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A Tarde Memória

Por Priscila Dórea*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 15 de novembro de 2025 às 8:12 h | Autor:

Legado de Manuel Rufino se mantém nos terreiros de tradição banto

Babalorixá entrevistado por A TARDE em 1979 foi um dos líderes mais importantes do candomblé baiano no começo do século XX

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Imagem ilustrativa da imagem Legado de Manuel Rufino se mantém nos terreiros de tradição banto
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Um dos mais respeitados líderes do candomblé de tradição congo-angola na Bahia no início do século XX, Manuel Rufino de Souza, conhecido como Rufino do Beiru e Rufino Bom do Pó, construiu uma trajetória de força, sabedoria e resistência religiosa em Salvador. Fundador do Ilê Axé Tomin Bocum, no Beiru/Tancredo Neves, Rufino sempre manteve a postura firme diante das injustiças, o olhar atento às melhorias necessárias para a comunidade do entorno do terreiro e a mão estendida a quem o procurava.

Na terceira reportagem da série especial em alusão ao mês da Consciência Negra, o A TARDE Memória conta a história desse sacerdote afro-baiano que legou saberes e inspirações aos seus descendentes e à família estendida de santo. Nascido em 30 de junho de 1915, Manuel Rufino de Souza foi iniciado no candomblé por Miguel Arcanjo de Souza, o Miguel Arcanjo de Xangô.

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Conhecido como Massaganga de Kariolé, Miguel Arcanjo pertencia à nação Tapuiá, linhagem que não se perpetuou formalmente, mas é uma das mais antigas da Bahia e surgiu da miscigenação entre as culturas banto e iorubá, além de elementos indígenas, ainda no século XVIII, criando os chamados candomblés de caboclo ou angolas de caboclo. O legado está na origem da fundação da nação Amburaxó por Miguel Arcanjo e perpetuada por Rufino.

“Falar sobre Manoel Rufino é relembrar a história, o exemplo e a trajetória de um dos grandes baluartes do culto afro-brasileiro, especialmente na Bahia. Iniciado por Miguel Arcanjo, patriarca da nação Amburaxó, uma nação do âmbito de Angola, mas que tem peculiaridades e pertencimento próprio, Manuel Rufino era chamado de Rufino do Beiru e Rufino Bom do Pó, o que reconhece a sua atuação, legado e saber no trato com a liturgia de matriz africana", explica o supervisor nacional da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (Fenacab), Marcelo Santos, do Terreiro Ilê Tuntun Olukotun.

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| Foto: Cedoc

O africano GBeiru

Foi na década de 1940 que Rufino fundou seu próprio terreiro no bairro da Liberdade, mas a polícia invadiu o local em um dos tristes e infelizmente comuns episódios de repressão às religiões afro-brasileiras na época. Ao fechar o terreiro, ele se mudou para o Beiru, região que já abrigava muitos outros terreiros de origem banto. O motivo do bairro ser, nas palavras de Marcelo Santos, uma espécie de “quilombo das nações banto”, começou com Beiru ou Gbeiru, um homem que chegou escravizado de Oyó, na Nigéria, na primeira metade do século XIX. Comprado por Hélio Silva Garcia, da família de latifundiários Garcia D'Ávila, Beiru viveu por anos na fazenda Campo Seco, onde hoje está o bairro do Beiru/Tancredo Neves.

Quando os donos da fazenda morreram e nenhum membro da família se interessou em ficar com o espólio, Beiru se tornou herdeiro das terras dos antigos senhores. "Ele conseguiu parte das terras e agregou os escravos fugidos do centro da cidade”, explica o poeta Davi Nunes, no documentário 'Beiru, o Patriarca'. Quando Beiru morreu sem herdeiros libertos, o terreno voltou para a família, que renomeou a antiga fazenda Campo Seco como fazenda Beiru. Em 1910, parte dessas terras foram compradas por Miguel Arcanjo, considerado o primeiro morador do futuro bairro.

Em 1912, Arcanjo funda a nação de Amburaxó e o terreiro Ekutá Angwe Nvunji Kimbunji é instalado na antiga casa grande da fazenda. Logo, Miguel Arcanjo se torna vizinho e grande amigo de Maria Genoveva do Bonfim, a Maria Neném, dijina Mametu Tuenda dia Nzambi e fundadora do terreiro Tumbensi, primeiro candomblé angola do Brasil e que deu origem a outros terreiros como o Tumba Junçara, Tanuri Junçara e Bate Folha.

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| Foto: Cedoc

Na década de 1940, Manuel Rufino comprou o terreno ancestral do Tumbensi para fundar o Ilê Axé Tomin Bocum. Trazendo com ele parte dos frequentadores do terreiro da Liberdade, Manuel Rufino fortaleceu ainda mais o candomblé no Beiru. "A região do Beiru é uma espécie de quilombo banto dentro de Salvador. Não de origem, mas de agrupamento de casas que descendem do tradicionalismo religioso de origem banto", explica Marcelo Santos. O terreiro Ilê Axé Tomin Bocum, hoje localizado na Rua Manoel Rufino, uma homenagem ao famoso babalorixá, era considerado um dos maiores terreiros de candomblé do bairro.

Em sua dissertação 'Museu Virtual do Beiru: solução mediadora de aprendizagem da história das ruas além das placas, baseado nos princípios do turismo de base comunitária e história pública', a mestre em educação Verônica Nunes Gordiano explica que o Tomin Bocum recebeu muitas visitas de políticos durante seus anos de atividade e sob a liderança de Manuel Rufino. Há, por exemplo, a visita do então governador Roberto Santos, que a pedido de Rufino, "levou calçamento e iluminação para a comunidade do Beiru", diz o texto.

Bom de Pemba

"Vinha gente de todos os bairros de Salvador para a consulta espiritual, festejos da casa, na época do Sr. Manuel. (...) Durante o período da Ditadura Militar, foi palco de reuniões clandestinas para falar do cenário político baiano e nacional. Recebeu por diversas vezes a famosa mãe de santo Menininha do Gantois. 'A mãe Menininha bebeu muito da fonte de papai', nos disse seu filho e pai de santo, Sr. Antônio Rufino", conta Verônica na dissertação, informando ainda que Antônio Rufino faleceu em 2021, vítima de Covid 19, segundo os seus vizinhos. E que, atualmente, o terreiro encontra-se fechado para visitação.

Mais do que um líder espiritual, Rufino é símbolo de resistência cultural e de uma sabedoria que não demorou a ser reconhecida e buscada, principalmente quando falamos da alcunha Bom do Pó. Ele recebeu esse apelido por causa de sua habilidade excepcional no preparo da Pemba, o pó sagrado feito a partir de ervas, raízes e folhas e utilizado em rituais de proteção, iniciação e cura. "Esse pó atraía uma clientela que não era apenas de pessoas de terreiro, mas de toda a sociedade, que recorriam a ele para encontrar soluções para suas demandas", acrescenta Marcelo Santos.

O deslumbramento às vezes temeroso pela sabedoria ancestral de Rufino incluía até mesmo a polícia, um feito e tanto considerando que o candomblé era proibido e perseguido naquela época. "A polícia tinha algum receio de incomodar suas atividades e liturgia. O que nos mostra que havia respeito, mas certo temor também, que era fruto do saber, da experiência e, acima de tudo, do resultado positivo dos pleitos daqueles que o procuravam", diz Marcelo.

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| Foto: Cedoc

Os saberes no preparo da pemba não eram o único motivo da fama de Rufino alcançar toda a Bahia. Ele também era conhecido pelo toque dos atabaques, o que lhe rendia muitos convites. Um bom exemplo é a festa para Nossa Senhora das Candeias, em Amoreiras (Itaparica), da qual o babalorixá fez parte na programação em 1950. "A' tarde, às 16 horas, presente à Rainha das Águas, ao som dos atabaques do sr. Manoel Rufino, com suas filhas de santo de São Bento do Beirú, com grande acompanhamento de embarcações", informava A TARDE, na edição de 31 de janeiro de 1950.

A crescente fama fora das fronteiras baianas, no entanto, rendia alguns contratempos para o babalorixá. No início de 1979, ele recorreu ao A TARDE para desmentir uma publicação feita naquele mesmo ano por uma revista esportiva nacional publicada desde março de 1970. A revista veiculou uma matéria atribuindo a Rufino declarações de que o Esporte Clube Vitória seria o campeão baiano daquele ano e que o babalorixá havia afirmado isso depois de jogar os búzios. Porém, Rufino afirmou que não havia feito a consulta ao oráculo e que um rapaz o teria visitado para conhecer mais sobre o candomblé sem se identificar como jornalista. Todos no terreiro acharam que se tratava de um turista interessado em informações sobre o Ilê Axé Tomin Bokum.

O babalorixá ainda enfatizou que as fotos publicadas na revista nacional foram tiradas sem autorização. "A repercussão que possa vir a ter as declarações a ele atribuídas é a maior preocupação de Manoel Rufino. Ele teme a interpretação que a Federação do Culto Afro-Brasileiro possa dar ao caso e explica que não gosta de publicidade com seu nome, tampouco de aparecer na imprensa com assuntos como esse", diz A TARDE, em 6 de janeiro de 1979.

A preocupação do babalorixá era válida, principalmente levando em conta seu histórico de lutas em defesa das religiões de matriz africana e o constante diálogo com outras casas de candomblé. Em meio à sua atuação no empoderamento do povo de santo, em 1946, a Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro (Febacab) foi criada. Mais tarde, a entidade se tornou a Fenacab. "Creio que Pai Rufino não estava na criação da Federação, mas, no decorrer, foi uma das vozes, uma das pessoas fundamentais para o fortalecimento da instituição", diz Marcelo.

Manuel Rufino de Souza faleceu em 1982, deixando filhos sanguíneos e espirituais. É imensa a importância dele para a religiosidade de matriz africana, o povo de santo e todos que continuam atuando na defesa, preservação e valorização das religiões de matriz africana. "Além de estimular na luta contínua do povo de santo, ele deixa um exemplo claro de resistência. Um legado imaterial e material que a morte, o tempo, a perseguição e a intolerância religiosa não conseguiram apagar", afirma Marcelo Santos.

*Com a colaboração de Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas

*Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE

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