Há 120 anos, Simões Filho inovou com a apresentação de O Papão
Revista literária teve o humor como estilo principal de linguagem
O ano de 1904 começou com novidades no campo dos periódicos que circulavam na capital baiana. Dois jornais de prestígio no período – Jornal de Notícias e Diário de Notícias- anunciaram que estava chegando uma nova publicação voltada para a literatura e outras artes, mas com linguagem temperada pelo humor. Denominada O Papão, a publicação era dirigida por um jovem de 17 anos: Ernesto Simões Filho. A revista literária já era a segunda experiência de Simões Filho com o jornalismo e uma preparação para o lançamento de A TARDE, oito anos depois, seu grande projeto.
“Tratava-se de uma inovação alegre e inédita, com um caráter humorístico, mas também voltada para a literatura e as artes”, destaca o presidente da Academia de Letras da Bahia (ALB), Cláudio Veiga” (A TARDE, Cultural 4/12/2004, p.10).
O Papão foi inspirada em O Malho, uma revista que circulava no Rio de Janeiro. O periódico tinha 24 páginas e manteve um total de 30 números, dos quais seis, contaram com a direção de Simões Filho. A revista foi analisada em uma monografia do ensaísta, doutor em literatura e professor emérito da Ufba, Claudio Veiga (1922-2011). Intitulada Um Retrato da Bahia em 1904- O Papão, a análise do escritor, que presidiu a Academia de Letras da Bahia (ALB) foi publicada em 1986 durante as comemorações do centenário de Simões Filho.
“Além de Simões Filho, também atuavam na revista Mário Imbassahy da Silva, Álvaro Reis, Durval de Moraes, Euricles de Matos, Argileu Silva, Galdino de Castro, Filemon Menezes e Presciliano Silva, que, assinando como Bailon, é autor da figura do Papão que ilustra o primeiro número da revista. Sua primeira redação funcionou no nº 22 da Rua Chile”. (A TARDE, Cultural, 4/12/2004, p.10).
O primeiro número de O Papão circulou em 23 de janeiro de 1904. Dedicada à crítica literária, a revista tinha espaço também para a música com a publicação de partituras, crônicas e análise política. Mas a tônica era a linguagem satírica, um estilo que o historiador Cid Teixeira costumava apontar como resistente nos jornais baianos até o início da década de 1950.
O editorial de O Papão, além de afirmar que o objetivo da publicação é rir de tudo, de todos e até de sim mesmo, lançou uma provocação:
“Enquanto nosso mestre e irmão mais velho, O Malho, vai rindo e malhando em todas as bigornas, nós, desta formosa Rua Chile, onde sentamos nos arraiais, com uma fome pantagruélica, escancarando as nossas faces gargantuescas, vamos papando todos os ridículos, todas as mazelas da Heroína de Seios Titânicos, da Princesa das Montanhas, da Pátria de Moema e Castro Alves, da Primogênita de Cabral, da Atenas Brasileira. Não serão somente os meninos que tremerão, com medo d’O Papão, mas também os políticos e graúdos, de consciências limpas como as ruas de nossa cidade, alias as faces do Dique de S. Salvador; cristalinas como as águas do Rio das Tripas, sentirão amargos de boca ao verem as suas mazelas e ridículos arrastados para Rua da Amargura, cortados, esfacelados, mastigados e triturados pelos amolados dentes da boca formidável do horrendo e ruanesco Papão”. (A TARDE, Cultura, 4/12/2004, p.10).
Inspiração
A adoção da linguagem satírica já tinha dado a Simões Filho um desafio. Aos 14 anos, a fundação de O Carrasco, que era um jornal de estudantes do colegial, por pouco não lhe rendeu uma expulsão. O lançamento de O Papão é mais um episódio na carreira de um empresário de jornal que veio de uma trajetória diferente.
Geralmente, os jornais em Salvador eram dirigidos por jornalistas ligados a um campo político, como o seabrismo, termo usado para os seguidores de J.J.Seabra. Simões Filho ingressou na política- foi deputado e ministro-, mas quando a sua condição de jornalista e proprietário de jornal já estava consolidada.
Os jornais comerciais e que começaram a separar opinião de informação começaram a ganhar força no início do século XX.
“Na passagem do século XIX para o século XX a imprensa se tornou mais empresarial. Começaram a surgir os jornais com grandes tiragens que buscavam uma ampliação de público. É um período de altas taxas de analfabetismo e, portanto, a aposta foi em uma linguagem mais leve, mais divertida acompanhadas de ilustrações para envolver novas camadas de público”, explica Hérica Lene, jornalista, doutora em Comunicação e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Apostas como as feitas por Simões Filho ao fundar A TARDE deram a alguns desses títulos o vigor para quebrar seguidas marcas de longevidade. A TARDE, por exemplo, prestes a completar 112 anos, se integra a um seleto grupo de jornais brasileiros, analisados pela professora Hérica Lene que não apenas se tornaram centenários, como já ultrapassaram a primeira década após essa marca. “São títulos que trazem tradição e conquistaram a credibilidade. É uma herança muito importante para continuar a conquistar leitores que, mesmo em meio a tantas transformações nesse campo, confiam nas informações desses periódicos. Isso é um capital social e econômico muito importante”, acrescenta.
Além de ter fundado periódicos com características múltiplas, Simões Filho era um entusiasta de atualizações técnicas e tecnológicas para fazer jornais. A TARDE foi, por exemplo, o primeiro jornal baiano a utilizar os clichês, a técnica para reprodução de imagens. A primeira sede própria do jornal, inaugurada em 1930, na Praça Castro Alves, foi construída para abrigar o que era então considerada uma estrutura altamente moderna para impressão.
O Papão tinha como símbolo um ogro vestido a rigor. O desenho foi atualizado para três anos de cobertura de Carnaval realizada por A TARDE inspirada na linguagem editorial e gráfica de O Papão. Até mesmo a assinatura com pseudônimo dos autores dos textos, usada na revista, foi adotada.
Em 2005, o primeiro Carnaval de A TARDE inspirado na revista literária teve como tema os sete pecados capitais. No ano seguinte foi a vez do simpático ogro ir até o Olimpo visitar os deuses gregos e, em sua última edição, o cinema baseou as seções.
“A TARDE traz para o leitor a cobertura bem-humorada do Carnaval do Papão. Os fatos da grande festa serão contados em tom leve e satírico por 170 profissionais de imprensa”. (A TARDE, 15/2/2007, capa).
O Papão foi tão marcante que continuou a ser lembrada em A TARDE. Só nesta coluna ela está sendo protagonista pela terceira vez. A primeira foi em 2021, depois no ano seguinte com destaque para as coberturas de Carnaval inspiradas no estilo da revista. É uma amostra de como a memória no jornalismo tem potencialidades para ser constantemente atualizada.
Confira as páginas de A TARDE:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia