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A Tarde Memória

Por Andreia Santana*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 01 de fevereiro de 2025 às 5:20 h | Autor:

Hospitais de bonecas, museus e coleções pessoais preservam as memórias da infância

Em Salvador, Gepeto Baiano restaura brinquedos há 65 anos; coleção de A TARDE tem registros de museus e coleções lúdicas até na Londres do pós-guerra

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Rosalvo Bonfim, o Gepeto Baiano, em seu hospital de bonecas em 2001
Rosalvo Bonfim, o Gepeto Baiano, em seu hospital de bonecas em 2001 -

Em 1947, Londres ainda se recuperava da devastação das blitze, os bombardeios alemães durante a II Guerra Mundial, terminada dois anos antes, quando um grupo de seis senhoras fundou um hospital diferente, onde não ocorriam casos incuráveis e todos os pacientes saíam da internação como novos. A história do Hospital de Bonecas de Mrs Dower é contada na edição de A TARDE de 01 de Julho de 1950. Aqui na Bahia, uma década depois, um adolescente que havia ficado órfão de pai aos 15 anos e costumava brincar com latas vazias na infância, dava os primeiros passos na arte de restaurar brinquedos. Até hoje, 65 anos depois, Rosalvo Bonfim, apelidado de Gepeto Baiano, mantém aberto o seu Hospital de Bonecas, na Rua Mesquita dos Barris.

“Um hospital no qual nenhum caso é considerado incurável, e que não sofre de falta de leitos nem de enfermeiras”. O trecho do texto sobre o hospital de Mrs Dower se aplica perfeitamente à ‘unidade de saúde’ dirigida por Rosalvo Bonfim. A história da sua arte se confunde com a própria história cotidiana de Salvador nas últimas seis décadas e até mesmo o modo de brincar dos baianos pode ser intuído a partir dos brinquedos que eram restaurados antigamente e os de agora.

“No começo, eram muitos brinquedos importados, principalmente dos Estados Unidos, como os trens elétricos e os autoramas. Hoje, até por dificuldade de conseguir peças para esses brinquedos elétricos antigos, o foco maior está nas bonecas e brinquedos eletrônicos”, diferencia Rosalvo, que em 2006, foi personagem de um especial do A TARDINHA, suplemento infantil que circulou em A TARDE na primeira década dos anos 2000, sobre a importância dos brinquedos e das brincadeiras na educação infantil.

Rosalvo Bonfim, o Gepeto Baiano, em seu hospital de bonecas, em 1994
Rosalvo Bonfim, o Gepeto Baiano, em seu hospital de bonecas, em 1994 | Foto: Cedoc A TARDE

Seu Rosalvo herdou o apelido de Gepeto, personagem do livro Pinóquio, clássico do jornalista e escritor italiano do século XIX Carlo Collodi. Gepeto é um artesão que decide criar um boneco de madeira e, pela magia de uma fada, o brinquedo ganha vida e segue em uma jornada heroica para se transformar em um ‘menino de verdade’. O Gepeto de Salvador, no entanto, não cria brinquedos, mas recria sorrisos ao restaurar parte das memórias afetivas de quem busca seu serviço.

“Pessoas com mais de 70 anos já chegaram aqui com a boneca da infância em péssimas condições e saíram sorrindo, com a boneca totalmente recuperada. Já restaurei uma boneca de 100 anos, a dona tinha quase 90”, conta.

Seu Rosalvo diz que aprendeu o ofício de restaurador de brinquedos com um amigo, logo depois de perder o pai, aos 15 anos. As dicas que esse amigo deu, ele aprimorou na base da curiosidade, mexendo aqui e ali. “Cada brinquedo importado tinha as peças diferentes e com isso eu fui aprendendo cada vez mais”.

Hoje, ainda ativo no ofício, ele diz que se sente realizado ao ver a satisfação de crianças e adultos ao receber de volta seus brinquedos recuperados. Em um mundo consumista, onde cada vez mais os objetos são descartáveis, a arte de Rosalvo é um ato de resistência. “A satisfação não é só pelo brinquedo recuperado, mas pela alegria e o prazer que o cliente sente em resgatar o brinquedo de um filho, da neta ou neto”.

Rosalvo Bonfim, o Gepeto Baiano, em seu hospital de bonecas em 2001
Rosalvo Bonfim, o Gepeto Baiano, em seu hospital de bonecas em 2001 | Foto: 06-10-2001 Cedoc A TARDE

Museu da infância

Na reportagem feita pelo A TARDINHA, em 2006, uma das histórias compartilhadas por Rosalvo foi a de um rapaz que queria que o artesão restaurasse um antigo robô Arthur. Quem era criança nos anos 1980 vai lembrar desse brinquedo, que parecia uma versão marrom do simpático R2D2, o robô da saga cinematográfica Guerra nas Estrelas, de George Lucas. Na época, ele conseguiu as peças e o robô ficou novinho. O cliente queria recuperar o brinquedo para presentear o filho.

Muitos clientes de Rosalvo ainda têm essa intenção, mostrando que a sobrevida de brinquedos antigos tem um aspecto tanto afetivo quanto cultural, possibilitando às gerações atuais olharem para as infâncias dos pais e avós, entenderem o contexto em que eles eram crianças, quais tecnologias existiam, como as gerações anteriores se divertiam, o que estava na moda.

Na edição de 14 de outubro de 2002, uma reportagem de A TARDE apresentava esse outro aspecto das bonecas e brinquedos, que envolve a memória histórica e social. Na época, o jornal divulgou a coleção de bonecas de pano em exposição permanente no Museu da Cidade, no Centro Histórico, espaço fundado em 1973.

“Bonecas de pano que reconstituem aspectos da vida social e doméstica da sociedade baiana do século XIX, integram o acervo do Museu da Cidade. As bonecas pertencem a uma antiga tradição, hoje quase extinta em função da evolução da indústria dos brinquedos. Atualmente, elas ainda são encontradas no interior, principalmente em pequenas comunidades na área rural”, diz o texto.

Outra reportagem, essa de 21 de junho de 1995, para a página de Turismo, apresenta o Museu Nacional das Bonecas, em Mônaco, como uma das atrações imperdíveis no principado, para quem buscava conhecer um pouco mais da cultura local: “Quem for a Monte Cario, uma visita obrigatória é ao Museu Nacional de Bonecas, situado na Avenida Princesa Grace. São centenas de bonecas, que encantam por suas belezas singelas. São bonecas de louça, do século passado e começo deste, com seus ricos vestidos em veludo e outros tecidos, cheios de bordados e babados”.

A reportagem sobre o museu em Mônaco acrescenta que o espaço também apresenta uma vasta coleção de Barbies vestindo roupas desenhadas por estilistas de grifes famosas e que a grande atração do espaço, que permanece em funcionamento nos dias atuais, é um pierrô de 1875, articulado e que reproduz movimentos como se escrevesse uma carta para a sua colombina. A maioria das bonecas em exposição também são em tamanho natural, na altura de uma criança de 10 anos.

Colecionador viajante

Para ver bonecas de diversas partes do mundo nem precisa viajar a Monte Carlo. Aqui mesmo no Centro de Salvador, em um estabelecimento comercial que vende enxoval de bebês, na Avenida Sete de Setembro, um acervo de quatro mil brinquedos, a maioria bonecas, chama a atenção. Trata-se da coleção de Jorge Francisco Gidi, hoje sob a guarda e os cuidados da viúva do empresário, Marluce de Oliveira Silva.

O casal viajava bastante e antes mesmo de casar com Marluce, Jorge Francisco já tinha o hábito de comprar bonequinhos e bibelôs pelos lugares por onde andava. Os itens ficam expostos somente para apreciação e representam a recordação permanente da história de amor do casal e da personalidade acolhedora e simpática de Jorge Francisco. “Ele dizia que era uma maneira de reviver a infância que não teve e que quando morresse, as bonecas seriam uma maneira dele continuar vivo. Ele falava para mim, 'Mo - ele me chamava de Mo - eu vou continuar vivo e mesmo quando eu partir, todo mundo vai lembrar de mim’. E realmente, todo mundo lembra”, diz Marluce.

As bonecas, bibelôs e brinquedos de Jorge Francisco vieram do Paraguai, Portugal, Estados Unidos, França, Emirados Árabes Unidos, da Inglaterra, Canadá e outros países. No Brasil, há bonecas de cidades baianas como Prado e Porto Seguro e de Fortaleza (CE) e Maceió (AL), além de algumas oriundas de cidades gaúchas.

Segundo Marluce, o marido tinha uma personalidade receptiva e brincava com todo mundo. Na Avenida Sete, era conhecido como ‘o homem que amava viajar’. Na loja hoje administrada por ela, uma plaquinha indica que as bonecas são um acervo pessoal, uma memória afetiva, e por isso não estão à venda. Isso não impede que vez por outra alguém pergunte o preço e insista em adquirir uma das peças. Mas, não há mesmo como se colocar um preço no afeto e no legado de alguém.

*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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