Ilê Aiyê fez 1º desfile no Carnaval que celebrou os 25 anos do trio | A TARDE
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Ilê Aiyê fez 1º desfile no Carnaval que celebrou os 25 anos do trio

Em 1975, jovens do bairro da Liberdade davam início à trajetória do “Mais Belo dos Belos” na folia de Salvador

Publicado sábado, 11 de fevereiro de 2023 às 05:00 h | Autor: Cleidiana Ramos
Margareth, Vovô, Elba e Val Benvindo: Ilê Aiyê inspira trajetórias
Margareth, Vovô, Elba e Val Benvindo: Ilê Aiyê inspira trajetórias -

O Carnaval de 1975 foi festejado por A TARDE como o maior de todos os tempos. Foi o ano escolhido para fazer a celebração dos 25 anos do trio elétrico, embora haja quem defenda que o primeiro desfile da Fobica aconteceu em 1951. Naquele ano começava a se delinear e ganhar apoio de variados agentes o Carnaval de rua celebrado como o maior do Brasil e já ganhando interesse internacional como destacou A TARDE na sua edição de 12 de fevereiro de 1975. Na mesma página o jornal fez também uma crítica contundente a um bloco que desfilou pela primeira vez falando diretamente de combate ao racismo: o Ilê Aiyê.  

“Bloco racista, nota destoante. Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: “Mundo Negro, Black Power, Negros para Você, etc, o Bloco Ilê Aiyê apelidado de “Bloco do Racismo” proporcionou um feio espetáculo nesse Carnaval. Além da imprópria exploração do tema e da imitação norte-americana revelando uma enorme falta de imaginação uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a serem explorados os integrantes do “Ilê Aiyê”- todos de cor- chegaram até à gozação dos brancos e das demais pessoas que os observava do palanque oficial”. (A TARDE 12/2/1975, p.3). 

Estava, portanto, cumprido o objetivo de um grupo de jovens do bairro da Liberdade articulados às informações dos movimentos de combate ao racismo em outros países, como os Estados Unidos, e as guerras de independência em nações da chamada África Negra. Eles estavam acostumados a usar a estética “black power” e acompanhar movimentos como o Panteras Negras.  

“Nós conseguimos sair com 100 pessoas.  Muitas das pessoas que nós chamamos os pais não deixaram com medo da ditadura. Mas a coisa ia ser mais complexa porque eu particularmente queria que o nome do bloco fosse Black Power, Poder Negro, por causa da influência do movimento negro americano, dos Panteras Negras. Mas quando eu cheguei em casa e falei o nome que a gente queria colocar no bloco minha mãe me chamou e disse que não, pois ia dar problema. O presidente da federação dos blocos daquela época, Arquimedes, que era um ex- militar, também me aconselhou e a Apolônio a não colocar o nome”, relata Antônio Carlos dos Santos Vovô, presidente do Ilê Aiyê e um dos seus fundadores.  

A preparação para o Carnaval de 1975 foi intensa. A fundação do bloco aconteceu alguns meses antes, em novembro de 1974. Mãe Hilda Dias dos Santos, mãe biológica de Vovô e cujo centenário foi celebrado na Noite da Beleza Negra realizada no último dia 28, tornou-se a líder espiritual da agremiação que viu surgir dentro da sua própria casa. 

Com decisão de criar o bloco sedimentada veio o momento de escolher o nome. Vovô conta que tinha cinco opções. Ilê Aiyê, que pode ser traduzida como “mundo negro” livremente não era a sua preferida.  “Eu trabalhava no Comércio e saí fazendo uma enquete. Todo mundo votava em Ilê Aiyê. Eu até dobrei o papel, mas o povo continuou votando e, para felicidade geral, eu não maquiei o resultado”, acrescenta Vovô.  

Novos caminhos 

O duro tom do texto de A TARDE dá uma medida sobre a coragem dos participantes daquele primeiro desfile. Era uma contestação à celebrada “democracia racial brasileira” e uma provocação à ditadura militar sobre a proibição de articulação política. Um tema tão temido como o racismo foi levado para a maior festa de rua da Bahia.  

“Nos nossos ensaios tinha presença da polícia formada de mista: Exército e Polícia Civil, por exemplo. Uma vez um cara apanhou porque mostrou documentos demais. A gente tinha que levar as fichas dos associados para a Secretaria de Segurança Pública. Só muito tempo depois é que isso acabou”, conta Vovô. 

O Ilê Aiyê estreou no Carnaval de 1975, aos 25 anos do trio elétrico
O Ilê Aiyê estreou no Carnaval de 1975, aos 25 anos do trio elétrico |  Foto: Cedoc A TARDE
 

No contexto internacional, vários países da África Negra estavam em luta por suas independências políticas. Em 1975, por exemplo, foi a vez de Angola libertar-se do domínio de Portugal, ou seja, 153 anos depois do Brasil.   Nos embates pelas independências estava também a disputa da Guerra Fria entre EUA e URSS. As duas potências disputavam, na maioria dos casos, a influência política sobre eles por meio de financiamento.   

À frente da independência vitoriosa de Angola estava o MPLA presidido pelo médico e poeta Agostinho Neto (1922-1979) e apoiado pela URSS. Desde o período que residiu em Portugal para estudar, Agostinho Neto uniu-se a movimentos políticos de combate ao colonialismo. Com o fim do domínio português tornou-se o primeiro presidente de Angola. 

Os  48 anos dessa luta de uma nação que forneceu, especialmente à Bahia, uma ampla herança cultural- religiosa e linguística, principalmente- conecta-se à estreia do Ilê a partir do tema de desfile desse ano: a trajetória de  Agostinho Neto. Segundo Vovô será uma celebração na base da resistência e da teimosia diante do agravamento de uma crise financeira por conta de dois anos de pandemia que impediu viagens para shows, por exemplo. 

E se há conexão com tantos temas políticos atualmente, no passado isso foi identificado à primeira vista como fica evidente no trecho da reportagem de A TARDE: 

“Não temos felizmente problema racial. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia que reina entre as parcelas da população provenientes das diferentes etnias constitui está claro um dos motivos da inconformidade dos agentes de irritação que bem que gostariam de somar aos propósitos da luta de classe o espetáculo de lutas de raças. Mas isto no Brasil eles não conseguem. E sempre que põem o rabo de fora denunciam a origem ideológica a que estão ligados. É muito difícil que aconteça diferentemente com estes mocinhos do Ilê Aiyê”. (A TARDE, 12/2/1975, p.3). 

Comunista como é insinuado e racista, aplicado diretamente no título, dão o tom da dureza do texto. Mas, ao longo dos  anos, A TARDE, ainda bem, teve tempo suficiente para reparar esse início de crítica tão desproposital ao Ilê Aiyê principalmente por atacá-lo como “racista” afinal racismo reverso não existe, pois este tipo de violência tem como base o poder de um grupo sobre o outro o que negros nunca tiveram sobre brancos, especialmente no Brasil. Nada melhor do que o tempo para corrigir posicionamentos com base no discurso, principalmente para uma empresa de comunicação social. 

“Quando saiu aquela matéria no jornal nos chamando de bloco racista e nota destoante no Carnaval, foi duro. Na rua o povo chamava a gente de vermelho que queria tomar o poder. Mas nesse caso a gente queria ao menos começar a dividir o poder. Na Rua Chile os integrantes de um bloco famoso nos chamavam de falsos africanos. Mas hoje A TARDE é uma aliada. Quando o Ilê fez 25 anos, o jornal deu um grande espaço”, diz Vovô.      

Coragem para mudar ou corrigir um erro é algo que deve ser sempre didático para veículos de comunicação. A TARDE fez essa lição. Tanto que no lançamento do especial Os homens que chamam os deuses para a Terra, publicado em 20 de novembro de 2012,  o Ilê Aiyê,  ao lado do Filhos de Gandhy, liderou um cortejo de festa na Redação de A TARDE. 

“A TARDE, que já foi quase nossa inimiga, hoje a gente pode dizer que se tornou quase parente”, completa Vovô.  

Com o tempo os temas sobre a África Negra se tornaram uma prática continuada no Ilê. Além disso outros blocos foram surgindo: Muzenza, Malê De Balê, Olodum, Bankoma  e outros. Tanto que o Ilê passou a ser conhecido como “O mais Belo dos Belos”. Além da lição sobre a estética de como ser negra e ser negro é lindo e inspirador há também o debate político, uma potencialidade nem sempre aparente, mas possível, do Carnaval. 

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia 

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE 

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