Mercado de Água de Meninos mudou de nome, mas resiste há 85 anos
Construído durante projeto de urbanização de Salvador na primeira metade do século XX, estabelecimento herdou o apelido da feira incendiada em 1964
“Em Salvador, o nome que o povo coloca é o que fica”. A frase de um antigo permissionário do Mercado das Sete Portas, que originalmente se chamava 1º de Maio, serve para ilustrar o que aconteceu com o Mercado de Água de Meninos, rebatizado desde 2003 como Mercado Municipal de Frutos do Mar, embora parte da população ainda o chame pelo apelido original ou apenas de Mercado do Peixe. O estabelecimento, que completou 85 anos em 2025, têm sua história emaranhada com a da feira homônima que funcionava ali mesmo, nas imediações da Avenida Jequitaia, no Comércio.
Água de Meninos, segundo a versão mais corrente na capital, herdou o nome quase poético das prainhas que se formavam na enseada onde crianças, vindas de áreas da cidade como Santo Antônio Além do Carmo e Lapinha, costumavam tomar banho de mar e brincar. Quando o mercado foi construído, a partir do final dos anos 1930, era nessa enseada que aportavam os saveiros vindos do Recôncavo com as mercadorias que abasteciam a feira. As prainhas já não existem mais na configuração da Salvador de outros tempos, porque foi aterrada nos anos 1960 para as obras de expansão do porto da cidade, inaugurado em 1913. Os aterros para a criação do porto começaram em 1911.

Inaugurado no dia 12 de abril de 1940, o Mercado de Água de Meninos foi concebido para modernizar e organizar a principal área de comércio da capital na época, durante a administração do prefeito Durval Neves da Rocha (1938 – 1942). O projeto, encomendado ao engenheiro Bruno Coutinho, teve a planta executada pela Companhia de Mercados Públicos. Um dos sócios dessa companhia era o empresário Manoel Pinto de Aguiar, o mesmo responsável pela criação do Mercado das Sete Portas, também nos anos 1940.
Uma das principais marcas da gestão de Neves da Rocha à frente de Salvador foram as reformas e obras visando modernizar a cidade. Algumas delas, como a dos mercados populares, causavam polêmica devido a opiniões que já apontavam um processo incipiente de gentrificação. Havia quem defendesse que esses espaços substituiriam as tradicionais feiras livres e que a medida era necessária por questões de salubridade e higiene na comercialização de alimentos. Enquanto outros defendiam a cultura popular alimentada pela dinâmica das feiras e a ocupação do solo pelos feirantes há gerações.

Obra moderna
A edição de A TARDE de 10 de agosto de 1938 anunciava as reformas da administração municipal e enumerava o que a prefeitura iria fazer na região do Comércio. "Duas grandes obras o prefeito Neves da Rocha está realizando: a construcção de uma via de acesso ligando a cidade baixa à cidade alta e a construcção do mercado de Água de Meninos. [...] Quanto a realização de um mercado público em Água de Meninos, vae attender a necessidade flagrante de edifícios como esse em nossa capital", dizia o texto, explicando ainda que faltavam estabelecimentos do tipo na cidade e que espaços como o Mercado Modelo eram pequenos para funcionar como centros de abastecimento.
"A inauguração agora de um mercado moderno, justamente em Água de Meninos, zona proletaria, muito comercial, é motivo de satisfação. O novo prédio construído pela Companhia de Mercados Públicos, obedece à planta aprovada pela Municipalidade e, segundo a opinião dos entendidos, está de acôrdo com os princípios de higiene estetica", diz outra publicação de A TARDE, em 10 de abril de 1940.

Ocupando uma área de 2.300 metros, o Mercado de Água de Meninos foi inaugurado com 168 barracas e 26 lojas identificadas por letras de A à W e distribuídas pelas duas faces da construção, "isto é, parte para Água de Meninos e parte para Água Brusca", explica a reportagem, que acrescenta que no segundo andar foram construídos outros 11 compartimentos para aluguel, Além disso, seis bebedouros se espalhavam por todo o prédio, que contava com oito banheiros, metade para os homens e metade para as mulheres. A instalação de frigoríficos, já comuns no sul do país, como o jornal revela, enfatizavam a modernidade do projeto na visão de seus criadores.
"Um dos aspectos que mais chama a atenção são os frigoríficos. Basta vêr-se aquela dependência de 100 metros cúbicos para depósito de carne, peixe, hervas e frutas, sem falar numa peixaria com câmaras frigorificas. Os frigoríficos são uma necessidade. As capitais do sul do país já os possuem em número que, de certa forma, atende as necessidades públicas. Entre nós, nesse particular, muito pouco existia. Basta dizer que os inúmeros açougues espalhados no perímetro urbano obedecem todos a um tipo antigo. São pequenos depósitos para o retalho das carnes (...) Diante disso não se póde deixar de louvar a providência adotada no novo mercado, a qual virá garantir a carne, o peixe, ovos, hortaliças, dando ao comercio desses artigos maior segurança e melhores lucros", detalha a reportagem de 1940 de A TARDE.
Barracas e memórias
Maria de São Pedro, personagem já retratada pelo A TARDE Memória, em julho deste ano, no centenário do restaurante que leva o nome da cozinheira que era amiga de Jorge Amado e foi fotografada por Pierre Verger, tinha uma barraca de comida na Feira de Água de Meninos e, com o novo mercado, mudou seu comércio para lá, inaugurando o primeiro restaurante de comida afrobaiana da cidade. De Água de Meninos, ela se mudou para o antigo Mercado Modelo e depois, para o atual, onde o restaurante existe até hoje tocado por sua família.
Com a inauguração do Mercado de Água de Meninos, outros barraqueiros que tinham estruturas fixas na feira foram realocados para o estabelecimento novo. Os feirantes remanescentes, após o incêndio que consumiu a antiga feira, em 1964, se instalaram mais à frente do antigo endereço, contribuindo para a formação da Feira de São Joaquim. A própria Água de Meninos, por sua vez, era derivada de um comércio mais antigo, a Feira do Sete, incendiada em 1934. Na época da inauguração do novo mercado ainda havia remanescentes da Feira do Sete em atividade, conforme indica reportagem de A TARDE de 11 de abril de 1940, na véspera da abertura do estabelecimento recém-construído.

"Com a inauguração, amanhã, do Mercado de Água de Meninos, serão transferidos para o mesmo, por determinação da prefeitura, as barracas permanentes das feiras de Água de Meninos e do Sete. No novo mercado, as condições higiênicas são outras”, informava a nota.
A origem de parte dos permissionários ajudou a borrar as fronteiras, no imaginário coletivo, entre o que era o Mercado de Água de Meninos e o que era a Feira de Água de Meninos. Ao menos, até o desaparecimento da feira em 1964, 24 anos depois da inauguração do mercado, feirantes e permissionários se misturavam a partir de uma origem em comum. A historiadora Alessandra Carvalho da Cruz, professora da Universidade Católica (Ucsal), explica as sutis diferenças entre um comércio e outro:
"A feira é um lugar que você chega com suas frutas, cestas e todos os produtos, os dispõe, seja em um tabuleiro ou até numa lona no chão, e vende, inclusive andando pelo espaço da feira. As feiras possuem um sentido de mobilidade muito forte, quase nômade, pois ao fim é preciso remover e deslocar dali o tabuleiro que você armou para que aquele espaço seja utilizado para outros fins", define. Já os mercados, acrescenta, foram criados com a intenção de organizar um comércio popular que já existia.
O Mercado de Água de Meninos, seja em seu nome de origem herdado da antiga feira ou nos muitos nomes ao longo do tempo, como Mercado Popular de Água de Meninos e, a partir dos anos 2000, Mercado Municipal de Frutos do Mar, é um repositório de memórias e histórias fundamentais de Salvador, diz Alessandra. "Muitos daqueles homens e mulheres que continuam ali herdaram dos seus antepassados esse compromisso de continuar com as atividades. É uma memória que é transmitida oralmente, que fala sobre a nossa história e nos faz entender como a cidade foi ocupada".
Ainda segundo a professora, mesmo atualmente, a população de Salvador se alimenta de diversos produtos vindos do Recôncavo e do interior da Bahia ao frequentar esses mercados populares remanescentes e as feiras, como São Joaquim. “Ali, você também conhece pessoas, pensamentos, histórias de vida, narrativas e leituras muito próprias do que está acontecendo na cidade. Passar um dia no mercado e vivenciar isso é algo importante para o baiano e para o soteropolitano. Os mercados preservam esse sentido de diversidade que é importante para todos nós", afirma.

*Com a colaboração de Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas
*Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE
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