Festa de São Lázaro é exemplo de diálogo interreligioso
Realizadas no último domingo de janeiro, homenagens unem ritos católicos e de religiões afro-brasileiras
No próximo domingo acontece uma das mais impressionantes festas do calendário de verão da cidade: a que faz homenagem a São Lázaro. De data móvel, ela acontece, anualmente, no último domingo de janeiro no santuário dedicado ao santo e localizado no bairro da Federação. É a primeira celebração de largo que acontece fora do Centro Antigo e da Cidade Baixa e apresenta um forte diálogo entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras. A festa está conectada a uma das mais tradicionais devoções da capital baiana, afinal a igreja é mais antiga que a do Bonfim. A primeira referência à Festa de São Lázaro nas coleções de reportagens de A TARDE é de 1919, o que demonstra o quanto ela já estava conectada ao calendário de celebrações da cidade.
A persistência da festa de São Lázaro é uma demonstração de força da devoção popular. A localização da igreja, por exemplo, estava distante das áreas mais centrais da cidade. Em seu entorno funcionou um lazareto, o nome que se dava a locais para onde se levavam doentes que não tinham nenhum tipo de amparo e geralmente estavam acometidos de doenças infecto contagiosas como a varíola e as de pele.
O registro mais antigo sobre a igreja, segundo o livro Santuário de São Lázaro – História e fé, cultura e missão, de Marcos Piatek, é de outubro de 1737, ou seja, oito anos antes do início da construção da Igreja do Bonfim. Além disso, no documento tem a expressão “que de novo se pretende fazer”, o que é um sinal de que o templo poderia estar passando por uma reforma ou ampliação.
No mesmo período desse documento sobre a igreja estavam chegando a Salvador, por conta da tragédia da escravidão, os povos originários do Reino do Daomé, onde atualmente está o Benim. Na Bahia esses grupos de povos ficaram conhecidos como jeje, nome inclusive de uma das mais importantes tradições do candomblé baiano. Os povos dessa região tinham como uma das suas marcas o culto a divindades especialistas na proteção e cura de doenças infecciosas e de pele, como Azoany, Sakpata, dentre outras. Na Bahia, essa devoção uniu-se à reverência a divindades semelhantes da tradição dos povos angola e nagôs, como Kavungo, Omolu e Obaluaê, respectivamente.
Tradição simbólica
Nas tradições da Igreja Católica, São Lázaro, diferentemente de outros santos, não foi uma pessoa, mas o personagem de uma parábola, que eram as histórias contadas por Jesus para deixar seus ensinamentos sobre uma determinada questão. Nesse caso, ele queria demonstrar o quanto a riqueza em vida atrapalhava uma percepção sobre o que acontecia após a morte.
Jesus contou a história de Lázaro, um homem pobre, com o corpo coberto de feridas que só encontrava alívio com ajuda de cachorros que as lambiam. Sua comida era o que caía da mesa do rico. Após morrer Lázaro vai para um lugar tranquilo tanto que está ao lado de Abraão, um dos mais importantes personagens no Antigo Testamento da Bíblia. Já o rico está atormentando em meio a muitos sofrimentos. Na narrativa presente no capítulo 16 do Evangelho de São Lucas, o desfecho da história deixa bem evidente que Lázaro foi premiado após a morte por todo o sofrimento que suportou em vida.
Até mesmo especialistas em culturas como Luis da Câmara Cascudo (1898-1986), em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, confundiram o Lázaro da parábola com o de Betânia, personagem de uma história contada no Evangelho de São João.
“Contemporâneo de Cristo, irmão de Marta e Maria, ressuscitado pelo Salvador, São Lázaro tem uma minoria devota contando-se assombros do orago. Livra da morte, da peste, da morte súbita e da miséria. Alguns hagiógrafos o dizem morto no ano 60 e outros, com atenção à tradição oral, afirmam que São Lázaro atravessou a Europa e foi o primeiro bispo de Marselha, na França, onde faleceu e está sepultado”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo, 1984, páginas 432-433).
Cascudo conta no mesmo verbete que no Ceará e no Maranhão uma promessa considerada poderosa contra doenças, sob a intercessão de São Lázaro, era a oferta de um jantar para os cachorros. De acordo com ele o procedimento padrão era reunir cachorros que viviam na rua, banhá-los, enfeitá-los com fitas e então oferecer-lhes comida em pratos colocados em uma toalha engomada no chão. No livro, Um Santo para cada dia, de Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, o único santo de referência é Lázaro de Betânia com a festa oficial em 17 de dezembro.
Força popular
Mas na devoção popular da Bahia, para fazer a conexão entre o santo católico e as divindades das religiões afro-brasileiras, o Lázaro da parábola oferece maiores possibilidades. Este tem chagas pelo corpo, ou seja, o resultado de doenças infecciosas e de pele. Não há registro sobre a doença que afetou Lázaro de Betânia a ponto de levá-lo à morte para ser ressuscitado por Jesus.
Imagino que pessoas escravizadas formavam a maioria dos internos dos lazaretos, pois a travessia forçada e em condições insalubres abriam espaço para as doenças infecciosas e de pele. Logo não é difícil imaginar as conexões entre as divindades de sua região de origem e a história da tradição católica, ou seja, uma aproximação que dava força e esperança a quem vivia várias mortes em vida.
A devoção a São Lázaro tem tanta força que mesmo com a reforma na liturgia católica oficializada no Calendário Romano Geral de 1969 ela se manteve. Após o Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965, a Igreja Católica resolveu tornar as festas de santos que não tinham elementos históricos muito precisos em locais, facultativas ou extintas. Mesmo sendo um personagem literário, a devoção a São Lázaro se manteve, especialmente no Brasil, com destaque para a sua festa estar incluída no importante calendário de verão de Salvador.
A aproximação com as religiões afro-brasileiras marcada principalmente por um rito muito característico da devoção- o banho de pipoca- continua a auxiliar essa resistência. Mas vale ressaltar que esse costume é também uma licença popular a um rito religioso. O banho de pipoca está ligado a processos usados para a purificação do corpo. Logo, portanto, ele não poderia ser feito na rua afinal basta terminar e se está de novo sujeito às energias para a qual se buscou purificação. É uma adaptação para o espaço público, ou seja, não é uma “limpeza” como se faz em um ambiente da intimidade dos terreiros.
Trata-se, portanto, de uma festa realmente marcada pelas licenças tomadas pelo povo e que promove um diálogo muito intenso entre práticas religiosas diferentes. E, esses espaços estão bem-marcados, pois embora na programação da festa aconteçam as missas com elementos afro-brasileiros, o banho de pipoca é oferecido fora do templo.
A festa de São Lázaro já teve outros elementos, como a lavagem e a visita a uma gruta em Ondina, que, inclusive, recebeu autorização para a entronização de uma cruz emitida pelo então arcebispo de Salvador, o cardeal Dom Avelar Brandão Vilela.
“O cardeal Brandão Vilela autorizou, ontem o Pe. José Danieluk e o Sr. Ademar Taner a promoverem, às 16 horas, do dia 30 do mês corrente, o assentamento da imagem de São Lázaro, na parte Interna da Gruta do Milagre, em Ondina, nos fundos do Bahia Othon Palace Hotel, prometendo uma visita, posteriormente, em virtude, de compromisso que já assumiu para aquela data. Na mesma oportunidade será colocado na parte mais alta da rocha onde fica a gruta, um cruzeiro medindo seis metros de altura”. (A TARDE, 27/1/1978,p.2).
A gruta chamada de Casa de Omolu e Obaluaê foi tema da edição dessa coluna publicada em 23 de janeiro de 2021. Em seu livro, Rumores de Festa, o professor Ordep Serra, ao analisar a Festa de São Lázaro, afirma que a devoção persiste com a frequência, sobretudo do povo de candomblé, ao Santuário. Com as devidas observações a ritos e determinações católicas, a longa convivência entre práticas religiosas no templo tem sido na base do respeito sob a direção da Congregação Redentorista que têm vasta experiência em cultos que atraem muitos devotos como nos santuários de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e Aparecida em São Paulo. Em tempos ainda de combate ao racismo e intolerância religiosos, a festa realizada em Salvador para São Lázaro é uma excelente lição de como é possível construir o respeito, sobretudo a partir das semelhanças, entre credos diferentes.
Confira as páginas de A TARDE:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia