Museu preserva herança da cultura banto em Lauro de Freitas
Criado em 2002, o espaço funciona no Terreiro São Jorge Filho da Gomeia e resguarda o legado de Mãe Mirinha de Portão e da comunidade local

O que é um museu? Na concepção da Mameto de Inquice Kamurici (Maria Lúcia Neves), é um espaço vivo e em constante transformação. É o lugar que conecta o passado, a ancestralidade, ao presente, ajudando a indicar os caminhos para o futuro. Líder religiosa do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia, em sucessão à sua avó, Mãe Mirinha de Portão, que fundou a casa em 1949, Mãe Lúcia, como também é conhecida, se mantém à frente do museu comunitário em funcionamento dentro do terreiro, que completa 21 anos de tombamento este ano. O museu foi criado em 2002 para preservar o legado da fundadora da casa e da comunidade local.
O Terreiro São Jorge Filho da Gomeia foi o primeiro espaço religioso de matriz africana reconhecido pelo governo baiano como patrimônio imaterial pelo IPAC - Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Antes desse feito, os demais tombamentos de terreiros de candomblé tinham sido iniciativas federais. O evento de tombamento ocorreu em 15 de abril de 2004 e teve anúncio na edição de A TARDE do dia anterior. O museu e suas muitas histórias também sempre tiveram espaço no jornal, assim como Mãe Mirinha, que tem uma coleção de fotografias no Cedoc - Centro de Documentação do jornal.
Na ocasião do tombamento, o babalorixá e antropólogo Júlio Braga afirmou ao A TARDE que a iniciativa era uma troca que envolvia ganhos para os seguidores do culto afro, mas também para todo o Estado. “É uma forma de inclusão sociocultural que ao mesmo tempo traz benefícios à cultura baiana, pois o que a diferencia é exatamente as suas raízes africanas”, disse o pesquisador, na reportagem de 14 de abril de 2004.

Com o museu comunitário que leva o nome de Mãe Mirinha é a mesma coisa. Para Mãe Lúcia, o museu é a preservação da história, relação com a comunidade, o amor sobre o próprio tempo em que se vive e é sobre o Tempo enquanto divindade cultuada no panteão banto, já que o São Jorge Filho da Gomeia é uma casa de candomblé de tradição congo-angola, diferente dos terreiros nagô (iorubá).
“A gente precisa conhecer a história do mundo, conhecer a história do outro. Mas a gente também precisa conhecer e preservar a nossa própria história. Às vezes, a gente pensa que por morarmos em Portão [Lauro de Freitas], em um bairro pobre, em um lugar distante, que a gente não tem essa importância ou que não precisa ter essa importância. E o museu é isso”, afirma Mãe Lúcia.
A perspectiva de um museu comunitário e ligado à tradição cultural e religiosa de matriz africana difere da ideia eurocêntrica e branca para esses espaços. Como Mãe Lúcia explica, em vez de um lugar que vai legitimar apenas obras de arte como a Monalisa ou a Vênus de Milo, a ideia do acervo guardado no terreiro é aproximar a comunidade a partir de suas memórias coletivas. O Museu Comunitário Mãe Mirinha de Portão tem uma sala específica para os objetos e fotografias, mas, de certa forma, todo o terreiro e sua história fazem parte do acervo, assim como as pessoas da comunidade que construíram e atuam na manutenção de saberes e modos de fazer.
“Logo na passagem de Mãe Mirinha para o mundo espiritual, a gente pensou em fazer o museu, mas um museu diferente, comunitário, onde, não só estaria preservada toda a sua história, todo o seu legado, mas também tudo o que acontece dentro do terreiro e no seu entorno. A gente não preserva só as coisas de Mãe Mirinha, mas tudo que a comunidade faz”, enfatiza Mameto Kamurici.

Tour pela memória
Quem visita o Museu Comunitário Mãe Mirinha de Portão acaba conhecendo todo o terreiro e não só os itens em exposição, que vão sendo renovados continuamente. A visita, que pode ser feita sempre de segunda a sexta-feira, possibilita um tour pelos espaços do terreiro desde a entrada, guardada por Nzila, até chegar a Lembarenganga, até a ancestralidade, e a Nsumbu, a terra que nos acolhe na jornada final, como diz Mãe Lúcia, citando os nomes dos inquices cultuados na casa.
“As pessoas acabam conhecendo todo o terreiro, toda a história de todos os inquices, entendendo como é que a gente funciona, o que é que a gente cultua, quem nós somos, nosso trabalho social, que além do museu, temos uma biblioteca, também comunitária, porque as crianças precisam conhecer a verdadeira história do nosso povo negro”, acrescenta a mameto, que é o termo banto para o cargo equivalente ao de ialorixá nas casas de tradição nagô.

