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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado Saturday, 05 de August de 2023 às 5:30 h | Autor:

Há 90 anos, a Igreja da Sé foi totalmente demolida

A TARDE registrou a dinâmica dos últimos dias do 1º templo a servir como sede da diocese primaz do Brasil

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Igreja foi demolida em 1933 em nome da modernização e  para dar passagem a bondes, entre apoios e críticas
Igreja foi demolida em 1933 em nome da modernização e para dar passagem a bondes, entre apoios e críticas -

Conhecida por reunir igrejas belas e luxuosas, a ponto da música alegórica de Dorival Caymmi ser ainda considerada fato ao afirmar que existe uma para cada dia do ano, Salvador perdeu, em 1933, uma das suas mais antigas. Criada para sediar a primeira diocese do Brasil, a Igreja da Sé foi demolida há 90 anos em 7 de agosto.

As edições de A TARDE registraram a crônica do dia a dia de um acontecimento que, na descrição das reportagens, foi traumático para parte da população e de intelectuais que se colocaram na defesa de um dos templos relacionados à história de fundação da cidade.

Já no dia 1º de agosto, uma reportagem na capa de A TARDE anunciava que restavam para a igreja apenas algumas horas. No dia seguinte, o tom da cobertura deu maior visibilidade aos protestos que começaram a acontecer diante da certeza de que a igreja iria desaparecer. A abertura das sepulturas, inclusive de bispos, foi um ponto de comoção com base nas descrições que aparecem na reportagem.

“Noite já hontem e a Sé ainda estava cheia. Havia gente que protestava. Não queria que os santos fossem em caminhões. Era um sacrilégio. Outros que procuravam as igrejas examinando o fundo das sepulturas dos bispos ali escancaradas. Senhoras chorosas que se ajoelhavam deante das sepulturas veneradas e que até ali correram ao boato de que seriam os restos de seus antepassados baralhados, misturados e atirados a uma valla comum. Vimos tres senhoras respeitáveis deante da pedra em que se lia o nome de Egas Moniz de Aragão. Defronte do altar do Santíssimo, o do voto dos Bandeirantes o acaso formara um quadro impressionante: deitada no seu nicho com o seu vestido alvo de seda, N.S. das Dores parecia dormir. Ao lado de pé Jesus orava no horto das Oliveiras, vendo-se a apparição de um anjo que revelava o Redemptor da Humanidade”, (A TARDE, 2/8/1933, p.2).

A descrição dramática é adequada à saga da Igreja que foi a segunda construída em Salvador. A primeira foi a consagrada, na Cidade Baixa, à Nossa Senhora da Conceição da Praia. O outro local para oração foi construído de taipa e coberta de palha dentro da cidadela fortificada. Em 1551 foi criada a diocese da Bahia com a indicação de Dom Pero Fernandes Sardinha como primeiro bispo.

“É certo que, já em 1551, no dia 10 de dezembro, o Rei Dom João III recomendava ao Governador Tomé de Souza especial atenção e ‘toda a Ordem para que a obra da dita Sé vá adiante, e se acabe com a brevidade que for possível, para que os Officios Divinos se possam nella celebrar com o devido acatamento”. (Memória da Sé, Fernando da Rocha Peres, p.82).

O livro de Fernando da Rocha Peres é uma referência sobre os acontecimentos que cercaram a igreja demolida. Monografia para o concurso em que se tornou professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Rocha Peres, que é historiador, poeta e escritor, estabelece não apenas a trajetória da igreja, mas o contexto em que se deu a sua demolição. Trata-se de uma batalha ainda hoje em vigor: a discussão sobre uso do antigo desconsiderando-se, muitas vezes, o seu aspecto simbólico para reforçar a defesa da funcionalidade do agora. A Sé ruiu porque atrapalhava a passagem dos bondes e já não tinha ofícios religiosos porque estava há muito sem cuidados ou reforma.

A duração da construção da igreja, a partir de 1552, é difícil de precisar. Segundo o livro de Rocha Peres, mesmo após cinco anos do início dos trabalhos, ela ainda não estava concluída. Ao longo do tempo, a igreja foi ganhando uma certa opulência, afinal era a sede do bispado.

Edições de A TARDE registraram o passo a passo até a demolição total
Edições de A TARDE registraram o passo a passo até a demolição total | Foto: Cedoc A TARDE

Ameaça constante

Durante a ocupação holandesa de Salvador, no século XVII, assim como outras igrejas, a Sé esteve em meio às batalhas, inclusive com prejuízos à sua estrutura.

A Sé passou por períodos difíceis ao longo do século seguinte sofrendo seu mais duro golpe em 1765, durante a gestão de Dom Frei Manuel de Santa Inês que decidiu passar a ter como catedral a capela do extinto Colégio dos Jesuítas. É esta a igreja sede do bispado até hoje.

Em 1912, o governo de José Joaquim Seabra teve como um de seus cartões de apresentação a requalificação urbana de Salvador. No início daquele ano, a cidade havia sido bombardeada com danos para alguns dos equipamentos históricos, como a Câmara Municipal e o Palácio Rio Branco. A grande obra de Seabra tornou-se a ligação entre o Centro Histórico, a partir das imediações da Rua da Ajuda, e um dos chamados arrabaldes da cidade, a Barra. Foi o projeto para construção da Avenida Sete.

Aquele era o período de cidades com grandes avenidas como o Rio de Janeiro. Seabra havia sido ministro da Justiça e Negócios Interiores, de Rodrigues Alves, e de Obras e Viação Pública, de Hermes da Fonseca. Conhecia, portanto, o discurso sobre modernização a partir da imitação de cidades europeias, aliado ao de salubridade, com base na ideia de que ruas mais amplas ajudavam no controle sanitário contra as doenças.

O plano tido como modernizador na gestão de J.J. Seabra encontrou no caminho o patrimônio arquitetônico de Salvador formado por casarões, sobrados e muitas igrejas. “Os templos católicos apresentavam um impeditivo da construção desta avenida. O casario da cidade colonial foi demolido exatamente para favorecer a circulação do bonde da Companhia Circular da Bahia”, acrescenta Rocha Peres.

O imóvel que escapou por um triz da política de requalificação urbanística foi o complexo que inclui o Mosteiro de São Bento, o mais antigo da congregação nas Américas. O belo conjunto só não foi abaixo por conta da determinação do abade D. Majolo de Caigny (1862-1939), que promoveu uma resistência contra a demolição por meio de manifesto, dentre outras medidas. Ainda assim, o conjunto perdeu uma das sacadas que dava para a Avenida Sete.

Já a Igreja de São Pedro dos Clérigos foi demolida. Em seu lugar foi construído o templo mais moderno hoje localizado na Piedade. No lugar da igreja antiga foi instalado um relógio como se fosse uma reverência ao tempo interrompido no caso da antiga igreja.

A Igreja da Sé estava na lista inicial de demolição, mas ela foi adiada por algumas décadas. Uma questão que envolvia uma discussão sobre propriedade entre a arquidiocese e a Irmandade do Santíssimo Sacramento, no governo de Dom Jerônimo Tomé da Silva, deu ao templo mais alguns anos.

“Dom Jeronimo preparou todo o arcabouço eclesiástico para a demolição da igreja. Isso não aconteceu porque houve uma reação muito grande da intelectualidade baiana. Os jornais ficavam a favor da demolição o que é lamentável, mas não impedia que saíssem publicados artigos de vários intelectuais, como Pinto de Carvalho, que é o principal defensor da igreja e de documentos vários que foram produzidos por um grupo muito ativo existente dentro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia”, diz Fernando da Rocha Peres.

O que não se efetivou na administração de Dom Jerônimo Tomé da Silva finalmente ocorreu em 1933 em um acordo entre a Companhia Circular e o arcebispo Dom Augusto Álvaro da Silva, no valor de trezentos contos.

“Depois de vinte e um anos de resistência (1912-1933), o templo afinal iria cair para ceder passagem aos tramways da Circular e para gratificar aqueles que sonhavam com uma cidade moderna”. (Memória da Sé, Fernando da Rocha Peres, p.191).

O fim da Sé

Na cobertura sobre o fim da igreja, os defensores da modernização em detrimento da memória e do patrimônio estiveram representados em textos como o publicado na edição de A TARDE de 3 de agosto de 1933:

“Mas a Sé cae pela própria lei do tempo que lhe marcou a existência. Como antes delia caíram outras. Conservemos, porem, aquellas que, situadas fora do trafego e incomparavelmente mais significativas representam a história da cidade que, queiram ou não, continuará para frente, moderna e monumental, ao envez de permanecer, com sacrifício de sua população como museu do Brasil para o deslumbramento dos raros turistas que são levados, contra a vontade dos da terra, a apreciar as “belezas” da Sé. De resto enquanto gira o realejo das lamentações, consumam-se as obras do progresso. Já hoje as lages da escadaria principal foram levantadas. Poeira dos séculos! É isto que chamam de relíquia histórica. Começou, pois, a demolição com todas as regras usadas. Já agora não para mais”. (A TARDE 3/8/1933, p.2)

E realmente não parou, mas nem por isso as vozes de crítica à demolição silenciaram. Pinto de Carvalho, Xavier Marques, Godofredo Filho, manifestações coletivas, como dos estudantes Wanderley Pinho, Manuel Augusto Pirajá da Silva, dentre outros denunciaram o que consideravam inaceitável. Na capa da edição de A TARDE de 5 de agosto de 1933 foi publicado o protesto enviado por Carlos Spínola à Associação Brasileira de Imprensa, a qual era associado.

Apesar dos protestos, como A TARDE noticiou em 7 de agosto de 1933, ocorreu uma procissão em que as imagens da Sé antiga foram levadas até a catedral. O arcebispo, dom Álvaro Augusto, acompanhou a movimentação, de acordo com o texto, da janela do palácio arquiepiscopal vizinho à igreja. Na mesma edição há a notícia de que os trabalhos de demolição estavam na fase de finalização.

Para lembrar a memória do templo, na área que ele ocupou, está o chamado Monumento da Cruz Caída, concebido pelo artista baiano Mário Cravo Júnior e inaugurado em 1999. Parte do acervo da Sé – pratarias, mobiliário, peças que decoravam a igreja, documentos, como o da transação de desocupação da área – podem ser vistos no Centro Cultural Palácio da Sé. São marcos das histórias que mostram que a igreja pode ter ruído, mas a memória dos erros em relação ao imóvel e as consequências apontadas inclusive pelo espaço vazio onde ela esteve ao lado do imponente palácio não deixam cair no esquecimento o quão equivocado pode ser um debate que opõe antigo e moderno, sem análise das várias perspectivas possíveis.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

* A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

Para saber mais: Memória da Sé -Fernando da Rocha Peres, Salvador, Editora Corrupio, 2009.

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