Movimento Negro Unificado luta contra o racismo há 47 anos
Organização chegou à Bahia no final dos anos 1970 e entre outras pautas atuou pela criação das cotas e a valorização do Dia da Consciência Negra

Um dos pilares da luta antirracista no Brasil, o Movimento Negro Unificado (MNU) possui uma trajetória de 47 anos marcada por resistência, mobilização e construção de políticas públicas voltadas para a população negra. Fundado em plena ditadura militar, em São Paulo, o MNU não demorou a alcançar todo o Brasil. Na Bahia, chegou ainda em 1978 e se consolidou como referência na defesa dos direitos civis e na valorização da identidade afro-brasileira, protagonizando campanhas históricas contra a violência, o racismo estrutural e o acesso pleno da população afrodescendente à educação.
Para celebrar o Novembro Negro e o Dia da Consciência Negra (20), o A TARDE Memória inicia neste sábado uma sequência de cinco reportagens especiais com temas afro centrados, tendo como base os registros guardados no Centro de Documentação e Memória de A TARDE (CEDOC). Na primeira da série, contamos a história da origem e da importância do MNU.
O Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial foi criado em 18 de junho de 1978, em São Paulo. A iniciativa foi uma resposta à discriminação racial e à violência contra a população negra do Brasil e nasceu da reunião de organizações que lutavam pelas causas do povo negro durante a ditadura. O lançamento público do movimento aconteceu em 7 de julho daquele ano, quando duas mil pessoas marcharam até as escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, após dois casos de racismo e violência.
"O primeiro foi um caso de discriminação sofrida por um grupo de jovens negros que queriam acessar o Clube de Regatas Tietê e o segundo, o mais grave, foi o assassinato de Robson Silveira da Luz pela polícia. Ele era um comerciante e foi acusado injustamente de roubo. As pessoas foram às ruas cobrar justiça e desta união nasceu o MNU", conta o filósofo Raimundo Gonçalves do Santos, presidente do Fórum de Entidades Negras da Bahia.
Membro do MNU desde a chegada do movimento à Bahia, no final de 1978, ele é conhecido na militância como Raimundo Bujão e atualmente é também o secretário estadual de Formação Política do MNU - Bahia. Bujão conta que o movimento passou a ser chamado de MNU ainda no primeiro ano e que a alteração da nomenclatura aconteceu na reunião realizada na Bahia. "Aconteceram algumas assembleias em outros estados depois da marcha em São Paulo. Uma delas foi na Bahia e foi aqui que a direção resolveu mudar o nome para Movimento Negro Unificado".
Racismo estrutural
Um dos pioneiros em articular uma luta negra coletiva, combatendo o mito da democracia racial que vigorava desde o fim da escravização e denunciando o racismo estrutural da sociedade brasileira, o MNU foi inspirado por entidades negras que vieram antes e inspirou frentes e coletivos posteriores.
“Sempre acho importante destacar o papel do Ilê Aiyê na história do movimento. O Ilê surgiu em 1974 e influenciou muito as organizações negras no sudeste e sul do país. Ele é o primeiro grito de afirmação da identidade, o mais ousado desafio dos negros. Trouxe uma bandeira muito forte, que afirma sua identidade: o negro é bonito, o negro é sujeito”, afirma Raimundo Bujão.
Um dos anos mais marcantes da história do movimento foi 1988, como explica a historiadora Viviane Sena de Jesus, na monografia "Nas Páginas do Jornal Nêgo: O MNU e a luta contra o racismo e por direitos sociais no Brasil da redemocratização (Década de 1980)". Segundo ela, 1988 foi o ano que congregou instituições como a Unegro - União de Negros pela Igualdade (Salvador), o Projeto Vida de Negro (Maranhão) e o Instituto da Mulher Negra Geledés (São Paulo). Além disso, na ocasião ocorreram vários eventos como a Marcha Contra a Farsa da Abolição e o Encontro Estadual da Mulher Negra, ambos no Rio de Janeiro.
Também foi em 1988 que o Brasil publicou a Constituição Cidadã, elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte implantada após a ditadura militar. A nova carta incorporou pautas do movimento negro como a criminalização do racismo e a demarcação das terras quilombolas, pautas que se mantém relevantes até os dias de hoje e se tornaram marcos dos movimentos negros.
Luta por educação
A Lei nº 12.711 tornou obrigatória a reserva de vagas em universidades e institutos federais para estudantes de escolas públicas, com subcotas para pretos, pardos e indígenas, em 2012, mas 10 anos antes, a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) implantou seu próprio sistema de cotas durante a gestão da primeira reitora negra do país. Escritora, etnolinguista, professora e mestre em educação, Ivete Alves de Sacramento foi uma das fundadoras do MNU na Bahia e, junto ao Conselho Universitário da instituição, criou o sistema de cotas da Uneb, a primeira universidade do país a adotar a reserva de vagas.
"Ivete, 44 anos, 27 dedicados à educação, salientou que não deixa de ser um fato inédito estar concorrendo ao pleito uma educadora negra, observando, entretanto, que o objetivo do lançamento de sua candidatura é consolidar a Uneb como universidade pública e gratuita. 'A universidade tem que retribuir os anseios da sociedade', afirma". O trecho é de publicação em A TARDE, na edição de 21 de agosto de 1997, anunciando a candidatura de Ivete à vaga na reitoria, onde ela ficou de 1998 até 2005.
Nos anos seguintes, outras universidades foram adotando o sistema de cotas, enquanto o movimento lutava para que a iniciativa fosse uma realidade em toda a rede pública de ensino superior do país. Um dos momentos mais marcantes dessa mobilização aconteceu em maio de 2004, quando alunos e integrantes de movimentos negros fizeram marchas, manifestações e ocuparam a reitoria da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
"O reitor Naomar de Almeida Filho defende que as cotas são 'uma forma de reparação do passado colonial vergonhoso'. (...) Roque Peixoto, do MNU e integrante do Comitê Pró-Cotas, acha que é importante o comparecimento maciço 'dos negros pobres e excluídos' para mostrar aos conselheiros que o assunto é muito sério", informava A TARDE na edição de 16 de maio de 2004.
Em julho daquele ano, a Ufba oficialmente adotou políticas de cotas para negros e egressos de escolas públicas. A política de cotas só se tornou lei oito anos depois e de lá para cá foi ampliada para outros grupos socialmente minoritários como PCDs, transgêneros e indígenas.
Mas, quando o assunto é educação, há muito que precisa ser feito, segundo lembra Raimundo Bujão. Um bom exemplo é o não cumprimento das lei de nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que tornaram obrigatórios o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras.
Além da falta de compreensão e preconceito por parte de quem associa o ensino da história afro-brasileira e indígena a questões religiosas, há ainda – na visão do ativista – “desinteresse e descompromisso governamental, pois a educação brasileira foi feita para as pessoas obedecerem, não para refletirem e terem a sua capacidade crítica aguçada", reflete o presidente do Fórum de Entidades Negras.
Para mudar essa realidade, o MNU investe em colocar mais pessoas negras em posições de poder no âmbito político. E, vale ressaltar, a luta da organização não se limita a participação em decisões governamentais, “mas também manifestações em prol de transformações coletivas reais no cotidiano, dentro e fora das comunidades. O movimento desenvolveu papel relevante ao desafiar as estruturas de poder, ao buscar promover mudanças sociais concretas, em um cenário de repressão", aponta Viviane Sena de Jesus em sua monografia.
Ao longo dos anos, os movimentos negros no Brasil impulsionaram a valorização da cultura negra, ampliando a representatividade política e criando espaços de resistência que seguem consolidando uma agenda que articula raça, gênero e classe. Entre as conquistas mais recentes há a Lei nº 14.759, que tornou o 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, feriado nacional desde o ano passado. A data marca a morte de Zumbi dos Palmares.
Desde a sua fundação, o MNU sempre lutou, por exemplo, para ressignificar as comemorações do 13 de maio, quando a Lei Áurea foi assinada abolindo oficialmente a escravidão, interpretando a data como um dia nacional de combate ao racismo. A ideia é levar a sociedade a refletir sobre a reparação histórica e social necessária em decorrência dos mais de três séculos de escravização. Além disso, o MNU e outras entidades negras sempre atuaram para fortalecer o significado do 20 de Novembro como o símbolo maior de resistência e busca por reparação e cidadania plena.
RODAPÉ
*Com a colaboração de Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas
*Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE
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