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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 22 de outubro de 2022 às 11:39 h | Autor:

Feira do Sete foi considerada um incômodo até desaparecer em incêndio

Na década de 1930, uma das suas ancestrais, espaço não era motivo de celebração

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São Joaquim resultou dos deslocamentos das feiras na região do Comércio
São Joaquim resultou dos deslocamentos das feiras na região do Comércio -

Um passeio pela Feira de São Joaquim é mais do que uma experiência comercial. O espaço tem a efervescência típica de uma feira, mas vai além com a oferta de frutas, legumes, utensílios de barro e produtos que atendem às mais variadas necessidades, especialmente das religiões afro-brasileiras. Mas na década de 1930, uma das suas ancestrais, a Feira do Sete, não era motivo de celebração. Seu incêndio em 1934 chegou a ser comemorado.

A feira, segundo as pistas do texto publicado em A TARDE era um obstáculo à expansão das obras do porto e mais do que isso: ostentava a pobreza que incomodava a cidade que queria ser exemplo de ter chegado à era moderna. O texto, inclusive, informa que o início da aglomeração denominada Feira do Sete resultou da iniciativa de uma mulher negra, que vendia mingau, e armou uma estrutura coberta por panos. O tom era de criminalização das pessoas que viviam no local com a avaliação de que representavam uma ameaça à segurança pública.

Três anos antes, o jornal abordou a localidade com ênfase em um apelido: “Flandrelândia”. O nome era derivado da principal caraterística dos abrigos que funcionavam como pontos comerciais e moradias: construídos a partir de pedaços de flandres. A feira chegou a ser comparada ao bairro chinês de Nova Iorque nos EUA.

“A feira do Sete, como toda gente conhece, é uma das coisas mais famosas da nossa terra. Relevado o absurdo do confronto, é assim, uma espécie de bairro chinez, de Nova York. De facto, a feira do Sete- a Flandrelandia, como lhe chrismaram, com a sua centena de casebres de folhas de Flandres, pedaços de latos de kerozene etc apesenta-se aos olhos admirados dos estrangeiros que nos visitam como um verdadeiro aldeamento”. (A TARDE, 14/8/1931, p.2).

O texto publicado por A TARDE anunciava a breve transferência do local para a realização de obras como a construção da Avenida Jequitaia. O nome “Sete” foi por conta da proximidade com um armazém da zona portuária que tinha esse número.

A localidade é descrita como uma área de pobreza que se transformava ao longo do dia e onde era possível achar praticamente muitas mercadorias.

“Há ali de tudo quiçá mais barato. De certa hora em diante, o Sete toma outros aspectos. Nada lhe falta desde a jogatina, a começar do sete bahiano, jogo de pregos e outros. À noite, não raro a polícia entra em conflito com os seus habitantes. É um inferno”. (A TARDE 14/8/1931, p.2).

Cidade de lata

Descrita pela reportagem como uma cidade exótica, a Feira do Sete, estava prestes a ser transferida para uma área próxima.

“O Sete é de facto uma cidade exótica. Há gente que ali vive, que cria gallinhas e porcos; há barbeiros, que fazem a barba na expressão do poeta, “pelo amor de Deus”, e, há até brasileiros ali nascidos, embalados pelo marulhar das ondas e ao som das cantigas dos violeiros nas barracas, a luz dos fifós”. (A TARDE, 14/8/1931, p.2).

Segundo o texto, tal cenário era incompatível com o desejo de progresso que se tinha. A construção da Avenida Jequitaia e de um cruzamento férreo deixou, portanto, a ocupação com seus dias contados. As empresas responsáveis pelas obras exigiram a retirada das barracas.

“O eng. Pontes entendeu-se logo com o dr. Pimenta da Cunha, prefeito da capital, e dr. Vital Santos Souza, Chefe da Fiscalização do Porto. Ficou deliberado fossem tomadas providências para a demolição das barracas. Será essa providência um complemento da que a Prefeitura tomou com relação aos barracões armados e ruínas existentes nos terrenos das Docas que tanto afetavam o local, aspectos desaparecidos com a terraplanagem feita”. (A TARDE, 14/8/1931, p.2).

Outra preocupação, de acordo com o texto, era a divulgação da localidade em outros países. De acordo com a reportagem havia se tornado comum registros fotográficos sobre a Flandrelândia.

“Dahi, a razão dessa providencia de agora para se acabar com a Flandrelândia, que estava servindo de pasto a certos estrangeiros que escolhiam a Feira do Sete como acepipe das suas indispensáveis Kodacks que só apanham o que nos pode deprimir lá fora”. (A TARDE 14/8/1931, p.2).

Experiências diversas

Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente, professora e empresária com experiência no desenvolvimento de cosméticos à base de plantas e ervas tipicamente comercializadas em feiras como a de São Joaquim, Sueli Conceição avalia os desafios vividos pela comunidade da Feira do Sete. Na década de 1930 o poder público e as elites de Salvador continuavam concentradas na ideia de saneamento da cidade. A feira, portanto, era vista como um obstáculo tanto do ponto de vista da salubridade, como também por ser considerada uma área que mostrava a pobreza extrema vivida por parte da população soteropolitana.

“A Feira do Sete estava em uma área de intensa circulação de estrangeiros, como franceses, alemães, ingleses, suíços, majoritariamente homens de negócios. O Porto de Salvador era o maior do Brasil e esses visitantes chegavam pela Cidade Baixa. Ali se deparavam com a Feira do Sete, com seus casebres de flandres, por exemplo”, aponta Sueli Conceição.

A professora salienta que ocorreram três incêndios relacionados às feiras da região do Comércio provocando seus constantes deslocamentos:

“De lá do Porto até onde a Feira de São Joaquim se encontra hoje é um long o trajeto. Quando analisamos essa trajetória das feiras da região percebemos a perspectiva do empenho do poder público e das elites de retirar aquela ocupação incômoda, especialmente do alcance da visão dos visitantes da cidade. O debate sobre os incêndios, por exemplo, nunca foi totalmente aprofundado e a não sabemos até que medida foi acidente ou outra coisa. A interrogação continua sobre essa dinâmica de higienização”, avalia Sueli Conceição.

Para a professora, atualmente, a relação da cidade e do poder público com as feiras passou a ser de aceitação, mesmo porque esses espaços ganharam novas dinâmicas.

“Hoje não haveria condições de um enfrentamento das elites em relação às feiras da forma como ocorreu no passado, porque a Feira de São Joaquim, por exemplo, é um local em que as pessoas vão não apenas para comprar, mas para viver diversas experiências. A feira é um local de encontros. As pessoas criam vínculos naquele espaço. Em São Joaquim, desde 2017, todo domingo acontece o Samba da Feira e isso gera negócios, o que dá mais sustentabilidade àquele empreendimento”, completa.

Ir à feira, portanto, vai além das relações comerciais. É tomar um café da manhã diferenciado, pois os pratos oferecidos são feijoada, rabada, mocotó, dentre outros, geralmente acompanhados de uma cerveja gelada. É também buscar atendimento medicinal e espiritual por meio das seções totalmente dedicadas às ervas e outros produtos religiosos, onde o feirante, muitas vezes, funciona como um consultor para encaminhamento ao especialista religioso. E, mais que isso, as feiras foram e continuam sendo um espaço de organização política de sua comunidade, que sem luta estaria submetida à ampliação da vulnerabilidade, ou seja, elas são uma das faces mais interessantes e dinâmicas de Salvador.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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