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A Tarde Memória

Por Priscila Dórea

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 16 de agosto de 2025 às 8:13 h | Autor:

Igreja da Boa Viagem tem história de devoção de mais de 300 anos

Templo dedicado a uma das invocações de Maria foi construído em 1712, mais de um século antes da procissão do Bom Jesus dos Navegantes

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Igreja de Nossa Senhora de Boa Viagem
Igreja de Nossa Senhora de Boa Viagem -

Nossa Senhora da Boa Viagem guia o caminho e protege dos perigos nas chegadas e partidas. Ao menos, para seus devotos, ela abençoa as jornadas, inclusive as espirituais. Celebrada em agosto em várias cidades brasileiras, sua devoção é de todos, principalmente dos pescadores, marinheiros e suas famílias. A fé chegou ao Brasil com o colonizador e fincou raízes em Salvador. A cidade, além de profundamente conectada com o mar, também abriga a primeira capela do país dedicada a essa invocação da mãe de Jesus.

A santa é reverenciada em 15 de agosto, data litúrgica associada à assunção de Maria, ou seja, sua elevação ao céu em corpo e alma. Mas, aqui na capital, ela também é lembrada a cada renovação de ano, quando a imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem acompanha a de seu filho, o Bom Jesus dos Navegantes, na tradicional festa de 01 de janeiro.

A primeira capela do Brasil dedicada a ela, no bairro da Boa Viagem, remonta ao século XVIII. A construção da futura igreja teve início em 1712 e foi finalizada em 1743. "Em Salvador, de frente para o mar da praia da Boa Viagem, fica a igreja considerada a mais antiga do país em honra à protetora dos navegantes. O templo barroco, também tombado pelo patrimônio histórico, foi fundado nas primeiras décadas do século XVIII. Exibe nas paredes belos azulejos como ex-votos em agradecimento aos milagres alcançados", diz trecho do livro “21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil”, de Bell Kranz.

A igreja da Boa Viagem foi construída no terreno doado por Manuel de Brito Catão, conta a presidente da devoção do Bom Jesus dos Navegantes e de Nossa Senhora da Boa Viagem, Verônica Cecília Fernandes. Ela acrescenta que o nome oficial da igreja é Hospício de Nossa Senhora da Boa Viagem. A palavra hospício aqui é empregada como local de acolhimento para viajantes ou necessitados e não em referência às antigas instituições psiquiátricas.

Muito além de um templo onde as pessoas cuidavam da fé e espiritualidade, a Igreja e Hospício de Nossa Senhora da Boa Viagem era um espaço aonde as pessoas iam para cuidar também do corpo, acrescenta a presidente. "Era um lugar onde as pessoas encontravam o apoio espiritual e físico necessários, servia de hospedagem para marinheiros e outras pessoas que voltavam de viagem, assim como prestava assistência aos doentes. Não era simplesmente um templo de oração, mas também de cuidado", explica Verônica Cecilia.

Verônica Cecília Fernandes - presidente da devoção da Boa Viagem
Crédito: Verônica Cecília Fernandes - presidente da devoção da Boa Viagem
Verônica Cecília Fernandes - presidente da devoção da Boa Viagem Crédito: Verônica Cecília Fernandes - presidente da devoção da Boa Viagem | Foto: Tallita Lopes

Santa andarilha

A origem da invocação de Nossa Senhora da Boa Viagem está nas andanças de Maria ao longo da vida. Ela visitou a prima Isabel, mãe de João Batista, para contar que seria mãe do filho de Deus; foi para Belém, onde Jesus nasceu; fugiu para o Egito junto com José e o bebê, após o rei Herodes decretar a morte das crianças do sexo masculino na cidade; e, posteriormente, viajou de volta para Nazaré. A vida nômade fez dela um símbolo de proteção nas travessias difíceis, sendo chamada em socorro dos que partem.

No Brasil, embora a primeira igreja dedicada à santa seja a de Salvador, Nossa Senhora da Boa Viagem é a padroeira de outra capital, Belo Horizonte. A igreja dedicada a ela na cidade mineira também remonta ao século XVIII, período em que a devoção cresceu e se espalhou por quase todo o país.

A relação da santa com pescadores e marinheiros também é antiga. Os pescadores dos tempos coloniais, por exemplo, a chamavam de “Estrela do Mar”, segundo informa o site Terra Santa, que reúne histórias de santos. Eles também gravavam o nome dessa invocação de Maria na popa das barcos e montavam um nicho para a imagem no castelo da proa antes de cada saída.

Procissão de Nossa Senhora da Boa Viagem
Procissão de Nossa Senhora da Boa Viagem | Foto: Fernando Amorim / Cedoc A TARDE / 01-01-1998

Fé em família

Filha de Moacir Alves Fernandes e de Iracy Magalhães Fernandes, dois dedicados fiéis ao Bom Jesus dos Navegantes, Verônica Cecília nasceu e foi criada dentro da devoção que atualmente preside. “Já faz 20 anos que eu e minha irmã aceitamos essa responsabilidade maior dentro da devoção, dando continuidade a fé que foi passada para nós. Hoje, eu e os meus irmãos contamos com a ajuda de toda a comunidade da nossa paróquia e de todos os irmãos da cidade de Salvador para manter essa devoção", afirma.

