Jorge Amado atuou no jornalismo e nasceu no mesmo ano de A TARDE
Caderno registrou comemorações pelos 90 anos de Jorge Amado
O ano de chegada de A TARDE no jornalismo baiano foi também o do nascimento do escritor Jorge Amado. Repórter do Diário da Bahia, o autor utilizou elementos do texto jornalístico em vários dos seus romances, mas especialmente em Capitães da Areia, onde notícias de um jornal anunciam passagens importantes do enredo. O autor de Gabriela, Cravo e Canela também costumava dizer que, durante o seu processo de alfabetização, a leitura de edições de A TARDE teve um papel importante.
“Essa relação com o jornalismo realmente é muito forte. Ele começou como foca no Diário da Bahia e depois teve ascensão no jornal. Devemos lembrar que entre os níveis da linguagem amadiana, há um mais elementar que se aproxima ao texto jornalístico com seu desejo de se fazer entendido por vários públicos e isso acontece em toda sua obra. Ele usou o pseudônimo Alberti Borgia para publicar em jornais durante sua juventude, quando ainda era membro da Academia dos Rebeldes”, aponta Gildeci de Oliveira Leite, escritor, professor de Literatura da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), mestre em literatura e doutor em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Articulista de A TARDE, Gildeci Leite é especialista na análise da obra de Jorge Amado.
Além de jornalista, Jorge Amado teve uma intensa vida política, inclusive foi deputado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1946 com participação na Constituinte. Uma das suas defesas durante a sua atuação parlamentar foi a liberdade de culto, mesmo com algumas limitações sobre esta questão na Constituição de 1946. Sua atuação no PCB lhe trouxe problemas como a necessidade de sair do país. Jorge Amado também foi vítima de uma das maiores agressões a um escritor: a queima dos seus livros por intolerância ao seu posicionamento político.
“Em 1936, publicou uma obra prima, Mar Morto. E, neste mesmo ano, envolvido com a política– outra de suas paixões –, acabou preso. Libertado, foi morar em Estância, em Sergipe, onde, hoje, é nome de rua. Em 1937, o Jorge que nasceu para ser amado e escritor descobriu que havia nascido, também, para ser perseguido, no País do Carnaval. Preso mais uma vez, encontrou combustível para iniciar o seu Capitães da Areia, terminado no México. Neste mesmo ano, experimentou a sensação das “bruxas” na Idade Média. Alguns de seus livros arderam numa praça pública de Salvador. Queimados por forças políticas superiores e impiedosas”. (A TARDE Especial Jorge Amado, 7/8/ 2001, p.3).
O escritor nasceu em Ferradas, localidade pertencente ao município de Itabuna, em 10 de agosto de 1912, mas passou a infância em Ilhéus. Era filho do coronel João Amado de Faria e Eulália Leal Amado. Veio para Salvador para seguir estudando. Já a graduação em Direito fez no Rio de Janeiro.
O trabalho em jornal, como se tornou comum na trajetória de muitos dos escritores brasileiros, esteve misturado à literatura e o fez um dos fundadores da Academia dos Rebeldes, integrada por João Cordeiro, Sosígenes Costa, Édison Carneiro, Aydano do Couto Ferraz, dentre outros.
Com Édison Carneiro, Jorge Amado compartilhou a aproximação estreita com o candomblé. Recebeu o posto de ogã (condição em que não se entra em transe) no terreiro do célebre babalorixá Procópio Ogunjá. Mais tarde passou a integrar o Conselho de Obás, uma sociedade que funciona no Ile Axé Opô Afonjá e é relacionada ao culto do orixá Xangô, Senhor da Justiça e patrono do terreiro. Jorge Amado era consagrado a Oxóssi, orixá que, como caçador, provê a sua comunidade e é associado à fartura e proteção das matas e florestas.
O primeiro casamento de Jorge Amado foi com Matilde Garcia Rosa. Separado após 11 anos de convivência, casou-se com Zélia Gattai. Jorge Amado morreu em 6 de agosto de 2001 na capital baiana. No dia seguinte, A TARDE publicou um caderno especial em sua homenagem.
“Jorge Amado sentiu-se mal no início da tarde, e foi levado ao hospital Aliança, onde deu entrada, às 19 horas. Meia hora depois, teve uma parada cardiorrespiratória. Morreu em noite de lua cheia e mar calmo. Mar de muitas histórias. Histórias de oprimidos, que lhe renderam perseguições e prêmios. Escritor brasileiro mais lido no exterior, teve seus 32 livros traduzidos para 48 idiomas e publicados em 52 países. Sua vasta galeria de personagens ganhou formas e cores de alguns dos mais importantes artistas plásticos da contemporaneidade, tomando palcos, telas de cinema e TV de todo o mundo.” (A TARDE, Especial Jorge Amado, 7/8/2001, capa).
Gente do povo
Em 1992, A TARDE registrou as festas em homenagem a Jorge Amado por conta da comemoração dos seus 80 anos. O Pelourinho foi um dos locais das maiores celebrações com música sob o comando de Ederaldo Gentil, Edil Pacheco, Batatinha, Walter Queiroz, Gilberto Gil, família Caymmi, Caetano Veloso, Maria Bethania, Margareth Menezes, Gal Costa, Daniela Mercury, Olodum, Ilê Aiyê e Filhos de Gandhy. O escritor estava presente.
“Só na Bahia se poderia ver tanta gente na festa de um homem que não é político, nem fazendeiro, nem rico, nem cardeal, nem general", disse o escritor Jorge Amado ontem, ao contemplar ao lado de Zélia Gattai as mais de 10 mil pessoas que ocuparam o Largo do Pelourinho e as ruas de acesso ao local. De uma das janelas do casarão do Senac ele acenou à multidão, que, sob o comando do; cantor e compositor Walter Queiroz cantou "parabéns pra você" na homenagem ao mais famoso escritor brasileiro. "Tudo o que eu fiz não foi nada. Foi esse povo que está aí apenas para saudar um homem que nasceu dele", complementou”. (A TARDE, 10/8/1992, p.3).
A referência de Jorge Amado ao povo é uma aproximação com uma das principais características da sua obra: fazer de gente que povoava ruas, movimentava os negócios no comércio e no mar e frequentava bares e cabarés os protagonistas de suas histórias.
“O povo como protagonista é um dos mais importantes traços da produção de Jorge Amado. Há divisões como a fase mais ligada ao partido comunista e a fase carnavalizadora, conforme Roberto da Matta. Contudo devemos pensar em temas importantes como o realismo socialista, o sertão, o litoral, a afro-brasilidade, sempre sob o olhar do povo e para o povo”, analisa o professor Gildeci Leite.
Essa aproximação com os elementos dessa cultura cotidiana fez das obras do escritor uma presença constante em adaptação para diversas linguagens artísticas, especialmente as novelas. Gabriela teve duas versões na Rede Globo (1975 e 2012). Neste mesmo gênero a emissora também exibiu Terras do Sem Fim (1981); Tieta do Agreste (1989) e Tenda dos Milagres como minissérie (1985). A escolha da Rede Manchete foi por Tocaia Grande (1995) e a TV Bandeirantes produziu Capitães da Areia como minissérie.
No cinema as produções de Tenda dos Milagres sob a direção de Nelson Pereira dos Santos em 1977 e Dona Flor e seus dois maridos dirigido por Bruno Barreto e com roteiro de Eduardo Coutinho são destaques. A produção contemporânea de Capitães da Areia, lançado em 2011, teve um toque especial: foi dirigida por Cecília Amado, neta do escritor do romance homônimo que inspirou o filme. O teatro também tem diversas produções baseadas nas criações de Jorge Amado, assim como as artes plásticas, especialmente as obras de Carybé, que ilustrou vários dos seus livros. Jorge Amado pode ser visto como um pioneiro da convergência entre linguagens artísticas buscada ardentemente pelo mercado literário, especialmente após a revolução digital e que atualmente é mais comum com autores estrangeiros como George R. R. Martin da série Crônicas de Gelo e Fogo, mais conhecida como Games of Thrones e J.R.R Tolkien da saga Senhor dos Anéis.
“Além de existir uma proximidade com a linguagem popular e a recriação de assuntos de interesse popular, portanto favoráveis ao gerar produtos de sucesso financeiro, a obra de Jorge Amado tem uma proposta também política, afinal ele foi do PCB, que estimulava a divulgação de suas propostas e perspectiva sobre o Brasil na produção de seus membros. Devemos lembrar que muitos intelectuais eram do PCB ou simpáticos a ele, o que ajudava mutuamente”, acrescenta Gildeci Leite. O professor, por exemplo, tem Pedro Archanjo, protagonista de Tenda dos Milagres como seu personagem favorito na vasta obra de Jorge Amado.
“Pedro Archanjo era também o favorito de Jorge Amado. Pedro Archanjo é ojuobá, um cargo que tem a denominação traduzida como “os olhos de Xangô,”. São dois homens, mas duas culturas em uma só”, aponta Gildeci Leite.
Tenda dos Milagres, publicado em 1969, narra a trajetória complexa de Pedro Archanjo, um homem que ousava publicar livros sem ter reconhecimento como intelectual. Negro e ligado aos candomblés, Archanjo era um especialista nas culturas que emanaram da herança africana, o que irritava profundamente o professor Nilo Argolo, professor da Faculdade de Medicina. Archanjo morreu sem nenhum tipo de reconhecimento até que um professor norte-americano chegou ao Brasil para estudar sua obra. Começou, portanto, a correria nos variados segmentos de Salvador para descobrir e celebrar o homem que encantou um sábio americano. Valendo-se de trocadilhos e dando pistas em seus personagens de pessoas reais como Manuel Querino e Miguel Sant´anna na construção de Pedro Archanjo, Tenda dos Milagres continua um livro que oferece muitas camadas de descobertas. É uma das amostras da maestria de Jorge Amado em construir ficção, mas sem perder a conexão com o registro do cotidiano. Esta ligação com a construção da memória do dia a dia talvez seja uma reminiscência dos seus dias de repórter.