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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 20 de agosto de 2022 às 6:00 h | Autor:

Lobisomem tirou o sossego de moradores e visitantes do Cabula em 1918

Personagem que protagonizou reportagem de A TARDE integra conjunto das criaturas fantásticas do folclore

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Reportagem de A TARDE contou que um lobisomem estava tirando o sossego de moradores e visitantes do Cabula
Reportagem de A TARDE contou que um lobisomem estava tirando o sossego de moradores e visitantes do Cabula -

O lobisomem tem protagonismo entre os personagens que integram o grupo de saberes populares do Brasil classificados como folclore, uma denominação que ainda gera muito debate e é celebrada anualmente em 22 de agosto. Mas tem quem o veja como um ser muito real. Em 1918, por exemplo, uma reportagem de A TARDE contou que um lobisomem estava tirando o sossego de moradores e visitantes do Cabula.

Em defesa do lobisomem há que se destacar que a espécie brasileira parece mais chegada, na maioria das vezes, a provocar sustos do que causar ferimentos ou a morte das vítimas. Os choques foram a queixa mais frequente de quem o viu nas ruas do bairro.

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“É sempre com tanta rapidez que elle assalta o transeunte que ainda estando prevenido não se livra de grande susto e não pode descobrir bem os seus traços principaes, tendo apenas a impressão de que é effectivamente assaltado por um homem ou um cão, que imediatamente desapparece saltando uma cerca, subindo uma árvore, entrando n´algum buraco conforme o local em que é encontrado”. (A TARDE 1/11/1918, p.2).

As testemunhas que descreveram a criatura para o jornal deram duas versões sobre a sua aparência. Em uma, tratava-se de um ser semelhante a um homem, mas coberto com pelos comparados aos do cachorro da raça Terra Nova. Outra descrição apontava o lobisomem com forma de um cão, mas vestido com calças e enrolado em um xale de seda.

A reportagem conseguiu o depoimento de uma testemunha que ao visitar um amigo no dia do seu aniversário decidiu perseguir o lobisomem. O homem identificado como Hostilio Martins estava circulando de carro.

“De volta para a cidade, seria uma hora da madrugada, tomou o seu automóvel e dirigiu-se ao Cabulla, ao passar mesmo em frente à roça do capitão Magalhães, ouvindo o ladrar compassado de um grande cão, parou; dentro em poucos instantes, o “bicho” que era perseguido pelo cão expellindo estridentes grunidos, saltou no automóvel e immediatamente numa grande árvore que aí existe, por ella escapando sem que podesse ser perseguido”. (A TARDE, 1/11/1918, p.2).

E isso foi tudo que a testemunha contou à reportagem do jornal:

“E nada mais do que isso nos contou da curiosa occorrencia, que está attrahindo a attenção de todos os habitantes do populoso bairro”. (A TARDE 1/11/1918, p.2).

Mistérios e área verde

Além de ressaltar a persistência dos mistérios tão reivindicados como uma das marcas da capital baiana, o texto do jornal aponta para outras questões importantes, como o Cabula ainda repleto de áreas verdes, mesmo com a referência de que era um bairro populoso. Segundo a reportagem, o lobisomem conseguia fugir saltando por entre as árvores, ou seja, elas ainda eram muitas.

Os locais em que o lobisomem também foi visto- uma quinta e proximidades de uma roça- dão uma dimensão da característica meio rural de certas localidades de Salvador naquela época. Se hoje a capital baiana tem cerca de três milhões de habitantes, naquele período este era o total da população de toda a Bahia. Foi esta a estimativa do Censo realizado dois anos depois.

Reportagem do A TARDE de 1918
Reportagem do A TARDE de 1918 | Foto: Cedoc A TARDE

Em História da Bahia, Luís Henrique Dias Tavares aponta que, em 1930, ou seja, 12 anos depois da história do lobisomem assustando o Cabula, Salvador tinha, aproximadamente, 300 mil habitantes. Áreas com predominância de matas e uma população ainda pequena comparada ao quadro atual era um cenário bem propício para fazer de alguma forma crível a existência de criaturas fantásticas circulando pela cidade.

Imaginário universal

O lobisomem está presente em referências nas diferentes partes do mundo. Luís da Câmara Cascudo afirma que ele foi registrado por Plínio o Antigo, Heródoto, Santo Agostinho, dentre outros importantes pensadores da cultura ocidental. Para Cascudo convergem para o mito do lobisomem as festas chamadas lupercais, na Roma Antiga, que eram ligadas à purificação. Vale destacar a crença de que os irmãos Rômulo e Remo cuja história remete à fundação de Roma foram amamentados por uma loba.

“Numa lupercal tentou-se fazer de Júlio César rei. Em 494, Gelásio proibiu-a, mudando-lhe a feição para a solenidade cristã da festa da purificação”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, p.441).

No Dicionário Infernal: Repertório Universal, de J.Collin De Plancy, estão diversas referências sobre a crença no lobisomem, especialmente na Europa. Nestes casos a correspondência é sempre com o lobo. Em uma delas conta-se que um destes animais corria por ruas de Pádua quando foi capturado e teve suas patas cortadas. No mesmo instante ele recuperou a forma de homem, mas sem os braços e as pernas.

Câmara Cascudo destaca que com o processo de colonização das Américas protagonizado por Portugal e Espanha a partir do final do século XV, as histórias sobre o lobisomem ganharam novas nuances nas então novas terras. No continente africano, de acordo com ele, estava a tradição sagrada centrada nas transformações de homem em animais como lobos, tigres e hienas. O autor aponta também referências culturais semelhantes a esta criatura na China e no Japão.

A transformação de alguém em lobisomem, no Brasil, está relacionada a uma maldição. Há, segundo Cascudo, alguns apontamentos em relação a incesto. Filhos de uma comadre e compadre ou de afilhada e padrinho, de acordo com o autor, correm este risco. Mas há também a crença de que o filho seguinte ao nascimento de sete filhas pode ter que carregar a maldição de se transformar em homem-bicho. Cascudo descreve a versão de que a transformação começa aos 13 anos quando o marcado para ter essa vida dupla passa por um lugar onde um jumento se espojou, ou seja, deitou-se para rolar pelo chão.

“Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras, de meia-noite às duas horas, o lobisomem tem de fazer a sua corrida visitando sete adros (cemitérios) de igreja, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas até regressar ao mesmo espojadouro, onde adquire a forma humana. Sai também ao escurecer, atravessando na carreira as aldeias onde os lavradores recolhidos não adormeceram ainda. Apaga todas as luzes, passa como uma flecha, e as matilhas de cães ladrando, perseguem-no até longe das casas”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, p.441).

O lobisomem descrito por Cascudo não é apenas chegado a provocar sustos, pois pode atacar crianças e filhotes de animais. O autor reforça que há variações regionais sobre a criatura e aponta características mais gerais. Para quebrar o encanto do lobisomem é necessário feri-lo de uma forma que ele sangre. Mas se o sangue atingir quem o atacou este vai herdar a sina de transformação em homem-lobo.

“Para desencantá-lo basta o menor ferimento que cause sangue. Ou bala que se unte com cera de vela que ardeu em três missas de domingo ou na missa-do-galo, na meia-noite do Natal”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, p.441).

A reportagem publicada por A TARDE em 1918 não detalhou os dias da semana em que o lobisomem foi visto circulando pelo Cabula. De coincidência com as descrições de Câmara Cascudo só a publicação da edição em que está a história numa sexta-feira, dia em que ele poderia aparecer, o que, no âmbito dos mistérios da capital baiana não seria nada que desafiasse a credibilidade de muitos.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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