A igreja defronte a praia, acrescenta Verônica, nem sempre abrigou a dupla devoção em Nossa Senhora da Boa Viagem e no Bom Jesus dos Navegantes. Na origem do templo, em 1712, a única titular era Nossa Senhora. Foi no século seguinte, por volta de 1809, de acordo com registros da própria paróquia, que as primeiras procissões marítimas para o Bom Jesus dos Navegantes tiveram início, unindo as duas devoções.

"No início, as procissões marítimas eram feitas com a Galeota Imperial, mas com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, houve um rompimento entre a Igreja e o Estado, e a galeota Imperial foi negada", conta a presidente. A partir daí é que a comunidade da Boa Viagem se une para construir a Galeota Gratidão do Povo, tradicional embarcação que há mais de 100 anos conduz as imagens sagradas na procissão marítima,

Às vésperas dos festejos da procissão da virada do ano de 1889 para 1890, os devotos foram pegos de surpresa com a negativa da embarcação até então usada na festa. Para não deixar de sair, eles usaram um escaler (barco pequeno de transbordo de mercadorias ou serviços) para conduzir a imagem de Bom Jesus pela baía de Todos-os-Santos, da Boa Viagem até a Conceição da Praia. Ao longo de 1890 e 1891 os devotos se uniram a carpinteiros e calafates, os especialistas em vedação das juntas entre as tábuas de madeira das embarcações, para construir a Gratidão do Povo, que desfilou pela primeira vez na virada de 1891 para 1892.

"Às 16 horas do dia 31 do mez corrente será transladada em sua elegante galeota, da igreja da Boa Viagem para a da Conceição da Praia, a veneranda imagem do Senhor Bom Jesus dos Navegantes. Após este tocante acto, em lindo corêto armado tocará a banda de Orphãos de S. Joaquim, no largo da Boa Viagem, que estará illuminado à luz electrica, até às 19 horas, quando na igreja da Boa Viagem será cantada a Salve Rainha Nossa Senhora (...) Às 10 horas do dia 1º de janeiro, em sua igreja recentemente remodelada, será celebrada a missa festiva em honra de Nossa Senhora da Boa Viagem", descreve texto publicado em A TARDE, no 27 de dezembro de 1917, com a programação da festa daquele ano.

Dupla devoção

Foi a Gratidão do Povo que marcou a origem da dupla devoção para as invocações de Maria e de Jesus na Boa Viagem. “A galeota Gratidão do Povo se mostra como um altar no mar, um altar na baía de Todos-os-Santos. Foi sua construção, inclusive, que deixou claro que era necessário oficializar a devoção da Igreja da Boa Viagem à Nossa Senhora da Boa Viagem e ao Senhor Bom Jesus dos Navegantes. A [dupla] devoção teve início oficialmente em 1892 e tem a mesma idade que a galeota, que até hoje é usada na procissão", detalha a presidente Verônica Cecília.

Durante muitos anos, antes das festas de Réveillon atuais, a grande comemoração da virada do ano em Salvador era a da Boa Viagem. A procissão é bem conhecida pela maioria dos soteropolitanos: a imagem do Bom Jesus sai da Boa Viagem em direção à Conceição da Praia no dia 31 de dezembro e pernoita na basílica de Nossa Senhora da Conceição, outra das invocações de Maria. No dia seguinte, após uma missa, a imagem é levada até o cais do porto para embarque na Gratidão do Povo, onde é conduzida em procissão marítima até a Barra e depois segue para a Ponta do Humaitá, onde o Bom Jesus dos Navegantes é desembarcado e recepcionado pela imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem. Na sequência, ocorre a procissão terrestre.

Em 30 de dezembro de 1915, A TARDE também publicou a programação da festa ocorrida há 110 anos. Nesse texto, o jornal destacava a realização de uma missa para Nossa Senhora da Boa Viagem, enquanto os devotos aguardavam a chegada da galeota com o Bom Jesus. “Às 10 horas do dia lº de ianeiro, em sua egreja, será celebrada missa festiva em honra a Nossa Senhora da Boa Viagem, com acompanhamento da orchestra de S. Joaquim, pelo padre superior dos missionários Filhos do Coração de Maria”, diz o texto.

Durante décadas, a Festa da Boa Viagem foi a principal dedicada à santa titular da igreja. Há cerca de oito anos, o templo aderiu à tradição litúrgica e já antiga em outras cidades brasileiras de celebrar o 15 de agosto. “Por ser mariana, a paróquia teve esse desejo de dar um destaque ao dia dela, então passamos a celebrar o título de Nossa Senhora da Boa Viagem em agosto, com tríduo, missa e festa solenes”, diz Verônica Cecília.

A igreja também realiza anualmente a trezena para Santo Antônio, em junho, e cumpre outras festas do calendário litúrgico católico. Segundo a presidente da devoção, as atividades são realizadas com muita “fé e ousadia”, custeadas pela comunidade da Boa Viagem, Ribeira, Luís Tarquínio, Mont Serrat, Bonfim, Ribeira, Caminho de Areia e arredores. “A gente conta também com todos os irmãos da cidade de Salvador, porque essa devoção do Senhor Bom Jesus dos Navegantes e Nossa Senhora da Boa Viagem se estende a toda a cidade”.

Andor de Nossa Senhora da Boa Viagem sendo preparado para a procissão anual
Andor de Nossa Senhora da Boa Viagem sendo preparado para a procissão anual | Foto: Carlos Santana / Cedoc A TARDE / 30-12-1991

*Colaboraram Andreia Santana e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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