Mãe Stella de Oxóssi cultivou o dom da palavra e o amor aos livros
A quinta iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá fundou uma biblioteca física, um projeto itinerante e escreveu artigos quinzenais para A TARDE durante cinco

“Fiquei espantada com a surpresa que alguns leitores tiveram ao saber que eu ainda tinha sonhos. Transformei esse fato em um bom motivo para reflexão. Quando o corpo não nos dá condição de fazer uma boa faxina em uma casa, aproveita-se a cabeça para faxinar a alma e o espírito”. Mãe Stella de Oxóssi abre seu artigo de 26 de fevereiro de 2014, na página de Opinião de A TARDE, falando da capacidade infinita de sonhar que ainda mantinha perto de completar 90 anos, sendo quase 40 deles como iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, terreiro situado em São Gonçalo do Retiro.
O artigo foi um pedido de apoio da sacerdotisa ao poder público e à sociedade para que ela realizasse um desejo: o de criar um projeto literário itinerante que ajudasse as pessoas a praticarem o respeito, combatendo a intolerância religiosa com oferta de conhecimento. Essa mesma energia ela demonstrou, duas décadas antes, quando usou a própria coleção de livros para fundar uma biblioteca no terreiro dirigido por ela. Ou, ao longo dos mais de cinco anos em que foi colunista de A TARDE, de março de 2011 até junho de 2016, quando precisou se afastar para cuidar da saúde.

Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de tantos filhos e filhas de santo, faria 100 anos agora em 2025 e, durante todo o ano, diversas atividades serão realizadas no Ilê Axé Opô Afonjá e em outras instituições, como a Academia de Letras da Bahia, da qual a iyalorixá era uma das integrantes. Uma das iniciativas em decorrência do centenário da sacerdotisa é a reabertura ao público, a partir da segunda quinzena deste mês, da Biblioteca Ikójópò Àla Omodé Maria Stella de Azevedo Santos, cuja história se confunde com o amor de sua criadora pelos livros e pelo conhecimento. A biblioteca é um legado da iyalorixá para a comunidade do Afonjá e também para a cultura baiana, já que o espaço é aberto a visitas, parcerias e projetos.
“Mãe Stella ecoa na existência de toda a sua família de santo. Apesar dela não estar mais aqui na Terra, todo o seu legado ecoa em nós, sua família de santo. Ela é uma intelectual orgânica. Uma intelectual que proporcionou a mudança da concepção dos espaços de terreiro enquanto apenas litúrgicos. Ela afirma e demarca por meio de toda a sua trajetória, da sua produção, das falas muito contundentes, dos mais de seis livros publicados, dos artigos no A TARDE”, afirma Bárbara Stela Filgueiras, pedagoga, mestranda pela UFBA e coordenadora pedagógica adjunta da biblioteca, que tem a coordenação geral de Mãe Ana Verônica, iyalorixá atual do Afonjá.
Mãe de opinião
Mãe Stella ocupou a cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia em 2013. Foi a primeira iyalorixá a garantir esse espaço. Barbara Stela, que recebeu o segundo nome em homenagem a sacerdotisa, diz que o pioneirismo em ser acadêmica torna Mãe Stella uma referência não só para as comunidades de terreiro, mas “para o Brasil entender que as comunidades tradicionais são produtoras de conhecimentos e são detentoras de saberes. Quando eu digo que Mãe Stella é uma intelectual orgânica, pauto isso também em toda a movimentação política, religiosa e social que ela exerceu. Ela se movimentava junto a intelectuais como Muniz Sodré, Jorge Amado e tantos outros filhos e filhas que passaram por essa casa, para que as atividades chegassem, para que os seminários acontecessem, para que o Afonjá fosse e continue sendo esse espaço de articulação e movimentações”, acrescenta.
A iyalorixá que tinha como orukó, nome no Candomblé, Odé Kayodê (o caçador traz alegria, na tradução do iorubá para o português), também foi a primeira mãe de santo a escrever regularmente uma coluna na grande imprensa e, depois, ter parte dos artigos para a coluna reunidos em um livro. As colunas saíam em A TARDE às quartas-feiras, quinzenalmente. Mãe Stella gostava de escrever seus textos sempre no domingo anterior, no turno da tarde, em sua casa, sentada na sua cadeira preferida. Cada tema abordado resultava antes em conversas com amigos e depois, ela moldava os textos com uma linguagem fluida, acolhedora, acessível para todas as pessoas, como se os leitores pudessem se aninhar no colo da mãe de opiniões sábias.
Na sua coluna, Mãe Stella versava sobre diversos temas sob a perspectiva e a experiência como sacerdotisa de uma religião pautada na ancestralidade, na escuta e na oralidade. Os textos eram replicados no portal A TARDE, o que gerava comentários e grande engajamento dos leitores. Ela também recebia e-mails com respostas às reflexões que compartilhava. Os textos versavam sobre o cotidiano, reminiscências da Salvador antiga, como no artigo ‘Sucateiro, sucateiro’, em que ela fala sobre os antigos pregões nas ruas, ou datas importantes, como o Dia da África, em 25 de Maio.
Na coluna de 05 de dezembro de 2012, ela comentou o lançamento do livro Opinião e afirmou: “Resolvi escrever em um jornal por um motivo muito simples: fui solicitada. O universo convida, o coração reage a cabeça consente (ou não). Entretanto, razões mais complexas também existem. Não me canso de repetir que o que não se registra o tempo leva, e se a humanidade evolui, as diversas partes que a compõem precisam seguir esta evolução. Além disso, os longos anos de vida fazem com que fiquemos transbordando de experiências, as quais precisam ser transmitidas”.
Lançado em 06 de dezembro de 2012, durante o XII Mercado Cultural, no Teatro Castro Alves, o livro Opinião - Um presente de A TARDE para a história, reúne 40 dos artigos de Mãe Stella. O prefácio da obra, que é toda ilustrada, foi assinado por Renato Simões Filho, na época membro do Conselho de Administração do Grupo A TARDE, e pela jornalista e mestra em estudos étnicos e africanos pela Ufba, Cleidiana Ramos, também criadora do projeto A TARDE Memória e, hoje, doutora em antropologia.

“Os artigos de Mãe Stella no jornal eram muito gostosos de ler, porque você conseguia perceber como ela estava se posicionando ali enquanto uma boa filha de Oxóssi, sucinta, mas também articuladora, com alguns deboches que ela tinha na escrita, de falar 'olha iaiá, olha o seu comportamento, olha como você pode se conduzir na vida para você se potencializar'”, complementa Bárbara Stela.
Mãe dos livros
Para a coordenadora adjunta pedagógica da biblioteca do Afonjá, Mãe Stella traz uma concepção de mundo alicerçada em outros valores que não aqueles da branquitude. E esses valores permeiam a conduta de sua família de santo. A biblioteca entra nesse contexto como espaço de reflexão e estímulo para que cada integrante da comunidade avance na sua potencialidade máxima, uma herança que vêm desde Mãe Aninha (Eugênia Anna dos Santos), a fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, que afirmava querer “ver meus filhos de anel no dedo, aos pés de Xangô”, orixá a qual o terreiro é dedicado.
“Mãe Stella pegou livros do seu acervo pessoal e colocou aqui. Com o tempo, foram tendo movimentações dos filhos e filhas de santo, com doações, e tomou uma frente tão robusta que, em 2002, também junto à movimentação dos filhos e da Sociedade Civil da Cruz Santa [o braço administrativo do terreiro], nós conseguimos a certidão de registro no Conselho Regional de Biblioteconomia”, conta Bárbara Stela.
Mãe Stella batizou originalmente a biblioteca como Ikójópò Ilé Iwé (Biblioteca Casa do Conhecimento). Em 2002, chegou ao espaço a bibliotecária Luzia Macedo Leal, e, logo depois, Mãe Naná (Lindinalva Rosa), uma visitante que se afeiçoou e, como tinha acabado de se aposentar como auxiliar de bibliotecária, se juntou ao grupo que tocava a biblioteca. Com a morte de Luzia, Mãe Naná assumiu a tarefa de receber a comunidade e os visitantes, ficando na biblioteca até 2009.

Por falta de recursos, a biblioteca acabou fechando, em 2013. O fechamento do espaço levou Mãe Stella a escrever o artigo "De grão em grão", citado na abertura da reportagem, solicitando apoio para que fosse criado o projeto de biblioteca itinerante, que ela chamou de Animoteca. “A gente tinha dois ônibus, a partir de uma parceria com a Secult [Secretaria Estadual de Cultura] e também com a Fundação Pedro Calmon. Esses ônibus rodaram, por exemplo, para a Festa Literária de Cachoeira (Flica). As pessoas tinham acesso livre, gratuito, ao acervo e aos vídeos”, acrescenta a coordenadora adjunta.
Com a morte de Mãe Stella de Oxóssi, em 2018, o acervo da Animoteca e da antiga biblioteca criada em 1996 ficaram guardados. Em 2019, após o ano de luto pela morte da iyalorixá, Ana Verônica Bispo dos Santos, Mãe Ana de Xangô, foi escolhida pelos orixás para assumir o comando do terreiro. O início do sacerdócio de Mãe Ana foi marcado pela pandemia e as restrições impostas pela covid-19. Apesar das dificuldades, a nova iyalorixá se mobilizou para tocar os projetos do terreiro.
Junto com Iraildes Santos Nascimento, pedagoga e atual diretora da Escola Eugênia Anna dos Santos, que funciona na comunidade, Mãe Ana articulou a chegada ao Afonjá da Biblioteca de Los Sueños, projeto internacional da CEC (Centro de Educação de Cores) no Brasil, instituição que trabalha com fomento de acesso à literatura. “A CEC atende, principalmente, países da América Latina e atua em comunidades ofertando a reforma ou a estruturação de espaços de leitura. Tivemos a doação de mais de 1.200 livros, uma parte do acervo veio para cá e a outra parte foi para a Escola Eugênia Anna dos Santos, que também tem uma biblioteca”, explica Bárbara Stella.
Em 2023, a partir da parceria com a Biblioteca de Los Sueños, o Ministério da Cultura (Minc) e outras instituições, ocorreu a reinauguração do espaço fundado por Mãe Stella e que, rebatizado por Mãe Ana como homenagem à sua criadora, passou a se chamar Ikójópò Àla Omodé Maria Stella de Azevedo Santos. Agora, no centenário de Mae Stella, a biblioteca voltará a atender o público. Bárbara Stela traduz do iorubá para o português o novo nome: “Casa do Conhecimento Sonho de Criança, porque criança é alegria, é a chegada de novas potencialidades. Mãe Ana de Xangô tem essa percepção de que esse espaço é plural e diverso, para adultos, crianças, pessoas com deficiência, todo mundo. Esse nome vai carregar também a nossa ancestralidade, a nossa identidade. O nome tem muita força”, afirma.
No seu último artigo para A TARDE, publicado em 23 de junho de 2016, Mãe Stella escreveu palavras que, quase 10 anos depois, continuam válidas para descrever a disposição eterna do Afonjá em abraçar as mudanças,mas mantendo-se fiel aos princípios da fé, e que servem também de conselho para a vida: “O mundo está passando por uma grande transformação. Grandes acontecimentos do passado que estudávamos nos livros de história, agora vemos acontecer no presente. A travessia pela jornada da vida será mais fácil se estivermos bem alimentados física e espiritualmente. O barco atravessará os momentos turbulentos ainda com mais facilidade se estivermos não apenas bem alimentados, mas principalmente unidos”.
Mãe Stella, mais do que ninguém sabia que livros são alimento da alma e uma forma potente de conectar saberes e pessoas.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE