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A Tarde Memória

Por Andreia Santana*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 15 de março de 2025 às 5:00 h | Autor:

Estudo analisa embates entre ciência e fé na Bahia da Primeira República

Coleções de A TARDE do início do século XX estão entre os documentos consultados durante a pesquisa de uma doutoranda em História pela Ufba

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Reprodução de Ilustração feita para edição de A Tarde de 1935 mostrando uma sessão espírita em um centro de umbanda
Reprodução de Ilustração feita para edição de A Tarde de 1935 mostrando uma sessão espírita em um centro de umbanda -

A edição de 26 de março de 1935 de A TARDE traz uma reportagem em estilo de crônica literária, linguagem comum na época, sobre a visita de um repórter a um centro espírita para acompanhar uma sessão mediúnica. Como o autor descreve, ele foi levado ao local por um amigo adepto dessa religião que chegou ao Brasil ainda na segunda metade do século XIX. O texto, que completa 90 anos este mês, não traz a assinatura do autor, porque na época não era comum reportagens saírem assinadas. Mas, essa crônica e outras edições do jornal, dos anos 1920 e 1930, estão entre os documentos que a doutoranda em História pela Ufba Flávia Pereira utilizou na pesquisa para a sua tese: 'Ciência, Religião ou Curandeirismo: Embates entre médicos e espíritas na imprensa da Bahia republicana'.

Flávia Pereira, que também é professora da rede estadual de ensino baiana, explica que a grande imprensa do período é o fio condutor da sua análise no doutorado, que resulta de um longo caminho percorrido desde a graduação. Jornais e outros periódicos centenários guardam em seus acervos importantes fontes de pesquisa sobre determinadas épocas. No caso de A TARDE, fundado em outubro de 1912, a coleção de edições conta a história dos últimos 112 anos na Bahia e também no Brasil e até fora do território nacional, com a cobertura dos fatos marcantes para o país e o mundo.

“Este é o resultado de um trabalho que desenvolvo desde o final da graduação, onde estudei as acusações de curandeirismo, charlatanismo e exercício ilegal da medicina [divulgados] na imprensa e também os processos crimes. No mestrado, desenvolvi um trabalho sobre a repressão a espíritas e candomblecistas aqui na Bahia, nesse período, e eu trabalhei basicamente com os jornais. Agora, no doutorado, foco nos casos envolvendo médiuns e terapeutas populares espíritas. E a imprensa tem um papel fundamental nesse processo. Embora eu trabalhe com uma vasta documentação, que envolve as teses de medicina, processos crimes, folhetos e livros espíritas, a grande imprensa é o fio condutor”, explica a pesquisadora.

No texto de 1935, o repórter anônimo narra o encontro com o amigo na Praça Municipal, em um final de tarde, onde ‘tomaram um carro de praça’, como eram chamados os táxis na época. Até a chegada ao centro espírita, o cronista vai descrevendo o trajeto, feito em um sábado, e a movimentação de populares pelas ruas, seja no trabalho, no comércio, com as lojas ainda abertas, ou atividades de lazer. Ao chegar ao centro espírita, na Rua da Paz, ele descreve a sala cimentada, os oito bancos de madeira para a assistência, a mesa com seis cadeiras onde ficariam os médiuns e o presidente da casa.

Chama a atenção a descrição de dois quadros na parede, um é o retrato de um rapaz vestindo roupa preta e a outra uma pintura de um indígena, com um cocar de penas e empunhando arco e flecha. A descrição detalhada da sala foi transformada em uma ilustração para a crônica. A pintura do indígena representaria o caboclo Sultão das Matas, entidade ligada às religiões de matriz afro-brasileira. É justamente essa mescla do espiritismo importado da Europa com essas tradições dos cultos a caboclos, espíritos e outras entidades cultuadas nas religiões afro-indígena baianas, que interessa para o estudo de Flávia Pereira.

