Há 25 anos, o ‘Bug do Milênio’ deu xabu e adiou o fim do mundo
Erro que não previa virada dos dígitos de 1999 para 2000 causou apreensão, mas planejamento prévio evitou o apocalipse tecnológico
Depois que o boato de que o fim está próximo se espalha no morro, o cidadão chuta o pau da barraca e cai na farra. Pega na mão de quem não conhece, beija na boca de quem não deve, dança de maiô e depois de gastar uma fortuna com um ‘gajo’ ingrato, descobre que é tudo alarme falso. E ele que conviva com a ressaca moral. Brincadeiras à parte, porque a história dessa noite de excessos é a letra de ‘E o mundo não se acabou’, samba de 1938 do baiano Assis Valente, o mundo já viveu um clima tão apocalíptico quanto o da canção. Foi há 25 anos, com o Bug do Milênio, esperada pane generalizada nos computadores de todo o planeta que, felizmente, não aconteceu.
Na época, o Banco Central chegou a mandar a Casa da Moeda imprimir R$7 bilhões em cédulas, no decorrer do ano de 1999, prevendo uma possível corrida aos bancos em dezembro para saques emergenciais, diante da anomalia anunciada. Mas, embora às vésperas da virada do ano e nos primeiros dias de janeiro de 2000 as filas dos bancos estivessem no modo caracol ativado, ou seja, dando voltas de tão grandes, os saques, segundo a instituição divulgou na ocasião, foram os esperados para a época e o dinheiro extra sequer precisou ser colocado em circulação.
O Banco Central não foi a única instituição a se precaver contra o Bug do Milênio. No mundo todo, governos e empresas, principalmente de serviços essenciais, criaram planos de contingência para impedir o caos generalizado que uma falha desse tipo certamente acarretaria. “Se investiu muito em serviços de proteção. Imagino que muitas empresas ganharam muito dinheiro com isso, porque no mundo inteiro se pagou muito pelos serviços para proteger os programas”, diz o professor Ricardo Moreno, mestre e doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Ele explica o que foi o tão falado Bug do Milênio: “Os computadores, na década de 60/70, trabalhavam com economia de bytes e a programação da data era feita de forma simplificada. Havia uma previsão e um temor de que houvesse uma pane por causa da virada do ano de 1999 para 2000. Os computadores não estavam programados para essa virada de dígitos e, provavelmente, retrocederiam para o ano de 1900”.
Uma falha de programação lá dos primórdios da informatização, em resumo. E que poderia afetar todos os serviços vinculados ao uso de computadores. Isso porque, de acordo com Ricardo Moreno, os programas vigentes não entenderiam a virada de dígito dos anos 1900 para os anos 2000, iniciando uma contagem diferente.
“Se falou muito que os computadores poderiam afetar a comunicação dos aviões e isso provocaria acidentes aéreos”, complementa o pesquisador.
O fim está próximo
A expectativa era que o bug acontecesse exatamente à 0 hora de 01 de janeiro de 2000. No rastro das previsões mais pessimistas sobre falhas tecnológicas globalizadas e que provocariam uma grande bagunça nas comunicações, serviços e finanças mundiais, a humanidade reviveu sentimentos experimentados na Idade Média, quando ocorreu a virada do ano 999 para o ano 1000 depois de Cristo.
Naquela época, profecias anunciavam o fim do mundo nessa troca de dígitos que, aliás, nem era ainda a virada do século X para o XI, embora muita gente no período cometesse esse equívoco na contagem. Os séculos e milênios sempre viram no ano ímpar, ou seja, o primeiro ano, do primeiro século, do primeiro milênio começou no ano 1 e durou até o ano 100. O primeiro ano do século II, por sua vez, começou no ano 101 e terminou no ano 200, e assim por diante, até chegar ao ano 1000, o último do primeiro milênio depois de Cristo, conforme o calendário seguido no mundo cristão.
Por essa lógica, a virada de 999 para 1000 era só uma virada de ano como outra qualquer, pois o século e o milênio novo só começariam, de fato, no ano 1001. Mas, a troca de casa decimal foi interpretada de uma forma meio mística pelas pessoas da Idade Média e criou-se o mito do apocalipse.
Com o Bug do Milênio, mil anos depois, que sequer deveria ter sido batizado com esse nome, já que o novo milênio começaria a ser contado só em 2001, a ideia era parecida. Mesmo com todo o avanço tecnológico que separava o século X do século XX, muita gente se deixou levar pelo temor de que a pane nos computadores poderia significar “o fim da aventura humana na Terra”, como diz a letra de outra música, a bem conhecida ‘Pequena Eva’. Faz sentido dentro da lógica do imaginário coletivo da humanidade, se pensarmos, por exemplo, que quase toda distopia literária ou cinematográfica sempre começa com o mundo regredindo tecnologicamente.
“Eu acredito que esse temor do fim do mundo tem a ver com o tipo de filosofia e tipo de concepção do mundo ocidental. Nós temos uma concepção de mundo muito binária, muito metafísica, de causa x efeito, de certo x errado, de enxergar o mundo sempre em dois polos. Se há a existência, vai haver a destruição. O fim do mundo é algo palpável dentro dessa concepção”, define o professor Ricardo Moreno.
Segundo ele, o sentimento apocalíptico da Idade Média, na virada para o ano 1000, também aconteceu em uma proporção menor na mudança do século XIX para o XX, iniciado em 1901 e, na virada de 1999 para 2000, o ano do Bug do Milênio, embora o século XXI tenha começado de fato em 2001 e só vá terminar em 2100.
“Na chegada do século XXI, como havia a questão do Bug do Milênio, isso ganhou uma dimensão maior por causa desse tipo de teoria, da interpretação de textos e profecias”.
Planejamento salvador
Embora o mundo não tenha acabado em 01 de janeiro de 2000, não é como se não tivesse acontecido nada durante o esperado Bug do Milênio. O professor Ricardo cita problemas em uma usina japonesa, inclusive com risco de vazamento de radiação, por conta da falha tecnológica ocasionada pela virada de dígito. “Em alguns poucos locais da Europa, principalmente, que utilizava muito mais o computador do que nós, os serviços de transporte público tiveram alguns níveis de dano. Outros serviços foram afetados, mas nada que se aproxime do alarde que foi feito na época”, acrescenta.
Embora o Brasil fosse menos informatizado que o Japão ou os países europeus no final de 1999, por aqui muita coisa já operava com base em computação e o que nos salvou do bug foi uma política de prevenção iniciada dois anos antes da data fatídica.
Como mostram reportagens de A TARDE na época, enquanto o Banco Central monitorava todos os bancos brasileiros, públicos ou privados e, inclusive, aqueles que possuíam agências no exterior, na Bahia, medidas de proteção também eram adotadas pelo Governo do Estado e pelos setores produtivos, como a indústria.
“No Pólo Petroquímico de Camaçari, 23 empresas do Complexo Básico mantiveram suas operações e 11 realizaram parada técnica preventiva, prevista no Plano de Contingências Comuns, com plantões que envolveram 2.600 pessoas, sendo 1.800 técnicos e 800 de apoio”, diz trecho de uma reportagem de página inteira publicada na edição de 04 de janeiro de 2000 em A TARDE, com um balanço do Bug do Milênio por aqui. No texto, é informado ainda que as empresas do Polo tiveram o cuidado de monitorar equipamentos de automação industrial de origem japonesa porque a virada do ano no país de origem das máquinas ocorreria antes por conta do fuso horário.
A mesma reportagem especial com o balanço do bug informava que o Governo do Estado havia desenvolvido um plano de contingência através da Prodeb - Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia, seguindo orientações do Programa Ano 2000, do então Ministério de Orçamento e Gestão, do Governo Federal. Em todo o país, na época, foram investidos R$10 bilhões na prevenção ao bug.
“O último grande desafio ao sistema foi enfrentado ontem à noite durante os procedimentos de compensação bancária e das clearing houses (serviços de compensação das corretoras das bolsas), que também transcorreu sem registrar qualquer problema”, diz outra reportagem de A TARDE, em 04 de janeiro de 2000, sobre a volta das operações financeiras no primeiro dia útil do ano novo.
Como bem resumiram funcionários das concessionárias de energia elétrica e telefonia que operavam na Bahia em 2000 e foram ouvidos por A TARDE logo no dia seguinte à possível catástrofe que não aconteceu: “Deu bug no bug”.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE