasias dos destaques apontam para a dimensão de como essas instituições deram um toque mais do que especial ao Carnaval da cidade.
Na edição de 11 de novembro de 1970, uma reportagem detalhou como o era o ambiente dos ensaios das escolas de samba. O texto foi baseado, em sua quase totalidade, nas características do ensaio da Filhos do Tororó, sediada no bairro do Tororó. De acordo com o texto, a escola desfilaria em 1971 com o enredo Canto de Louvor a uma Raça. Como ainda acontece nas escolas de samba cariocas e nos blocos afro da Bahia, a pesquisa sobre os elementos históricos ocupava um papel central com alguém designado formalmente para essa missão.
“O encarregado é Normando Batista, um rapaz de 20 anos que passa os dias na biblioteca da Faculdade de Educação pesquisando tudo sobre o negro na História do Brasil. É o vice-presidente da escola”. (A TARDE 11/11/1970, p.12).
A dedicação era grande. No mesmo texto, o diretor da escola conta que chegou a vender uma casa para garantir o desfile.
“É Arnaldo que há dezoito anos cuida dos interesses da Escola que nunca deixa de desfilar. Mas houve um Carnaval em que não havia dinheiro de forma alguma. Arnaldo não se desesperou: vendeu sua casa, colocou sua família na residência de parentes e arranjou dinheiro para a Escola sair. Escola que se preza não foge da luta”. (A TARDE 11/11/1970, p.12).
Além dos ensaios, a Filhos do Tororó realizava um Festival de Música para escolher seus sambas enredo. Era o momento de revelar o talento de compositores fortemente ligados à escola. Na reportagem publicada em 1970 foram citados como cantores Ademar Papita e Americano, além do compositor Ederaldo Gentil com a observação de que já tinha disco gravado. As músicas tinham que atender a determinadas exigências, como não possuir palavrões.
“A fim de que não haja desclassificações, as letras não podem propagar nenhum produto comercial, fazer publicidade política, conter críticas às autoridades constituídas e ao clero, conter palavras de baixo calão”. (A TARDE 11/11/1970, p.12).
As fantasias eram adquiridas pelos próprios foliões. Em alguns casos, a escola financiava algumas e também buscava apoio de órgãos públicos. Nos ensaios em Salvador, segundo a reportagem, não se cobrava ingresso para a participação do público nos ensaios.
Júri engajado
As escolas de samba, assim como cordões e afoxés, além de outras manifestações de base afro-brasileira ganharam, além de projeção, o apoio de importantes agentes culturais de Salvador. Na edição de A TARDE de 5 de março de 1962, a comissão julgadora teve entre os seus membros o folclorista Antônio Monteiro. A vitória naquele ano foi da Ritmistas do Samba. O vice-campeonato foi da Juventude do Garcia e o terceiro lugar ficou para a Unidos do Brandão. A Escola de Samba do Politeama ganhou um prêmio especial do júri.
No Carnaval de 1964, entre os membros da comissão julgadora estavam Édison Carneiro, além de Antonio Monteiro e Waldeloir Rego. Todos os três são autores de trabalhos e textos, inclusive para jornais, sobre outras manifestações da cultura afro-brasileira e religião, como o candomblé. Na mesma reportagem, publicada na edição de 10 de fevereiro de 1964, a disputa entre as escolas de samba terminou com o primeiro lugar para a Juventude do Garcia, seguida pela Escola de Samba do Politeama e pela Ritmistas do Samba.
Despedida
A década de 1970 foi o começo do período de maior dificuldade para as escolas de samba. Embora desfilassem em um palco na Praça da Sé, elas passaram a ser apontadas como um risco para o Carnaval aberto aos foliões como se anunciava o protagonizado pelo trio elétrico. Na reportagem publicada por A TARDE em 11 de novembro de 1970 essa avaliação foi apresentada:
“Numa cidade como a capital baiana onde o carnaval/participação sempre predominou sobre o carnaval/espetáculo, as escolas de samba são uma ameaça à livre circulação do público que se delicia preferencialmente com o ritmo quente dos Trios Elétricos”. (A TARDE 11/11/1970, p.12).
A manifestação surgida como um desdobramento das batucadas que se apresentava até mais inclusiva do que os préstitos dos clubes sociais era apontada, em vinte anos de incluídas na programação do Carnaval, como uma ameaça à festa na rua. As escolas ainda resistiram por quase uma década até que a última delas, a Bafo de Onça, apresentou-se de forma oficial.
Desde então ocorreram muitas tentativas de se incluir as escolas de samba no diverso Carnaval de Salvador. Em 4 de fevereiro de 1999, A TARDE anunciou, em uma reportagem que as escolas estariam de volta no Carnaval do ano seguinte. Já em 28 de abril de 2006, a capa do Caderno 2 foi dedicada ao esforço da Liga Independente do Samba (Lis) criada dois anos antes de trazer os desfiles de volta inclusive com a inauguração de uma quadra no Comércio. As iniciativas, embora tenham garantido alguns eventos, não promoveram um retorno à altura do que a história dessas escolas merece. Assim, o Carnaval da capital baiana segue sem o retorno dessas manifestações que alcançaram a glória, especialmente na mídia, no Rio de Janeiro.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE
Para saber mais: Os batuqueiros e as primeiras escolas de samba de Salvador (Rafael Soares- Revista Afro Ásia, nº 54)