Os frequentadores da sessão espírita de 1935, que recebeu a visita espiritual do mentor desencarnado [o rapaz do quadro] e do caboclo Sultão das Matas eram, em sua maioria, tipos populares da cidade, como operários, soldados de polícia, mulheres idosas, conhecedoras e usuárias da medicina popular baseada em ervas, banhos e chás. A medicina popular que, para as autoridades de saúde da primeira metade do século XX, era descredibilizada em detrimento da prática médica acadêmica.

Nas páginas diárias

Essa disputa entre o conhecimento ancestral popular e a medicina convencional dominava os debates não só na Bahia, mas em todo o Brasil naquele período. Daí a importância da consulta aos acervos como o de A TARDE para estudos como o da doutoranda Flávia Pereira. “Era através da imprensa que os agentes públicos, as autoridades, os juízes, se pronunciavam e incitavam as autoridades [policiais] e a população a fazerem uma campanha contra as práticas espíritas e mediúnicas e aos terapeutas populares. A gente está falando de um universo religioso e de cura que era muito importante e que estava inserido em um debate nacional sobre a construção da identidade, que era marcado pelas tensões sociais e raciais”, complementa.

Os jornais dos anos 1920 e 1930 circulavam em um Brasil ainda fortemente marcado pelos fins oficiais da escravização e da monarquia. A jovem república ainda engatinhava e nessas primeiras décadas após 1888 (ano da Lei Áurea) e 1889 (ano da Proclamação da República), havia um interesse das elites no poder de ‘civilizar’ e ‘embranquecer’ o país, como formas de esquecer os quase 400 anos de regime escravista. Os motivos eram diversos e iam desde as teorias racistas remanescentes do século XIX até o fato dos afrodescendentes brasileiros terem sido deixados à própria sorte após a Lei Áurea e o governo da época não querer olhar para a situação.

Flávia Pereira, doutoranda da Ufba, pesquisou sobre espiritismo popular em edições históricas de A TARDE. Na foto, ela aparece no Cedoc
Flávia Pereira, doutoranda da Ufba, pesquisou sobre espiritismo popular em edições históricas de A TARDE. Na foto, ela aparece no Cedoc | Foto: Priscila Dorea | Ag. A TARDE

Nas edições de A TARDE dos anos 1920 e 1930 - Flávia usou algumas entre 1921 até 1939 - apareciam não só os debates na Bahia como a repercussão dos embates nacionais, como o caso do ‘Diário da Noite’, jornal carioca fundado em 1929, que 10 anos depois cobria uma moção de protesto na então capital do país, o Rio de Janeiro, contra o espiritismo praticado pelas camadas mais pobres da sociedade.

A situação no Rio chegou a entrar como nota de pé de página, na capa da edição de A TARDE de 05 de junho de 1939, na sessão de ‘notícias de última hora’, tamanha era a repercussão nacional do tema. O registro minúsculo, em cinco linhas, pode parecer insignificante para um olhar não especializado, mas para um historiador ou antropólogo, a nota de rodapé é pista para novas buscas e contexto em suas análises.

“Esses grupos religiosos, as práticas de cura não acadêmicas, foram alvo da repressão e precisavam de alguma forma buscar uma legitimidade. O meu estudo foca no embate que envolveu a discussão em torno da saúde pública, entre os médicos, a academia e as sociedades de medicina e os espíritas, os médiuns espíritas e suas práticas de cura e também a constituição desse espiritismo: o que é que a gente está chamando de espiritismo nessa época? Como é que esses grupos se articularam para manter suas práticas, para vivenciar suas crenças e tentar driblar de alguma forma a perseguição? A imprensa era uma grande arena de debates onde espíritas e médicos disputaram as suas narrativas”, argumenta Flávia.

Candomblés

Durante o levantamento de dados para sua pesquisa, Flávia Pereira analisou também o fato das religiões de matriz africana, como o candomblé, serem o alvo principal das práticas repressivas na primeira metade do século XX. Quem estuda o tema há bastante tempo conhece os bastidores das lutas de mães e pais de santo pela liberação de culto e pelo fim das perseguições. É famosa a história de Mãe Aninha, a fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, casa de candomblé de nação ketu (iorubá), viajando ao Rio de Janeiro da era Getúlio Vargas para pedir ao então governante do país a liberdade de culto para o povo de santo.

“Dentro da minha pesquisa, eu pude identificar como era difícil, muitas vezes, para os terreiros de candomblé, sobreviver a esses combates que vinham de diferentes lugares. A resistência passava por muitas estratégias e uma delas era utilizar a fachada de centro espírita, grupo espírita ou grupo espiritualista. Por que? Porque tendo o espiritismo algum espaço de legitimidade, alguma possibilidade de proteção, eles recorriam a esse título para garantir a sua sobrevivência, para evitar as batidas policiais, para evitar processos”, enumera a doutoranda.

Flávia destaca, ainda, a importância de entender que as pessoas que recorriam às práticas mediúnicas e de cura populares transitavam por diferentes espaços religiosos. “A gente tinha um diálogo muito grande de casas que utilizavam práticas espíritas e também práticas do candomblé e cultuavam diferentes espiritualidades. Para eles e elas [as pessoas que recorriam a esses espaços] isso não era considerado um problema. Essa espiritualidade que dialogava com diferentes práticas mediúnicas, que bebia em diferentes fontes, era uma estratégia também de resistência, mas também era uma forma de vivenciarem a sua fé”, enfatiza.

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‘Alto e baixo espiritismo’

O universo religioso abordado pela pesquisadora é complexo, assim como eram complexas as relações sociais e raciais no Brasil do período que ela analisa. “As pessoas, quando estavam buscando trabalhar a sua fé, a sua mediunidade ou buscar a cura para as doenças do corpo e da alma, recorriam a diferentes práticas”, completa. Os agentes da repressão que enquadravam as práticas populares como ‘charlatanismo’, por sua vez, categorizavam e diferenciavam, com base em critérios sociais e raciais, as práticas populares daquelas da população mais rica e branca.

“Os agentes da repressão buscam enquadrar ou generalizar [as religiões populares] dentro da categoria de 'baixo espiritismo' para encontrar uma brecha e permitir processar essas pessoas [os líderes religiosos dos centros e terreiros]. A gente está convivendo com dois instrumentos legais que são muito importantes: o primeiro é o Código Penal de 1890, que criminaliza ‘as práticas de magia e seus sortilégios’, as práticas de cura, dentro dos crimes contra a saúde pública. E a gente tem a Constituição de 1891 que, no artigo 72, defende a liberdade de crença e de culto. Dentro dessa estratégia, desse jogo, há o embate de duas filosofias jurídicas, a que está no Código Penal de 1890 e a que está na Constituição. E aí entra a discussão do que era considerado religião e poderia ser protegido e o que não era”, diz.

As casas de culto de matriz africana tinham de provar na justiça que praticavam uma religião e portanto estavam no escopo de proteção constitucional e que não praticavam o chamado ‘curandeirismo’ criminalizado no Código Penal. Como o recurso jurídico nem sempre estava acessível, utilizar a nomenclatura de espiritismo era uma estratégia para garantir legitimidade perante os ataques recorrentes, acrescenta Flávia.

O que as autoridades dos anos 1920 e 1930 consideravam o alto espiritismo, por sua vez, era a prática religiosa derivada da doutrina codificada por Allan Kardec, na França do século XIX, e que chegou ao Brasil com bastante força e causando muito interesse na segunda metade daquele século. “É importante enfatizar que essas categorias de alto e baixo, verdadeiro e falso espiritismo, não existem dentro do espiritismo. Elas foram categorias criadas pelos agentes da repressão, pela jurisprudência, para enquadrar certos tipos de práticas. Inicialmente, os agentes públicos utilizavam a noção de falso e verdadeiro espiritismo para destacar, a partir dos critérios que eles estabeleciam, aquilo que eles consideravam a 'verdadeira prática espírita', que era considerada legítima e portanto fugiria da repressão, e o 'falso espiritismo'. Analisando essas categorias, a gente consegue perceber que os critérios utilizados para definir o que era o verdadeiro e o falso espiritismo passavam pelas questões raciais e sociais”, finaliza Flávia Pereira.

*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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