Feira do Sete foi considerada um incômodo até desaparecer em incêndio
Na década de 1930, uma das suas ancestrais, espaço não era motivo de celebração
Um passeio pela Feira de São Joaquim é mais do que uma experiência comercial. O espaço tem a efervescência típica de uma feira, mas vai além com a oferta de frutas, legumes, utensílios de barro e produtos que atendem às mais variadas necessidades, especialmente das religiões afro-brasileiras. Mas na década de 1930, uma das suas ancestrais, a Feira do Sete, não era motivo de celebração. Seu incêndio em 1934 chegou a ser comemorado.
A feira, segundo as pistas do texto publicado em A TARDE era um obstáculo à expansão das obras do porto e mais do que isso: ostentava a pobreza que incomodava a cidade que queria ser exemplo de ter chegado à era moderna. O texto, inclusive, informa que o início da aglomeração denominada Feira do Sete resultou da iniciativa de uma mulher negra, que vendia mingau, e armou uma estrutura coberta por panos. O tom era de criminalização das pessoas que viviam no local com a avaliação de que representavam uma ameaça à segurança pública.
Três anos antes, o jornal abordou a localidade com ênfase em um apelido: “Flandrelândia”. O nome era derivado da principal caraterística dos abrigos que funcionavam como pontos comerciais e moradias: construídos a partir de pedaços de flandres. A feira chegou a ser comparada ao bairro chinês de Nova Iorque nos EUA.
“A feira do Sete, como toda gente conhece, é uma das coisas mais famosas da nossa terra. Relevado o absurdo do confronto, é assim, uma espécie de bairro chinez, de Nova York. De facto, a feira do Sete- a Flandrelandia, como lhe chrismaram, com a sua centena de casebres de folhas de Flandres, pedaços de latos de kerozene etc apesenta-se aos olhos admirados dos estrangeiros que nos visitam como um verdadeiro aldeamento”. (A TARDE, 14/8/1931, p.2).
O texto publicado por A TARDE anunciava a breve transferência do local para a realização de obras como a construção da Avenida Jequitaia. O nome “Sete” foi por conta da proximidade com um armazém da zona portuária que tinha esse número.
A localidade é descrita como uma área de pobreza que se transformava ao longo do dia e onde era possível achar praticamente muitas mercadorias.
“Há ali de tudo quiçá mais barato. De certa hora em diante, o Sete toma outros aspectos. Nada lhe falta desde a jogatina, a começar do sete bahiano, jogo de pregos e outros. À noite, não raro a polícia entra em conflito com os seus habitantes. É um inferno”. (A TARDE 14/8/1931, p.2).
Cidade de lata
Descrita pela reportagem como uma cidade exótica, a Feira do Sete, estava prestes a ser transferida para uma área próxima.
“O Sete é de facto uma cidade exótica. Há gente que ali vive, que cria gallinhas e porcos; há barbeiros, que fazem a barba na expressão do poeta, “pelo amor de Deus”, e, há até brasileiros ali nascidos, embalados pelo marulhar das ondas e ao som das cantigas dos violeiros nas barracas, a luz dos fifós”. (A TARDE, 14/8/1931, p.2).
Segundo o texto, tal cenário era incompatível com o desejo de progresso que se tinha. A construção da Avenida Jequitaia e de um cruzamento férreo deixou, portanto, a ocupação com seus dias contados. As empresas responsáveis pelas obras exigiram a retirada das barracas.
“O eng. Pontes entendeu-se logo com o dr. Pimenta da Cunha, prefeito da capital, e dr. Vital Santos Souza, Chefe da Fiscalização do Porto. Ficou deliberado fossem tomadas providências para a demolição das barracas. Será essa providência um complemento da que a Prefeitura tomou com relação aos barracões armados e ruínas existentes nos terrenos das Docas que tanto afetavam o local, aspectos desaparecidos com a terraplanagem feita”. (A TARDE, 14/8/1931, p.2).
Outra preocupação, de acordo com o texto, era a divulgação da localidade em outros países. De acordo com a reportagem havia se tornado comum registros fotográficos sobre a Flandrelândia.
“Dahi, a razão dessa providencia de agora para se acabar com a Flandrelândia, que estava servindo de pasto a certos estrangeiros que escolhiam a Feira do Sete como acepipe das suas indispensáveis Kodacks que só apanham o que nos pode deprimir lá fora”. (A TARDE 14/8/1931, p.2).
Experiências diversas
Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente, professora e empresária com experiência no desenvolvimento de cosméticos à base de plantas e ervas tipicamente comercializadas em feiras como a de São Joaquim, Sueli Conceição avalia os desafios vividos pela comunidade da Feira do Sete. Na década de 1930 o poder público e as elites de Salvador continuavam concentradas na ideia de saneamento da cidade. A feira, portanto, era vista como um obstáculo tanto do ponto de vista da salubridade, como também por ser considerada uma área que mostrava a pobreza extrema vivida por parte da população soteropolitana.
“A Feira do Sete estava em uma área de intensa circulação de estrangeiros, como franceses, alemães, ingleses, suíços, majoritariamente homens de negócios. O Porto de Salvador era o maior do Brasil e esses visitantes chegavam pela Cidade Baixa. Ali se deparavam com a Feira do Sete, com seus casebres de flandres, por exemplo”, aponta Sueli Conceição.
A professora salienta que ocorreram três incêndios relacionados às feiras da região do Comércio provocando seus constantes deslocamentos:
“De lá do Porto até onde a Feira de São Joaquim se encontra hoje é um long o trajeto. Quando analisamos essa trajetória das feiras da região percebemos a perspectiva do empenho do poder público e das elites de retirar aquela ocupação incômoda, especialmente do alcance da visão dos visitantes da cidade. O debate sobre os incêndios, por exemplo, nunca foi totalmente aprofundado e a não sabemos até que medida foi acidente ou outra coisa. A interrogação continua sobre essa dinâmica de higienização”, avalia Sueli Conceição.
Para a professora, atualmente, a relação da cidade e do poder público com as feiras passou a ser de aceitação, mesmo porque esses espaços ganharam novas dinâmicas.
“Hoje não haveria condições de um enfrentamento das elites em relação às feiras da forma como ocorreu no passado, porque a Feira de São Joaquim, por exemplo, é um local em que as pessoas vão não apenas para comprar, mas para viver diversas experiências. A feira é um local de encontros. As pessoas criam vínculos naquele espaço. Em São Joaquim, desde 2017, todo domingo acontece o Samba da Feira e isso gera negócios, o que dá mais sustentabilidade àquele empreendimento”, completa.
Ir à feira, portanto, vai além das relações comerciais. É tomar um café da manhã diferenciado, pois os pratos oferecidos são feijoada, rabada, mocotó, dentre outros, geralmente acompanhados de uma cerveja gelada. É também buscar atendimento medicinal e espiritual por meio das seções totalmente dedicadas às ervas e outros produtos religiosos, onde o feirante, muitas vezes, funciona como um consultor para encaminhamento ao especialista religioso. E, mais que isso, as feiras foram e continuam sendo um espaço de organização política de sua comunidade, que sem luta estaria submetida à ampliação da vulnerabilidade, ou seja, elas são uma das faces mais interessantes e dinâmicas de Salvador.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE
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