O Museu Comunitário Mãe Mirinha de Portão consta no catálogo nacional de museus. Além disso, acrescenta Mãe Lúcia, é o único de Lauro de Freitas. A cidade da região metropolitana, situada a 22 km de Salvador, não possui outros espaços culturais semelhantes, sejam ligados às religiões de matriz africana ou mesmo aos museus de modelo padrão e mais ocidental.
“Este espaço é importante para as crianças, para o tempo de valorização e respeito. Mãe Mirinha era muito preocupada com a comunidade, com o emprego, saúde, equilíbrio espiritual”, enumera a neta da sacerdotisa fundadora.
Entre os saberes preservados no museu estão, por exemplo, as formas de toque dos tambores para chamar os inquices nas cerimônias banto, que diferem dos toques para chamar os orixás nas festas nagô. Além disso, a feitura dos panos de alaká, ou panos-da-costa, que tem variações dentro das tradições dos muitos povos africanos, é preservada e explicada para os visitantes, a partir das oficinas de tecelagem mantidas no terreiro. A história do bloco afro Bankoma, criado dentro do terreiro, também faz parte do imaginário conservado no museu, bem como os conhecimentos de corte e costura empregados nas roupas usadas nas festas e cerimônias.
Mameto Mirinha
Embora cultue todos os inquices e, principalmente, o Tempo, o Terreiro São Jorge Filho da Gomeia é de Gongobila Mutalambô, a divindade banto equivalente ao orixá Oxóssi, o caçador. A casa foi fundada por Mãe Mirinha dentro da tradição iniciada por seu pai de santo, o mítico Joãozinho da Gomeia que, por sua vez, vinha de uma tradição ligada a Jubiabá, sacerdote que foi imortalizado em livro homônimo de Jorge Amado. Joãozinho da Gomeia era extremamente conhecido no seu tempo e sua casa de candomblé, frequentada por intelectuais e escritores.
Mãe Mirinha foi iniciada na infância no terreiro de Joãozinho, em São Caetano, que ficava situado em uma colina chamada Gomeia. Ela manteve esse nome ao fundar a própria casa de candomblé como demonstração do vínculo ancestral, da linhagem entre as casas de seu pai de santo Joãozinho, que tinha terreiros também no Rio de Janeiro, e a nova casa, como explica a jornalista e doutora em antropologia Cleidiana Ramos, em reportagem publicada no A TARDE em 2006, quando uma exposição sobre Mãe Mirinha foi inaugurada no museu.
“O Terreiro São Jorge Filho da Gomeia nasce aqui em Portão há 75 anos, esse ano faz 76, fundado por Mameto Mirinha, Mãe Mirinha de Portão, dessa linhagem de Seu João da Gomeia. Seu João da Gomeia foi um homem extraordinário, assim como mãe Mirinha, à frente de seu tempo, que revolucionou o candomblé. Seu João da Gomeia foi considerado 'rei do candomblé', reconhecido por conta de levar o candomblé da Bahia para o Rio de Janeiro e do Rio de Janeiro para o mundo”, conta Mãe Lúcia.

Mãe Mirinha, além da sacerdotisa responsável por zelar pela parte espiritual da casa, também era uma importante líder comunitária. Citada por Jorge Amado em ‘Bahia de Todos os Santos - Guia de Ruas e Mistérios’, ela conviveu com políticos, intelectuais, empresários e artistas, conseguindo, inclusive, reivindicar melhorias para o bairro de Portão e para a própria cidade de Lauro de Freitas. O Hospital Menandro de Farias, por exemplo, foi construído a partir de uma reivindicação de Mameto Mirinha, nos anos 1970, junto ao então governador Roberto Santos.
“Mãe Mirinha também era à frente do seu tempo, uma mulher negra e que revolucionou o candomblé por se apresentar em filmes, por aparecer em livros, por lidar com a comunidade de uma forma completamente diferente, porque ela era parteira, era conselheira, agência de emprego, cuidava da segurança alimentar. Tudo que a comunidade precisava, o terreiro sempre esteve e sempre está aberto para as necessidades, não só espirituais, não só de dentro do terreiro, mas também para todas as necessidades da sua comunidade”, enfatiza Mameto Kamurici.
Mãe Mirinha (Altamira Maria da Conceição) nasceu em 21 de dezembro de 1924 e morreu, aos 65 anos, em 1989, depois de 56 anos de dedicação ao candomblé, no mesmo ano em que teve início o processo de tombamento do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia. A finalização, no entanto, levou alguns anos e só em 2002, com a criação do museu, o processo de tombamento foi retomado, sendo concluído em 2004. Com o tombamento, que teve na sua comissão técnica a arquiteta Milena Tavares e os sociólogos Jorge da Silva Maurício e Luís Rosa Ribeiro, o terreiro ficou a salvo de qualquer intervenção que descaracterize o seu espaço.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE