Festas protagonizam estudos acadêmicos sob diversas perspectivas
Análises sobre eventos são realizadas por meio do conhecimento em campos científicos variados
No livro intitulado Orixás, Santos e Festas, o doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Vilson Caetano de Sousa Júnior, analisa a complexidade do encontro entre culturas religiosas a partir do estudo das festas de largo que acontecem em Salvador. A historiadora, pedagoga, especialista em História e Cultura Baiana e mestra em Cultura e Sociedade, Magnair Barbosa, tem participado dos projetos de pesquisa sobre manifestações culturais como a Barquinha, um rito que envolve celebrações nas águas, e de projetos para o reconhecimento de festas como patrimônio. O professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e doutor em Literatura e Cultura, Marielson Carvalho, é autor de Caymmianos Personagens das Canções de Dorival Caymmi, onde apresenta os perfis de pessoas que são facilmente encontrados nos eventos da cidade, especialmente os do período de verão. Estes são alguns dos exemplos que demonstram o lugar especial que as festas ocupam na vida social do Estado e, por isso, demandam produção de conhecimento sobre elas.
“Temos uma multiplicidade de festas na Bahia: carnavais, lavagens, festas de santo padroeiro, dentre outras. O que é interessante de perceber o quanto essas festas são diversas até porque temos um estado bastante diversificado. São 417 municípios e quando a gente percebe e entende que as festas são feitas pelos sujeitos inseridos em grupos sociais entendemos que temos um caldeirão muito interessante de festividades”, diz Magnair Barbosa, que tem pesquisas sobre o Carnaval de Maragojipe, Festa da Boa Morte, a Barquinha, rito que acontece no Quilombo da Enseada do Paraguaçu, dentre outras.
O encontro de culturas, especialmente as de fundo religioso, foi o que motivou inicialmente Vilson Caetano de Sousa Junior no trabalho que resultou no seu livro sobre as festas do verão baiano. “O que se chama sincretismo afrocatólico foi algo que muito me inquietou durante um longo tempo. Esse é um fenômeno universal, mas precisamos ainda descontruir a ideia de que ele se apresenta apenas no âmbito das religiões afro-brasileiras. O cristianismo, por exemplo é um grande sincretismo”, diz Vilson Caetano.
Ao abordar festas como a de Santa Luzia, São Lázaro, Bonfim, dentre outras em Orixás, Santos e Festas, o pesquisador, que é o babalorixá do Ilê Oba L´oke, apresentou o protagonismo de tradições como o candomblé nessas celebrações. “Eu busquei demonstrar a relação entre elementos católicos e elementos de origem africana de maneira mais positiva. Busquei mostrar que as mulheres negras e homens negros envolvidos nesses eventos devem ser vistos como protagonistas de suas histórias. Essas relações possíveis construídas entre o catolicismo e as religiões de matrizes africanas podem ser vistas para além de algo que é fruto do encobrimento e de uma imposição”, aponta Vilson Caetano.
Olhar musical
Cem barquinhos brancos/Nas ondas do mar/Uma galeota a Jesus levar/Meu Senhor dos Navegantes venha me valer/Meu senhor dos Navegantes venha me valer/A Conceição da Praia está embandeirada/De tudo quanto é canto muita gente vem/De toda parte vem o baticum de samba/Batuque, capoeira e também candomblé.
O trecho de Festa de Rua, é uma amostra de que a trilha sonora das comemorações baianas tem o protagonismo de Dorival Caymmi, como aponta Marielson Carvalho, professor de literatura e culturas afro-brasileiras, africanas e baianas na Uneb. “Nessa música especificamente ele descreve a saída do cortejo marítimo da Festa de Bom Jesus dos Navegantes no trecho da Conceição da Praia, mas logo em seguida o que ocorre na procissão terrestre. Nesta e em outras canções em que aparecem as festas percebemos como há uma forte ligação de Caymmi na descrição dessas cenas da cidade”, avalia.
Para o professor e pesquisador o campo de pesquisa das festas tem o potencial de apresentar as várias camadas das relações sociais, identidade cultural e outros aspectos da vida cotidiana na Bahia. “A festa pode representar as interações sociais de um povo. Ela traz consigo todas as fraturas, todas as fissuras, todas as distensões e associações que esses sujeitos têm naquele contexto. Então é importante que a gente estude a cultura e a sociedade baianas a partir das festas populares e não apenas daquelas mais conhecidas, mas em todas as suas formas e ambientes”, acrescenta.
Registros de jornal
Essa dinâmica das festas também foi contada por meio do jornalismo. Em Festa de Verão em Salvador, um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A TARDE, tese apresentada para o meu doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (PPGA-UFBA) sob orientação da professora Fátima Tavares, analisei 13 das festas que estão articuladas em um calendário que se apresenta como um aquecimento para o Carnaval: São Nicodemus, Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia, Bom Jesus dos Navegantes, Reis, Bonfim, Ribeira, São Lázaro, Pituba, Iemanjá, Itapuã e Lavagem de Ondina. Essa última tentava reproduzir na Área Verde do Othon Palace, um espaço privado, o que acontecia na rua. É também a única do conjunto que foi extinta.
Uma coleção formada por reportagens publicadas de 1912 a 2016 e outra de 2.690 fotografias permitiram contar muitos dos elementos que foram incorporados e descartados nessas festas, suas dinâmicas, inclusive de ocupação dos espaços da cidade, mas também as tensões decorrentes das disputas pelo protagonismo na organização desses espaços festivos. A análise me levou a reflexões sobre como a festa é um discurso importante para Salvador do ponto de vista dos negócios e da visibilidade da cidade que foi a primeira capital do Brasil, posto que perdeu em 1763 para o Rio de Janeiro, e que tem no patrimônio tanto arquitetônico como simbólico um dos trunfos para negócios sobretudo atualmente.
Os dados da pesquisa foram organizados além da tese em um site denominado Espelho de Festa. Nele é possível conferir outras informações em uma experimentação inclusive sobre a linguagem no Web Jornalismo, pois o conteúdo reúne dados, reportagens importantes, diário de campo, quiz, playlist, dentre outros elementos.
Essas contribuições somam-se a outros trabalhos como Rumores de Festa e Águas do Rei, publicações de Ordep Serra, doutor em antropologia, professor da Ufba e presidente da Academia de Letras da Bahia (ALB) e Alma e Festa de uma Cidade, de Mariely Cabral de Santana que analisa os impactos da Festa do Bonfim na ocupação e urbanização da península de Itapagipe. As festas de Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Rio Vermelho na análise da historiadora e professora da Ufba, Edilece Couto estão em Tempo de Festas. Em Inventário das Festas e Eventos na Baía de Todos-os-Santos organizado por pesquisadoras e pesquisadores do ObservaBaía (Fátima Tavares, Carlos Caroso, Francesca Bassi e eu) é possível conferir as mais variadas categorias de celebrações que ocorrem em Salvador e outras localidades dessa região.
Novos estudos sob outras perspectivas não param de surgir no âmbito dos negócios, das relações culturais, dos empreendimentos, das tensões sociais e raciais nesse espaço que só aponta o quanto se tem muito para contar sobre esses eventos. Pesquisar festas é sobretudo apreender a potencialidade dessas manifestações para desafiar até o que imaginamos já saber sobre elas.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
**A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE
Para saber mais: site Espelho de Festa