História de Salvador sobrevive em muitas versões no acervo de A TARDE
Fotos e coberturas especiais como a do quarto centenário, em 1949, recontam a fundação da capital destacando protagonistas

Paramentadas com suas vestes de gala e joias, nove integrantes da Irmandade da Boa Morte assistem ao desfile dos personagens históricos que evoluem pela passarela armada no Campo Grande. As irmãs da entidade fundada por mulheres negras ainda nos tempos coloniais, são as convidadas do governador Octávio Mangabeira para as comemorações do quarto centenário da fundação de Salvador, em 1949. Elas vieram de Cachoeira, no recôncavo baiano, especialmente para a ocasião, e acompanharam o cortejo ao lado de políticos, membros da sociedade e da população.

A cobertura de A TARDE do evento destacou a presença das irmãs da Boa Morte e a foto delas, solenes e altivas, estampou uma das duas capas da edição de 30 de março de 1949. Na outra capa, aparece em destaque o próprio Octávio Mangabeira e, na página interna com a reportagem sobre o cortejo, o jornal registrou flagrantes do desfile e dos figurantes caracterizados como personagens ligados à história baiana.

O evento do quarto centenário parou totalmente Salvador, pois até então, nunca havia ocorrido um desfile daquela magnitude na cidade. Nas ruas, a população acompanhou a evolução das alas com emoção e até o sol fez a sua parte, já que pela manhã havia chovido e no começo da tarde, na hora do evento, o céu estava limpo e com aquela luminosidade típica conhecida dos soteropolitanos. Se fosse nos dias de hoje, a parada cultural que passeava por quatro séculos de história seria totalmente instagramável.
“A cidade não mais esquecerá do cortejo histórico, que ontem profundamente a emocionou, proporcionando-lhe um espetáculo de cultura e arte sem precedentes no país. Tudo contribuiu para que fosse resplandecente a beleza dos carros e dos vestuários, a elegância dos jovens figurantes, a seriedade do conjunto, a imponência do desfile, até a tarde brilhante, de sol, depois da manhã chuvosa, que parecia dever prolongar-se em mau tempo, para maior ansiedade do público, cujos aplausos deram a essa festa da Bahia uma vibração incomparável”, destaca o repórter encarregado da cobertura do evento, logo no parágrafo de abertura do texto.
O quarto centenário de Salvador também foi responsável por inspirar o batismo da Avenida Centenário, construída durante o governo de Mangabeira e com Wanderlei de Araújo Pinho à frente da prefeitura. Naquela época, a obra da avenida serviu de base para os projetos futuros de reurbanização da capital, que no final da primeira metade do século XX perdia aos poucos seu ar colonial.

Além da edição histórica da festa dos 400 anos, o acervo de A TARDE, resguardado no Centro de Documentação (Cedoc) do jornal, tem uma vasta coleção de fotografias, reproduções de imagens do século XIX e documentos que, ao longo da existência de Salvador, contam a história da cidade em suas muitas versões e protagonismos. Fotos aéreas, por exemplo, feitas em épocas diferentes, dão uma ideia de como a cidade se expandiu nas últimas décadas.
Protagonistas
O fato da irmandade ter sido convidada por Octávio Mangabeira para o desfile demonstra o prestígio das mulheres da Boa Morte e a força da herança cultural que elas representam. A presença das irmãs em uma das capas da edição histórica de A TARDE sobre o quarto centenário também é uma demonstração da vanguarda do jornal em destacar as outras heranças culturais que formaram a capital, construída por Tomé de Souza em 1549 e que, neste sábado, completa 476 anos.

O historiador e professor Rafael Dantas afirma que quase cinco séculos após a construção da cidade é interessante refletir sobre os outros protagonistas da nossa história, por mais que o processo colonial tenha sido marcado também e, principalmente, pela violência. Mas, acima de tudo, também há um marcador importante de resistência de indígenas e africanos nos embates com o colonizador.
“Toda a realidade rica que nós temos hoje, do ponto de vista da cultura, bebe diretamente das influências indígenas, africanas e europeias. Cada uma dessas influências margeadas por intricadas nuances de traços do cotidiano, de referências alimentares, religiosas, de uma multiplicidade de atividades culturais que, fruto da sua resistência e de todos aqueles que fizeram da história o seu palco de atuação, conseguiram persistir no tempo com as suas influências e as suas histórias”, afirma.
Para Rafael Dantas, um passeio por Salvador, a cidade considerada a mais negra fora da África, demonstra que a história local está marcada pela atuação não apenas dos governantes brancos, geralmente os que ainda são homenageados com estátuas e nomes de ruas, mas pelas revoltas protagonizadas por homens e mulheres negros. E, também, pela participação indígena em momentos cruciais. Ele cita a Conjuração Baiana ou Revolta dos Búzios, no século XVIII, como exemplo. “A conjuração Baiana teve pautas avançadas para aquele contexto, que não foram tratadas em outros movimentos no contexto da América como um todo”, enfatiza.
O historiador também destaca a participação popular, de negros, indigenas e seus descendentes, além da presença feminina, nos momentos decisivos da Independência, em 1823, ou ao longo dos movimentos libertários no século XIX. “A gente está falando justamente da atuação, da participação e da resistência de muitos e muitas que hoje não são às vezes lembrados ou mesmo não são homenageados”, destaca.
Na concepção da historiografia revisada para dar destaque também a esses outros protagonistas da história, a Salvador atual, em seus 476 anos, diversa, plural, rica em encontros culturais, resiliente, musical e com uma população aguerrida e persistente nas lutas diárias, é fruto da evolução daquela fortaleza ‘grande e forte’ construída no século XVI e que enfrentou momentos dramáticos, como por exemplo, durante a Invasão Holandesa, no século XVII (1624-1625).
Na época, a população de negros, indigenas e mestiços, além dos colonos pobres, se uniu para defender a cidade e expulsar os invasores, já que o governador-geral Mendonça Furtado fugiu após assinar a rendição apenas um dia depois da chegada dos navios holandeses. Coube ao arcebispo Marcos Teixeira de Mendonça assumir a função de organizar a resistência que deveria ter sido de Mendonça Furtado.
Segundo Rafael Dantas, independente dos momentos históricos cruciais vividos em seu território, Salvador já nasceu para ser uma cidade protagonista. Construída para ser a sede do governo-geral do Brasil, ou seja, a capital administrativa do império colonial português, ela manteve-se relevante mesmo depois que a capital do país foi transferida para o Rio de Janeiro, em 1763.
“Falar sobre a cidade do Salvador é destacar, antes de qualquer outra coisa, um espaço com protagonismo gigantesco no contexto do Atlântico Sul. E mesmo depois que deixou de ser capital, uma cidade e um porto de relevância absurda, em link direto com a África, a Europa, o Sul Asiático e outros lugares do mundo”, define o historiador.
Rafael acrescenta que foi pelo Atlântico e pela Baía de Todos-os-Santos, diversas culturas aportaram e fizeram da cidade o que ela é hoje. “Do ponto de vista de uma cidade monumento, de uma cidade com suas raízes imateriais, festas, tradições diversas, religiosidades, os povos que aqui chegaram fizeram a antiga fortaleza se tornar Salvador como a conhecemos”.
*Colaboraram na pesquisa Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE