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A Tarde Memória

Por Andreia Santana*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 12 de abril de 2025 às 7:40 h | Autor:

Feira preserva modos indígena e africano de moldar argila no recôncavo

Evento, que acontece em Nazaré desde o século XIX, sempre na Semana Santa, exibe a arte criada nas olarias de Maragogipinho e região

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Feira de Caxixis existe há quase 300 anos na cidade de Nazaré
Feira de Caxixis existe há quase 300 anos na cidade de Nazaré -

Patrício, oleiro em Maragogipinho, encheu uma canoa com miniaturas em cerâmica, remou pelo rio Jaguaripe até Nazaré e, na antiga praça central da cidade (hoje, Praça Dr. Alexandre Bittencourt), expôs suas peças, chamando a atenção dos passantes, que compraram todo o estoque. Incentivado pela recém conquistada clientela, que pediu mais miniaturas, ele retornou no ano seguinte trazendo outros oleiros e suas cerâmicas. Estava iniciada a tradição.

A história popular em Nazaré explica a existência da Feira de Caxixis como obra do engenho desse escultor de prenome Patrício e cujo sobrenome é desconhecido. Embora não exista uma data exata da realização da primeira feira, o que se sabe é que começou no século XIX, durante a vigência do regime escravista, ou seja, antes de 1888, e na Semana Santa, quando não havia trabalho em respeito ao feriado religioso.

Com mais de 200 anos de existência e considerada uma das feiras de arte em cerâmica mais antigas da América Latina, a Feira de Caxixis deste ano começará na Quinta-feira Santa, dia 17, e vai até o Domingo de Páscoa (20). Mas, a tradição de moldar a argila, seja em imagens sacras, utensílios domésticos, peças de decoração ou nas famosas miniaturas chamadas de caxixis, é bem mais antiga.

Feira dos Caxixis movimenta Nazaré da Quinta Santa ao Domingo de Páscoa
Feira dos Caxixis movimenta Nazaré da Quinta Santa ao Domingo de Páscoa | Foto: Cedoc A TARDE / 27-03-1988

A feira funciona como o evento culminante de um legado ancestral. Esse conhecimento existe e é repassado de pai para filho desde os primeiros tempos da colonização e foi iniciada pelos povos indígenas tupinambás, como explica a pesquisadora Marluse Arapiraca dos Santos Cordeiro, professora do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em Santo Antônio de Jesus.

A professora Marluse, que estuda a Feira de Caxixis, acrescenta que esse evento contempla diversos aspectos, desde as relações do coletivo de oleiros que atuam nas olarias e fornos de queima até o lado econômico, da subsistência dessa comunidade, da movimentação turística durante a Semana Santa e mesmo fora desse período, passando também pelas questões históricas, de memória cultural e ancestral.

Forno a lenha para queimar cerâmica em uma olaria de Maragogipinho
Forno a lenha para queimar cerâmica em uma olaria de Maragogipinho | Foto: Geraldo Athaide / Cedoc A TARDE / 25-03-1989

“Os primeiros artesãos foram os povos originários tupinambás que residiam naquela área de Maragogipinho, de Aratuípe e região. Eles é que desenvolvem, que começam a fazer o tratamento do barro para que se torne argila. Ao mesmo tempo em que você tem a materialidade de lidar com elementos ligados à natureza, como o barro, a terra, o ar, o fogo, você tem também uma dimensão religiosa. Muitas dessas cerâmicas eram pensadas para um contato com o divino. Esses indígenas começam a dar um significado de diálogo, de evocação do divino, de relação com o sagrado”, detalha.

Ancestralidades

Com a chegada dos grupos de pessoas sequestradas em África e escravizadas para trabalhar nas fazendas do recôncavo, além das tradições indígenas, a confecção de cerâmicas em Maragogipinho também ganha esse elemento de ancestralidade negra, continua Marluse Arapiraca. “Quando você imprime nas peças uma simbologia religiosa, a gente tem inicialmente uma vinculação à cultura dos povos originários tupinambás, mas vai ter também uma relação com a ancestralidade africana. Muitas dessas peças de cerâmica eram utilizadas em rituais religiosos, em cerimônias”.

Segundo a professora da UNEB, havia a dimensão prática, com as cerâmicas do uso diário e doméstico e existia também uma funcionalidade, simbologia e linha tênue que fazia a ligação com o sagrado, o divino e o religioso. Na tradição dos caxixis agora ligada aos povos africanos, continua a pesquisadora, vale lembrar que naquela momento, na Vila de Maragogipinho - ainda no século XIX -, as pessoas escravizadas tinham folga no período da Semana Santa pelo fato daquela sociedade ser extremamente religiosa e fazer questão de ‘guardar os dias santos’. A ida de pessoas escravizadas à feira para vender caxixis se deve ao fato do evento ocorrer em um período em que não havia lida nas fazendas.

Mulheres trabalham pintando e burnindo peças feitas pelos oleiros
Mulheres trabalham pintando e burnindo peças feitas pelos oleiros | Foto: Cedoc A TARDE / 12-04-1992

“Como ninguém trabalhava, as pessoas escravizadas aproveitavam esse momento para coletar sobras de argila nas olarias ou extrair nos barreiros. Também produziam caxixis e aproveitavam para vender na feira, em Nazaré. Essa cerâmica começou a ser chamada de 'Louça de Deus' ou 'Louça de Santo'. A gente vai ter ali a produção de elementos simbólicos das religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, mas também santos católicos”, detalha Marluse, chamando a atenção para o fato da Feira de Caxixis, ainda nos dias de hoje, ter esculturas de santos católicos e de orixás feitos pelos santeiros de Maragogipinho.

Resistência

Com séculos de existência, a Feira de Caxixis passou por inúmeras transformações e já aconteceu até mesmo em paralelo à micareta de Nazaré. Marluse Arapiraca conta que nos anos 1970 houve a ideia de atrelar a feira a festividades de maior apelo, como um carnaval fora de época. A medida, no entanto, não foi bem vista, nem pela Igreja Católica, pois a feira acontece na Semana Santa, nem pelos oleiros. Nos anos 1990, a micareta foi remanejada para acontecer duas semanas após a realização da feira.

Reportagens publicadas em A TARDE nos anos 1990 dão conta da importância que a Feira de Caxixis sempre teve para a programação da Semana Santa no recôncavo. Em uma delas, de 19 de março de 1997, A TARDE anuncia o tema daquele ano para a feira, ‘Renasce a Tradição’, dando conta de que a estratégia passava a ser valorizar o aspecto histórico e cultural, em detrimento de atrações famosas.

“As manifestações da Semana Santa na Bahia e no Brasil continuam despertando a atenção das pessoas e atraindo visitantes durante a Quaresma. Um dos eventos de maior apelo turístico do recôncavo baiano é a tradicional Feira de Caxixis, em Nazaré das Farinhas, reunindo mais de 200 oleiros, que integrarão as festividades da Semana Santa na histórica cidade”, diz trecho do texto.

Mais adiante, a reportagem descreve o que os visitantes que fossem até Nazaré naquele ano encontrariam: “Misto de feira livre para a comercialização de uma diversidade muito grande de artesanato, mas sobretudo dos famosos caxixis, pequenas peças em barro cozido moldadas a mão, a feira também é palco para a apresentação de violeiros e repentistas, grupos tradicionais, capoeiristas e outras atrações”.

Marluse Arapiraca complementa lembrando que a Feira de Caxixis, ao longo da sua existência, ganhou uma dimensão muito grande como referência da história sociocultural de Nazaré, Maragogipinho e região. Para a pesquisadora, é relevante também pensar na arte dos oleiros como um legado social, cultural e histórico.

“Como é que esse conhecimento, esses saberes, fazeres, toda essa habilidade artesanal permaneceu e como é que ele se reafirma, se reinventa, retroalimenta nesse processo?”, questiona a professora, para logo depois responder:

“Porque vem dessa prática, dessa produção artística que envolve toda uma comunidade. Esse conhecimento permanece em suas bases, em sua essência, intacto, praticamente. Acontece, justamente, pelo fato de que você tem toda uma história oral em que esses conhecimentos são repassados entre as famílias. E esse conhecimento permanece porque faz parte da própria sobrevivência, é uma arte que tem um valor social, mas que também é impresso em um valor cultural”, define.

Edição de março de 1993 noticiou a programação da micareta de Nazaré logo após a Feira de Caxixis. Nos anos 1970 a micareta acontecia junto com a feira:

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Caderno de Turismo de 1997 destaca programação da Semana Santa no Recôncavo e a Feira de Caxixis, em Nazaré:

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Reportagem sobre a revitalização da Feira de Caxixis em 1998:

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*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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