Memória popular garantiu o resgate das histórias de heroínas negras
As trajetórias de Maria Felipa, Tereza de Benguela, dentre outras mulheres, têm ficado mais conhecidas por conta dos movimentos sociais
No próximo dia 25 será celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. No Brasil, na mesma data, é comemorado o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Tereza de Benguela foi a líder de um quilombo no território do hoje Mato Grosso e é uma das muitas mulheres negras que têm a sua trajetória ainda à espera por mais informações assim como Maria Felipa. O protagonismo delas é resultado da ressonância resistente do imaginário popular, do ativismo dos movimentos sociais e das abordagens feitas por pesquisadoras e pesquisadores que assumem uma nova concepção sobre as teorias e métodos das ciências sociais. Heroína da Independência da Bahia, agora amplamente reconhecida neste status, Maria Felipa ganhou maior projeção em tempos recentes, mas, em A TARDE, as disputas em torno da sua memória são mais antigas, como foi registrado na edição de 27 de fevereiro de 1960.
Nesta edição foi publicada a reportagem sobre uma briga em torno da entronização de um cruzeiro. Um grupo de moradores de Gameleira, liderado pelo major Eloy, resolveu reconstruir a estrutura que havia sido derrubada por ordem do prefeito Livio Garcia Galvão. O prefeito e o major eram adversários políticos.
“Embargada a obra, os seus construtores, não tomaram conhecimento do embargo, prosseguindo, como prosseguiram, na execução da mesma obra. Assim desautorado, o chefe do executivo municipal solicitou o auxílio da polícia e mandou destruir, sumariamente, o que se tinha feito sem permissão da Prefeitura. Os correligionários do major Eloy inconformados com as providências adotadas pelo Prefeito, mandaram acintosamente fazer a reconstrução do Cruzeiro, o que o chefe do executivo, na certa, só permitirá depois de requerida a licença. Para isso não lhe faltam recursos. O que não é possível é que a sua autoridade fique diminuída”. (A TARDE, 27/02/1960, p.10).
No centro dessa polêmica está a memória de Maria Felipa. A construção do cruzeiro no distrito de Gameleira havia sido justificada na edição do dia 23 de fevereiro do mesmo ano em A TARDE como uma referência do lugar em que ela teria atuado no comando da expulsão de invasores. Mas há um erro crucial: o texto aponta um confronto com holandeses sem relação com as batalhas das guerras da Independência do Brasil na Bahia.
“Segundo se diz fôra ele ali colocado em homenagem a uma jovem, filha do local, e conhecida por Maria Filipa que, empunhando um archote, tentou incendiar os navios holandeses quando da invasão flamenga da Bahia”. (A TARDE, 23/02/1960, p.11).
A invasão holandesa da Bahia ocorreu no início do século XVII. Já a Guerra da Independência do Brasil na Bahia foi travada no século XIX. A batalha mais famosa na região de Itaparica ocorreu em janeiro de 1823.
“A confusão sobre Gameleira é porque na descrição de Ubaldo Osório sobre Maria Felipa ele se refere à Rua da Gameleira como o endereço em que ela morava. Há realmente esse tipo de confusão com o distrito de Gameleira”, diz Augusto Albuquerque, advogado e pesquisador que mora em Itaparica.
Resgate
Maria Felipa passou a ter maior protagonismo como heroína da Independência da Bahia há mais ou menos 20 anos. Augusto Albuquerque aponta que novas informações, como as levantadas por Felipe Brito, pesquisador sobre a trajetória de Maria Felipa, apresentam evidências mais fortes sobre a sua trajetória.
A principal fonte sobre a mulher pescadora e marisqueira que armou um plano audacioso para frear o ataque português contra Itaparica foi o livro A Ilha de Itaparica- História e Tradição, de Ubaldo Osório, avô do escritor João Ubaldo Ribeiro. Segundo a versão de Ubaldo Osório, Maria Felipa articulou uma emboscada para incendiar os navios invasores. Enquanto um grupo ficou escondido para o ataque com fogo, ela e outras mulheres foram para a beira da praia e fizeram acenos para os portugueses. Quando eles se aproximaram foram recebidos por elas com galhos de cansanção, ou seja, a astúcia e coragem de uma mulher do povo foi o grande trunfo da resistência em Itaparica.
Na edição de A TARDE que contou o imbróglio por conta da construção e demolição do cruzeiro a versão da participação de Maria Felipa na Guerra da Independência da Bahia foi registrada com a inclusão da citação de um trecho do livro de Ubaldo Osório:
“Na noite de 16 de janeiro de 1823 quando a população da Ponta festejava, no Largo da Fortaleza, a vitória dos Independentes, Maria Felipa, à frente das suas legionárias, invade armação da pesca do porto da Cruz. Espanca o vigia, o Guimarães das Uvas, e sai pelas ruas cantando em altas vozes: “Havemos de comer/Marotos com pão/Dar-lhe uma surra/De bem cansanção/Fazendo as marotas/Morrer de paixão”. (A TARDE, 27/02/1960, p.10).
Estratégias
Essas reportagens de A TARDE são amostras de como as tradições de registro das memórias por outras fontes que não apenas a escrita, mesmo sem o respaldo da historiografia oficial, mostra força. Além de Maria Felipa, a memória de outras mulheres negras tem ganhado novos contornos e estratégias, como a criação de datas para marcar estas trajetórias. Em 2014, a Lei n° 12.987, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff, criou o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra que se juntou a outra comemoração na mesma data: o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha reconhecido pela ONU. O pedido veio da Rede de Mulheres Afro- Latino-Americanas e Afro-Caribenhas que se reuniram para um encontro em 1992 na República Dominicana.
A partir desses marcos, em Salvador e outras cidades brasileiras, no mês de julho, são realizadas diversas atividades voltadas para divulgar a luta e memória das mulheres negras, com destaque para as marchas. “Estamos tratando do papel dos heróis e das heroínas na história de um grupo, de um povo. O ideal é que valorizássemos trajetórias coletivas. A escolha de indivíduos, no lugar de coletividades para homenagear, diz muito do modelo de sociedade que construímos. A ênfase é na líder, no feito pessoal, no orgulho, força e determinação. Nesse feito individual, as pessoas do presente se espelham, buscam inspiração. Isso está nas histórias de deuses e deusas, heróis e heroínas que compõem inúmeras mitologias. E aqui não estou tratando mito como mentira e sim como uma construção coletiva que dá suporte, que estrutura a constituição de uma identidade coletiva, uma origem”, analisa a historiadora Maria Claudia Cardoso Ferreira, doutora em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
Licenciada da universidade para atuação no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Maria Claudia Ferreira, que integra a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros afirma que fontes históricas não devem ser hierarquizadas. Segundo a historiadora, as tradições de construção e transmissão pela oralidade têm status de confiabilidade como as que são chamadas de oficiais. “Como seria se não pudéssemos considerar essas narrativas para contar sobre o passado de populações que não tiveram o direito à escrita do português; foram obrigadas a renunciar às suas escritas originárias ou mesmo se negaram a aprender a escrita do colonizador? Assim, não acho que haja uma persistência das memórias sobre essas mulheres e sim o curso comum da memória coletiva de origem negra e popular; e uma maior visibilidade dessa memória por conta da entrada de pessoas negras, mulheres, de origem popular, periférica nas universidades e em outros espaços de produção histórica”, acrescenta.
Modelo social
Maria Claudia Ferreira aponta que tem ocorrido uma promoção e mobilização de fontes diversas para dar visibilidade a estes conhecimentos. “Estamos disputando as narrativas. Então para que outras histórias de mulheres em geral e de mulheres negras em particular surjam é preciso investimento em formação, em políticas de memória e para isso essas pessoas precisam estar nesses lugares concebendo, propondo e gerindo as ações. É importante refletir, quem, onde e como se ensina e aprende sobre essas mulheres”, reitera.
De acordo com a historiadora, os registros sobre o Quilombo do Quariterê, que foi liderado por Tereza de Benguela, são de uma fonte considerada oficial do século XVIII: os Anais de Vila Bela. “Em 2006, as professoras Janaína Amado e Leny Anzai publicaram esses escritos em forma de livro. Ali é possível saber sobre o dia a dia do quilombo, os enfrentamentos, a destruição e sobre a morte de Tereza, ainda que sob o olhar dos homens que compunham a Câmara de Vereadores da Vila”, avalia.
A professora Maria Claudia Ferreira explica que não há uma imagem de representação de Tereza de Benguela. A ilustração que é associada a ela é de autoria de Félix Valloton e intitulada Mulher Negra Sentada. A imagem foi publicada em 1911. “Nos últimos anos ela foi adotada por organizações do movimento negro para representá-la. Assim como não temos retratos de Chica da Silva e Maria Felipa”, completa. Para Maria Felipa, a perita criminal e desenhista, Filomena Orge, elaborou um retrato com bases nas informações que foram sendo disseminadas sobre ela ao longo do tempo. Hoje essa imagem é usada como referência.
De acordo com Maria Claudia Ferreira é importante ampliar o acesso a essas histórias especialmente nos espaços de ensino, pois elas auxiliam na compreensão das lutas de movimentos sociais do Brasil contemporâneo. “Tereza de Benguela, insisto em pontuar, foi uma liderança política e precisamos olhar para outras mulheres negras nesse lugar. Tereza liderou o quilombo do Quariterê e enfrentou as forças da estrutura colonial. O quilombo era autossustentável, agregou africanos, seus descendentes e grupos indígenas. Hoje ao acessarmos a história de Tereza é importante associar com as “Terezas” que resistiram, lideraram e traçaram estratégias em outros tempos”, analisa a professora.
Por essa necessidade de aprendizagem, o mês de julho com esses marcos comemorativos tem reunido eventos diversos e com repercussão, afinal cada geração necessita ter informação para acrescentar novas formas de estratégias que ajudam as mulheres negras a vencer as várias formas de violência. É um tipo de memória que se renova e reconhece o passado como um incentivo permanente para o futuro.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia