Folhetins clássicos sobreviveram publicados em A TARDE até o final dos anos 1930
Acervo centenário do jornal guarda em suas páginas histórias de amor, vingança e mistério escritas por grandes nomes da literatura mundial no século
O anúncio na capa da edição de 29 de setembro de 1915 avisa que O Estrangulador, “impressionante folhetim de Leon de Mancicet”, está perto do fim e só faltam três capítulos para o público acompanhar “as últimas emoções do seu enredo”. Em substituição ao romance francês, os leitores dos Folhetins de A TARDE passarão a ler uma novela especialmente traduzida para o periódico baiano, direto do russo: A Infância, de ninguém menos que Liev Tolstoi.
Nas primeiras três décadas do século XX, as páginas de A TARDE publicaram dezenas de folhetins, garantindo a sobrevida de uma tradição literária nascida no século XIX. As histórias de amor, vingança, heranças roubadas, crimes quase insolúveis, ladrões de bom coração, defuntas que voltavam da tumba e muito drama duravam meses e até passavam de um ano para o outro. Na falta da televisão e do streaming, o entretenimento dos baianos era garantido pelos capítulos no jornal.
O Estrangulador é uma história de traição e morte que começa com a despedida de dois amantes, Pedro e Luiza. Pedro vai se casar e Luiza, que acabou de dar à luz, já é casada com outro homem. Os dois se encontravam às escondidas na casa de Pedro. Ela afirma que o bebê não é do marido, mas do amante. E ele só quer se livrar da situação. A estreia do romance em A TARDE, no rodapé da página de anúncios, foi em 24 de abril de 1915. O folhetim manteve sua periodicidade diária, publicado capítulo a capítulo, até meados de outubro daquele ano, quando foi substituído por A Infância.
A novela de Tolstoi [Guerra e Paz e Anna Karenina], foi escrita entre 1851 e 1852. É a primeira obra do autor russo e tem traços autobiográficos. A Infância é a primeira parte da trilogia composta também por Adolescência e Juventude. A TARDE fez bastante publicidade da novela em suas páginas, sempre ressaltando a tradução exclusiva.
Ao contrário da tradição dos folhetins do século XIX, os romances em capítulos publicados em A TARDE não eram semanais ou quinzenais, mas diários, seguindo a periodicidade do jornal. Entre os autores que assinaram essas obras, além de Liev Tolstoi, havia outras celebridades literárias oitocentistas, como Xavier de Montépin, considerado um dos maiores novelistas franceses do período.
Dele, o jornal publicou As mulheres de bronze - um drama de sangue. O romance dramático narra a história de três irmãs, filhas de um fazendeiro rico que fica pobre depois de um golpe. Uma das filhas decide buscar vingança, desencadeando a trama. O romance foi acompanhado pelos leitores de A TARDE de 24 de julho de 1913 até abril de 1915. Foi um privilégio, pois ele só sairia em formato livro no Brasil em 1959, pela Oficina Gráfica Mercúrio, e em formato de calhamaço, com três volumes.
O pai do ladrão de casaca
O jornal também publicou A Rolha de Chrystal, de Maurice Leblanc, o criador de Arsène Lupin, o ladrão de casaca. O personagem é conhecido da geração atual devido à série Lupin, da Netflix, inspirada no personagem do ladrão francês impossível de capturar e com capacidades dedutivas e investigativas capazes de rivalizar com o britânico Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle.
Na chamada para A Rolha de Chrystal, na edição de 10 de dezembro de 1931, devidamente acompanhada de uma ilustração mostrando a luta entre dois personagens, A TARDE se refere ao folhetim como “um enredo de grandes lances dramáticos e tão intrincado que às vezes se afigura impossível uma sahida”.
Outro larápio famoso que apareceu nos Folhetins de A TARDE foi Raffles - O bom ladrão, criação do escritor britânico E. W. Hornung. O criminoso é um dos personagens de moral duvidosa, mas alma de anjo, surgidos entre a Belle Époque, no final do século XIX, e as primeiras décadas do século XX, como o próprio Arsène Lupin. E, assim como o colega francês, Raffles foi parar na tela, em um filme de 1930. Para os baianos, o ladrão era famoso desde 13 de setembro de 1920, quando o folhetim começou a ser veiculado diariamente nas páginas de A TARDE.
A publicação de Raffles aconteceu no contexto das alterações no projeto gráfico do jornal, anunciadas na edição de 9 de setembro de 1920. O texto revelava que “muitas secções novas e editoriaes apparecerão na nova A TARDE, com caracter permanente”. E, assim como ocorreu com a novela de Tolstoi, em 1915, o folhetim com a história do “bom ladrão”, cinco anos depois, ganhou tradução exclusiva para o jornal.
Além das traduções especialmente feitas para a sua sessão de folhetins, o jornal dava espaço para a literatura de autoras oitocentistas, embora os romances assinados por homens predominassem. Entre as novelas preservadas na coleção de edições centenárias de A TARDE está a dramática O Beijo da Morta, que estreou no jornal na edição de 31 de maio de 1929.
De autoria da romancista italiana Carolina Invernizio, O Beijo da Morta foi publicado originalmente em 1886, com grande sucesso no país de origem. A trama envolve uma irmã supostamente falecida e que foi criada longe do irmão mais novo, rejeitado pelo pai que acreditava que o menino era filho de um caso adúltero da esposa.
Folhetins modernos
Em um levantamento inicial para essa publicação, a equipe do Centro de Documentação e Memória (Cedoc) de A TARDE conseguiu rastrear folhetins entre 1913 e 1937. As histórias do começo do século XX seguem a tradição do romantismo do século XIX, com a prevalência de dramas familiares e tragédias, muitas com a carga do machismo típico da época, principalmente nas histórias envolvendo adultério.
Nos anos 1920/1930, embora os dramalhões garantam seu espaço, as histórias vão para o caminho da aventura, mistérios e crimes, como A Sombra Misteriosa, de 1932, e o folhetim policial Assassino de Si Mesmo, de John Pendleton, publicado em 1937.
O público, assim como faz atualmente com as novelas e séries, onde os comentários enchem os perfis das emissoras e estúdios nas redes sociais, também interferiam nos rumos dos folhetins desde o século XIX. Até derrubavam a continuidade de algum romance, imediatamente substituído por outro ao gosto da audiência.
“Os leitores mandavam cartas para os jornais reclamando, elogiando, perguntando porque aquela personagem tinha morrido e eles [autores] modificavam. Alencar [José de Alencar, autor de Iracema e de Senhora, entre outros] mudava os romances para atender aos leitores”, conta a professora doutora Alvanita Almeida, atualmente ocupando a direção do Instituto de Letras da UFBA.
Alvanita, que ensina disciplinas ligadas à literatura brasileira, acrescenta que autores clássicos e considerados do cânone literário nacional como o já citado José de Alencar, Machado de Assis e Joaquim Manoel de Macedo, publicaram inicialmente folhetins nos jornais brasileiros do século XIX, que depois passaram ao formato livro.
A professora aponta as semelhanças entre os folhetins e a estrutura narrativa das novelas da atualidade e das minisséries ou seriados que, no decorrer das temporadas, contam uma mesma história. Essas produções seriam folhetins modernos em formato audiovisual. “Observe como são as novelas. Há um eixo de uma história central e várias histórias no entorno desse eixo central. Há os protagonistas, geralmente com uma história de amor no centro, que enfrentam obstáculos até o final, que o público espera que seja feliz. O folhetim publicado nos jornais era isso também”.
Alvanita lembra ainda que no século XIX, como boa parte da população não era alfabetizada, mesmo entre as classes mais ricas, muitos folhetins eram lidos em serões nas casas de família. “Havia uma pessoa que sabia ler que tinha a incumbência de ler aquele romance, capítulo a capítulo, para os demais”, explica.
Em Salvador, leituras de folhetins também aconteciam até o começo do século XX no palco do antigo Teatro São João, que ficava na Praça da Sé e foi destruído em um incêndio em 1923, fato amplamente divulgado nas páginas de A TARDE.
Com o advento do rádio e depois da televisão, os folhetins adaptaram-se e migraram dos jornais para essas novas mídias. Alvanita Almeida recorda ainda das fotonovelas publicadas em revistas nas décadas de 1960/70.
Nos dias de hoje, os folhetins estão na TV, no streaming e na internet, seja em novelas fictícias e criadas totalmente por internautas, como Pé de Chinesa, de 2024, ou mesmo mantendo o formato em texto, como nos folhetins oitocentistas, só que agora em sites especializados em fanfics, as histórias criadas por fãs a partir de outras histórias ou personagens muito amados.
Um exemplo desse folhetim que migrou o texto das páginas do jornal para a internet é o desafio anual proposto pelo grupo Nyah! Fanfiction, criado em 2015 por jovens e adolescentes fãs de cultura pop. Nesse desafio, os integrantes precisam escrever uma história e postar um capítulo por dia, no decorrer de um mês. O tema é livre, mas além da postagem diária obrigatória, é preciso inserir em cada capítulo uma palavra indicada pelos moderadores do grupo.
As palavras escolhidas não são as mais comuns do nosso português cotidiano e coloquial, mas resgatadas de um vocabulário típico dos folhetins de antigamente. A história começa no primeiro dia do mês e termina, obrigatoriamente, no último dia do mesmo mês. Os autores têm de desenvolver a trama pensando no seu desfecho. Tal e qual a audiência que dava pitacos nos folhetins de Alencar e cia em mil oitocentos e bolinha, os leitores das fanfics do Nyah! também julgam se as tramas são do agrado e se as palavras oitocentistas resgatadas do dicionário, encaixam nessas tramas da era tecnológica com perfeição.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE