Golpe militar faz 60 anos e ainda tensiona cenário político brasileiro
Episódio provocou ruptura institucional que deixou marcas
“O sr. João Goulart saiu hoje às 11,45 horas, rumo ao exílio. Não se sabe ainda se vai para o Uruguai ou para o Paraguai. O ex-presidente brasileiro viaja em companhia de quinze pessoas. Às quatro horas de hoje, o sr. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara Federal, sr. Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, e líderes dos partidos, dirigiram-se ao Palácio do Planalto, onde quinze minutos depois o sr. Ranieri Mazzilli prestou juramento, empossando-se no cargo de presidente da República, considerado vago pelo presidente do Congresso Nacional, face à fuga do sr. João Goulart que seguiu para Porto Alegre em companhia e sua família, do general Assis Brasil e cinco membros do seu antigo Ministério”.
Os trechos iniciais do texto na capa da edição de A TARDE de 2 de abril de 1964 com o título “Goulart no exílio” é o desfecho do golpe militar de 1964. Iniciada em 31 de março e consolidada em 1º de abril, a rebelião de setores das Forças Armadas, com protagonismo para o Exército, evoluiu em 24 horas para um movimento articulado que depôs o presidente João Goulart e se desdobrou em uma ditadura que durou 21 anos.
O preço da escalada da ruptura do estado democrático brasileiro, que está completando 60 anos, foi alto e continua tensionando o contexto político. Houve repressão, mortes, sequestros, movimentos de luta armada e um expressiva número de desaparecidos em porões de tortura mantidos pelo regime estabelecido por militares, mas com apoio civil, como empresários, parte do clero católico e setores da classe média.
“O golpe de 1964 não é página virada. É cicatriz aberta e trauma porque existe um sentimento de frustração afinal a nossa transição política está inconclusa. Daí as dificuldades para a consolidação da democracia porque a nossa reabertura foi conciliada. E isso traz problemas”, analisa a doutora em História e professora titular da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Lucileide Cardoso.
Susto
Uma amostra do que foi apontado pela professora pode ser percebido na tentativa de golpe ocorrida em 8 de janeiro do ano passado. As investigações da Polícia Federal e a ação que é presidida pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), têm lançado a cada dia novas luzes sobre a quase repetição de 1964. No dia 8 de janeiro, eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro, derrotado nas eleições de outubro daquele ano, promoveram a invasão e quebra-quebra das sedes do Congresso, STF e Palácio do Planalto. A participação de militares e membros do governo do ex-presidente está sendo investigada com revelações que mostram o quão perto se esteve de uma repetição nos moldes de 1964. Se não fosse a rápida ação do governo Lula apoiada por outras instituições talvez houvesse mais uma ruptura da democracia novamente.
São desdobramentos de feridas ainda não totalmente cicatrizadas pelos 21 anos da ditadura militar que se seguiu ao golpe. Tanto que ativistas e familiares de presos, mortos e desparecidos criticaram o atual governo por não ter realizado cerimônias oficiais para marcar os 60 anos do golpe.
“A meu ver nós precisamos sempre lembrar desses 60 anos do golpe, realizar projetos, ensinar nas escolas, pois tem uma geração que sequer entende o que é uma ditadura”, diz a professora Lucileide Cardoso. Ela lidera um grupo de pesquisa sobre Memórias, Ditaduras e Contemporaneidades e tem realizado trabalhos sobre as semelhanças e diferenças entre golpes ocorridos no Brasil, Portugal e Espanha.
Trauma na República
O golpe de 1964 é definido pela professora Lucileide Cardoso como um trauma na história republicana brasileira por ter inaugurado uma ditadura de 21 anos. Vale também destacar que embora os militares tenham assumido o protagonismo eles não agiram sozinhos. Diversos setores da sociedade brasileira apoiaram, comemoraram e viram a chance de derrotar adversários políticos em disputas que já se arrastavam desde o fim do Estado Novo, uma outra experiência ditatorial do primeiro governo de Getúlio Vargas instalada em 1937 e que durou até 1945.
“Não podemos deixar de pensar no papel da sociedade civil. Já é consenso na historiografia que o golpe foi uma articulação entre civis e militares. Nos referimos, portanto, a 1964 como um golpe de estado civil-militar”, afirma a professora Lucileide Cardoso.
Tanto que diversos políticos estiveram na linha de frente de apoio ao golpe ou mantiveram silêncio. Destacam-se no primeiro grupo, o governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, o de São Paulo, Ademar de Barros, e o de Minas Gerais, José de Magalhães Pinto. Lacerda tinha a pretensão de ser candidato à presidência da República. O afastamento de João Goulart, mesmo que à força, era visto por ele como uma grande oportunidade, pois havia se tornado o maior adversário de Getúlio Vargas. Jango, como João Goulart também era conhecido, havia sido ministro do Trabalho, Indústria e Comércio no segundo governo de Vargas (1951-1954) e, mesmo sendo um grande proprietário de terras, era apontado como “comunista” por seus adversários. Isso quando o mais perto que tenha se aproximado dessa ideologia, provavelmente, foi em sua visita à China como vice-presidente de Jânio Quadros.
Foi de Minas Gerais, estado governado pelo banqueiro José de Magalhães Pinto, que saiu o comboio para depor João Goulart chefiado pelo general Olímpio Mourão. Este nem sequer chegou a figurar em cargos importantes depois do golpe que iniciou. Malvisto pelos colegas de farda que não o levavam a sério foi colocado de lado. O comando do novo regime teve novos protagonistas como os generais Humberto Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva e Ernesto Geisel. Os três tiveram mandatos como presidentes da República na condição de ditadores. O grupo incluiu também Golbery do Couto e Silva que já estava na reserva, mas esteve sempre próximo ao círculo de poder.
Os generais integravam setores das forças armadas que estavam insatisfeitos com a aproximação de Jango do movimento que reunia militares de baixa patente e setores do Partido Comunista Brasileiro (PCB) bem como seu discurso de fazer reformas de base, como a agrária. Já grupos classificados como de “esquerda” dentro do governo de Jango também planejavam intervenção no Congresso para possibilitar a sua reeleição e colocar limites nas ações dos militares de alta patente contrários ao governo. Ou seja: a tensão era intensa desde a renúncia de Jânio Quadros em 1961.
Naquele período era permitido votar em um presidente de um partido e o vice de outro. Foi dessa forma que se formou a esdrúxula composição do governo brasileiro em 1961: o populista Jânio, que se elegeu com um discurso de que iria varrer a corrupção e combater o comunismo, e João Goulart, representante do chamado trabalhismo, corrente política herdeira de Getúlio Vargas. Jânio renunciou após seis meses de governo, o que abriu uma crise inclusive com participação de militares que não queriam que João Goulart tomasse posse. Até um regime parlamentarista ele teve que aceitar antes da volta do presidencialismo por meio de plebiscito. Foi esse o presidente pressionado que não conseguiu resistir mesmo que em um primeiro momento tivesse apoio da estrutura militar do seu governo.
Desdobramentos
Geralmente, a visibilidade dos desdobramentos do golpe de 1964 são os relacionados às capitais brasileiras. Mas uma ruptura nas proporções da gerada pelo golpe teve diversos impactos também nos municípios, como mostrou o especial veiculado por A TARDE em 31 de março de 2004. Intitulado 1964-O Golpe na Bahia, o especial abordou os impactos da ruptura em cidades como Feira de Santana, Alagoinhas e Iaçu.
“Chico Pinto, prefeito de Feira de Santana, amanheceu no 1º de abril de 1964, uma quarta-feira, decidido. Iria resistir ao golpe deflagrado na noite anterior. Já tinha articulado as lideranças que o apoiavam, recebeu “reforço” de Salvador, onde o Exército já estava fazendo prisões. Líderes como Haroldo Lima, Péricles de Souza e Sérgio Gaudenzi entenderam ser Feira o melhor lugar para fazer a resistência na Bahia e para lá seguiram.”. (A TARDE, especial 1964-O Golpe na Bahia, p.9).
Não deu certo, assim como nas outras cidades.
“No interior da Bahia ocorreu a cassação de prefeitos e vereadores, mas também adesões. Tiveram as comemorações e as realizações das marchas em apoio ao golpe”, explica a professora Lucileide Cardoso. A historiadora tem orientado diversos trabalhos sobre o que aconteceu em locais como Santo Antônio de Jesus e escreveu um artigo sobre a resistência em Cruz das Almas, sobretudo por professores e estudantes da Escola de Agronomia, além da perseguição a professores e intelectuais de instituições como a Ufba. Milton Santos foi um deles.
São indícios como esses que só reforçam o lema que tem sido usado por sobreviventes e quem pesquisa o golpe e suas consequências: é preciso sempre lembrar para que não volte a acontecer.
CONFIRA AS PÁGINAS DE A TARDE:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia