Maria de São Pedro inaugurou tradição da culinária afro-baiana há 100 anos
Restaurante que nasceu de barraca na feira e virou ponto de encontro de intelectuais e artistas na primeira metade do século XX

Cozinheira excepcional e força ancestral, Maria de São Pedro dos Santos fez da culinária resistência. Sua vida inspiradora se tornou um legado que a família, majoritariamente feminina, trata com seriedade para manter vivo o tempero e a história do restaurante que leva o nome da matriarca e acaba de completar 100 anos. Da barraca simples na antiga Feira do Sete, em 1925, ao salão no atual Mercado Modelo, o restaurante sempre foi uma espécie de templo de baianidade que alimenta pescadores, poetas, intelectuais e quem se apresentar. É, ainda, considerado o primeiro voltado para a comida típica afro-baiana, aquela carregada no dendê, no camarão seco e no leite de coco.
Maria de São Pedro dos Santos nasceu em Santo Amaro da Purificação, no dia 29 de junho de 1901, data que celebra o santo católico de seu nome. Perdeu a mãe muito cedo e foi criada pela avó em uma situação muito humilde, conta a neta Maria das Graças Marques, uma das administradoras do centenário restaurante. "Ela contava aos filhos que só ganhava roupa e tamanco novos uma vez por ano, geralmente no Natal. A infância e a adolescência foram muito restritas, pois teve que começar a trabalhar cedo para ter o que comer e vestir".
Aos 11 anos Maria se mudou para Salvador, onde passou a trabalhar em casas de família fazendo de tudo um pouco, sempre lutando para melhorar sua própria vida e, já na fase adulta, criar da melhor forma possível os 14 filhos. Sua destreza na cozinha era muito mais que um simples dom, "era questão de sobrevivência", ressalta Maria das Graças.

O restaurante começou em 1925, em uma barraca simples na antiga Feira da Sete, localizada nas imediações do Galpão 7 da Companhia das Docas, na região portuária de Salvador, onde ela vendia seus quitutes. Em 1930, mudou o restaurante para o Mercado Popular (Água de Meninos), onde ficou até meados de 1940, quando levou o negócio para o antigo Mercado Modelo.
Localizado onde hoje está o monumento de Mário Cravo, ao lado da Praça Cairu, o antigo Mercado Modelo havia sido inaugurado em 1912 e quando o Restaurante Maria de São Pedro se mudou para ele, o espaço já havia se transformado em referência cultural da cidade. Era lá onde se encontravam os ingredientes para qualquer comida baiana, enquanto rodas de capoeira e os ritmos musicais baianos embalavam as compras e almoços.

Àquela altura, as receitas de Maria para a moqueca, efó, vatapá e caruru, entre outras iguarias, já eram bem conhecidas pelos soteropolitanos comuns e pelas figuras que hoje são referência nas mais diferentes áreas. O cantor e compositor Dorival Caymmi, o intelectual e pesquisador Odorico Tavares, o romancista Wilson Lins, o artista-plástico argentino-brasileiro Carybé, o cineasta norte-americano (diretor de Cidadão Kane) Orson Welles, o poeta chileno e Nobel de Literatura Pablo Neruda, o filósofo francês Jean-Paul Sartre, o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger, que a fotografou, e, claro, o escritor Jorge Amado, visitaram ou frequentavam o estabelecimento.

"Ela não sabia ler nem escrever, mas tinha carisma. Tinha o dom de tratar, de ser amada pelas pessoas. Acho bonito quando uma pessoa é querida pelo que ela é, não pelo que ela pode proporcionar. E ela era assim. Ela atraía muita gente, mesmo com sua personalidade forte, e isso inspira toda a família até hoje”, afirma a neta Maria das Graças.
Rainha da culinária
Vivendo em um período em que ser uma mulher negra e dona de um negócio estava longe de ser fácil, Maria de São Pedro podia até atrair pessoas com seus temperos, mas elas só continuavam por perto pela mulher que ela era: uma força da natureza moldada pela resistência e que esbanjava talento.
"Aqui deste lado, na mesma moldura da rampa, envolto na brisa do mar, prossegue o restaurante de Maria de São Pedro, sua obra de civilização", destaca reportagem de A TARDE do dia 18 de maio de 1988. A frase foi dita por Jorge Amado em uma das muitas citações a ela. O escritor chamava Maria de "Rainha da Bahia" e sempre foi uma das figuras que mais enalteceu a riqueza e os sabores criados pela amiga quituteira.
“Maria de São Pedro era uma rainha feita de alegria, bondade e arte. Mestra da maior das artes, a da culinária, preservou e engrandeceu a tradição da inexcedível comida baiana, sua cor, seu perfume, seu sabor divino. Seu antigo restaurante era uma festa em frente à Rampa do Mercado Modelo, que o fogo devorou. Creio que Odorico Tavares, Wilson Lins e eu muito concorremos para que Maria de São Pedro e seu restaurante se fizessem célebres em todo o país. Seus fregueses durante 30 anos, seus amigos de todos os dias, celebramos em prosa e verso sua fama”, escreveu Jorge Amado no clássico “Bahia de Todos os Santos – Guia de Ruas e Mistérios”, um guia onde o autor apresenta as personagens, cores e tradições baianas e da Salvador antiga.
Foi em 1954 que o conde Francisco Matarazzo Sobrinho veio de São Paulo em busca de Maria de São Pedro para contratá-la. Ela deveria cozinhar no banquete do conde para a festa de 400 anos de fundação da capital paulista. Em seu livro “Bahia, Imagens da Terra e do Povo”, o pesquisador Odorico Tavares conta que Maria de São Pedro levou seus ajudantes e “uma tonelada de ingredientes” no voo para São Paulo.
Dendê, camarão, pimenta malagueta, gengibre, coco, castanha e até alguidares (travessas de barro) e colheres de pau foram despachados para as terras paulistas. “Chegando à casa dos Matarazzo, enquanto começava a dar ordens aos ajudantes de cozinha, eis que surge o cozinheiro de dona Yolanda, querendo bisbilhotar suas panelas. Maria chamou a dona da casa e disse categórica: ou o cozinheiro gringo ou eu. Dona Yolanda não teve dúvidas, botou o gringo para correr e Maria reinou absoluta no banquete”, relata Odorico Tavares.

Quatro anos após o banquete, em 1958, Maria de São Pedro dos Santos faleceu aos 57 anos, sem ver a mudança do restaurante para o atual Mercado Modelo. “Ela foi uma pessoa muito guerreira e os filhos dela sempre foram da mesma forma, principalmente as mulheres, que são maioria na família. Acho que todas nós nos inspiramos muito nela, na força que ela teve e continuamos passando isso de uma para a outra até hoje. Essa força jamais será esquecida”, afirma outra neta, Maria Célia Guimarães, que também administra o restaurante.
Renascido das cinzas
Em 1º de agosto de 1969, um incêndio destruiu o antigo Mercado Modelo. “Foi um choque para toda a família, pois perdemos tudo que tínhamos. Lembro que era um restaurante pequeno, com três janelas com vista para o mar, e espaço para mais ou menos 10 mesas. Lembro das filas na escadaria, de pessoas esperando para almoçar. Mas o que me marcou muito foi ver minhas tias dentro daquela cozinha pequena tentando ao máximo fazer receitas semelhantes às que aprenderam com a mãe”, lembra Maria das Graças.
Com a instalação do novo (e atual) Mercado Modelo, no prédio da antiga alfândega do Porto de Salvador, o Restaurante Maria de São Pedro se mudou mais uma vez, em 1971. No novo endereço, em 1972, passou a dividir o salão do 1º andar com o Restaurante Camafeu de Oxóssi. Mestre de capoeira, cantor, compositor, comerciante e figura central do candomblé, Camafeu nasceu em 1915, conheceu Maria e cantou sobre ela: "Maria é um pedaço da Bahia. Maria é baiana autêntica, de tabuleiro repleto de pratos e de prazeres. Maria é guisada de simpatia e de tradição (...) A magia de Maria renasceu na figura de seus filhos e netos. Quer uma prova? Faça seu pedido”.
No novo endereço, com uma varanda inteira voltada para a Baía de Todos-os-Santos, o Maria de São Pedro seguia atraindo cada vez mais turistas e, em 1994, uma mudança no horário de funcionamento prometia atrair ainda mais gente para experimentar as delícias do local. “Agora, os tradicionais restaurantes Camafeu de Oxóssi e Maria de São Pedro, no Mercado Modelo, voltam a fazer parte da extensa lista de endereços da cidade que funcionam também depois do entardecer. Conforme autorização da Emtursa, os restaurantes podem abrir suas portas à noite, às quintas, sextas e sábados, até às 23 horas, com jantar e show de música ao vivo", explicava matéria em A TARDE, do dia 14 de setembro daquele ano.
Maria Célia e Maria das Graças não conheceram a avó ou o sabor da comida feita pelas mãos dela, mas a memória oral compartilhada entre mães, tias e netas fez de Maria de São Pedro uma inspiração que alimenta o imenso desejo de não deixar que a tradição do restaurante se perca mesmo após 100 anos. "Eu só tenho boas memórias dessas mulheres guerreiras cozinhando, buscando, coordenando e tentando manter o nome da mãe. Não podemos, claro, deixar os homens da família de lado, em especial o Luiz Domingos, que por um certo tempo tomou conta do restaurante junto com as irmãs, sempre lutando com orgulho pelo que a mãe deixou", acrescenta Maria das Graças.
Com a história de luta de Maria de São Pedro se unindo às histórias de seus próprios filhos e filhas, Maria das Graças afirma não saber encontrar palavras suficientes para expressar o quanto isso moldou a família. "Mesmo minha mãe, que hoje está com 90 anos, ainda tem uma personalidade forte, sempre dizendo que quem manda nela é ela mesma. Então, dá para perceber o quanto foi colocado e gravado nelas essa forma gigante de ser. Mulheres pretas determinadas, sempre buscando criar os filhos com uma certa independência. Me gratifica muito ter nascido nessa família de mulheres guerreiras", afirma.
*Colaboraram Andreia Santana e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do Cedoc/A TARDE