Negras da Bahia encontraram nas joias e nas irmandades o caminho para a liberdade
A história das ‘Joias de Crioula’ e suas donas, no século XIX, é pontuada por atos de resistência e muito planejamento financeiro
No romance Um defeito de cor (Record, 2006), a escritora Ana Maria Gonçalves conta a saga de Kehinde, sequestrada ainda na infância no Reino do Daomé (República do Benim), na África, e trazida para a Bahia como escravizada. Nas mais de 900 páginas do livro, uma novelização da vida quase mitológica de Luiza Mahin, a autora revela o longo caminho da protagonista para reconquistar a própria liberdade. Kehinde/Luiza, depois de adulta, torna-se ganhadeira e palmilha as ruas de Salvador vendendo seus quitutes. É assim que ela junta o dinheiro que pagará pela própria alforria.
São comuns ao longo do romance, as referências da personagem às suas joias de ouro. Essas peças e as roupas sofisticadas que Kehinde/Luiza veste no romance, não são pura criação literária. Na Bahia oitocentista, mulheres negras que viviam do ganho transformavam o dinheiro adquirido no comércio em joias de ouro e pedras semipreciosas e preciosas, que ostentavam sobre seus corpos com altivez. Era o equivalente a uma conta poupança para quem não tinha direito aos mesmos mecanismos para a guarda de valores usados pela sociedade branca e escravocrata.
A aquisição ou mandar fazer as joias funcionava como um planejamento de futuro, o que a historiografia contemporânea chama de “Economia da Liberdade”, largamente praticada entre as mulheres negras escravizadas, alforriadas ou libertas que mantinham o sistema para comprar também cartas de alforria para os familiares e amigos. Reunidas em entidades como a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, entre outros grupos de auxílio mútuo, elas mantinham cotas mensais de contribuições que eram revertidas para a libertação do maior número possível de escravizadas. Além disso, compravam ouro, mandavam fabricar joias, apresentavam-se luxuosas.
Os homens também participavam de coletivos solidários, a partir dos cantos de trabalho que organizavam os ganhadores da cidade (carregadores, pedreiros, artesãos, aguadeiros, etc). A Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD) era uma das entidades masculinas. Foi fundada por Manoel Vitor Serra, em 1832, e é considerada a primeira entidade civil organizada de negros no Brasil. Africano liberto, Serra era ganhador e atuava no Canto da Preguiça, como carregador. A irmandade do Rosário dos Pretos era outra que congregava homens negros em grupos de atuação social e religiosa. Fundada em 1685, foi a primeira entidade religiosa de homens pretos do país.
“Elas vendiam seus quitutes e tinham um acordo [com os senhores]. O que elas conseguissem vender por um preço maior do que o combinado com o proprietário, o dinheiro ficava para elas. E elas não iriam guardar isso em dinheiro, iriam guardar em alguma coisa que pudesse ser uma espécie de poupança, de caixinha. Por isso que os balangandãs eram formados ao longo do tempo, porque eles tinham uma charneira aberta onde iam colocando todos aqueles elementos e elas iam comprando aos poucos”, explica a pesquisadora Ana Beatriz Simon Factum, autora da tese ‘Joalheria Escrava Baiana: a construção histórica do design de joias brasileiro’.
Charneira é uma espécie de eixo que une duas partes de uma peça, como uma dobradiça. Na joalheria, é um tipo de fio oco, com usos diversos. As joias de crioula, como os balangandãs também são conhecidos, iam sendo formadas aos poucos, na medida em que essas charneiras eram preenchidas com ouro ou engastadas.
Ana Beatriz defende em sua tese que as joias ostentadas pelas negras de ganho e integrantes de irmandades como a da Boa Morte, têm origem na Bahia do século XVIII e XIX. “Esse é o primeiro exemplo de joia brasileira, que levou 300 anos para se constituir. Qual é o contexto disso, como é que essas joias só surgem depois de 300 anos que os portugueses ocuparam o nosso território e já encontraram aqui os povos originários e trouxeram de forma brutal e de forma escravizada pessoas da África subsaariana, ou África Negra, de várias regiões? Essas pessoas, ao serem retiradas à força da terra de origem, perdem muito. Ficam todas as referências e todas as memórias que elas têm de sua cultura, mas elas perdem a identidade. E, por isso, precisam construir uma nova identidade. As joias surgem como essa possibilidade”.
Poder reconquistado
O Museu Carlos e Margarida Costa Pinto, no Corredor da Vitória, possui uma coleção de joias de crioula que, no acervo da instituição, vêm sendo chamadas de ‘Joias de Liberdade’. A alteração do nome não é descontextualizada, mas se alinha aos estudos sobre a simbologia dessas peças. Ana Beatriz Factum lembra que os antigos senhores de engenho e grandes proprietários de terras gostavam de mostrar o seu poder através da ostentação e enfeitavam as escravizadas no âmbito doméstico, com roupas e joias elegantes. No entanto, nem todas as peças eram de propriedade dos senhores.
“Quando as mulheres [dos senhores] saiam juntamente com os filhos e as escravizadas que serviam no âmbito doméstico, essas estavam também elegantemente vestidas, mas já dentro da composição identitária que as próprias mulheres negras construíram de uma forma híbrida, pegando elementos da cultura africana, da cultura europeia portuguesa e algumas coisas dos povos originários”.
Acontecia também de muitas dessas mulheres ganharem joias por criarem as crianças brancas da família, cita Ana Beatriz. “Como simbologia dessas mulheres, era afirmação de identidade, de resistência ao sistema escravocrata: ‘Olha, eu construo uma identidade própria, minha, eu tenho elegância, eu tenho beleza, eu tenho competência comercial e por isso eu faço dinheiro. E eu tenho competência solidária, porque muitas irmandades de pretos juntavam, faziam uma caixinha para alforriar parentes, amigos, outras pessoas que ainda estavam escravizadas”, afirma a pesquisadora.
Carol Barreto, artista visual e criadora do conceito de ‘modativismo’, acredita que ressignificar as joias de crioula é uma forma de olhar as mulheres negras que construíram o país sob uma nova perspectiva. Uma das curadoras da exposição Dona Fulô e Outras Joias Negras, que pode ser visitada, gratuitamente, até 16 de fevereiro de 2025, no Museu de Arte Contemporânea da Bahia, na Graça, Carol foi convidada para escrever um texto sobre as vestes de Dona Fulô (Florinda Anna do Nascimento), a personagem que nomeia a exposição e que era uma dessas negras majestosas e cheias de ouro com grande influência em sua comunidade.
“Quando eu vou pensar sobre as vestes de Dona Fulô, começo a me identificar como uma mulher de Candomblé, vendo ali o meu camisu, a minha bata, a saia que eu uso no terreiro, compreendendo como essa indumentária tradicional, ao longo dos séculos, nos caracteriza como uma forma de resistência única da Bahia, única do Brasil e, consequentemente, do mundo”, afirma.
A artista visual vê na exposição e no resgate da figura de Dona Fulô o reconhecimento da importância da ancestralidade negra baiana e da importância do quanto a aparência fala tanto em termos de enfrentamento, quanto de planejamento estratégico. “O que é que essas joias têm a ver com o planejamento estratégico? Vamos pensar nesse corpo, nessas joias, como um banco, como um modo de comprar e obter a liberdade dos seus e das suas”, enfatiza.
As peças em exibição na mostra do MAC - Bahia são da coleção particular de Itamar Musse, que passou 30 anos adquirindo joias de crioula e outras obras para sua coleção privada e para o antiquário que administra. A identidade das mulheres negras que ostentavam as peças sempre foi uma curiosidade que o inquietava, principalmente depois que ele viu uma foto de Dona Fulô em toda a sua majestade e elegância.
“Tendo como ponto de partida a foto, iniciou-se uma pesquisa sistemática, conduzida por Zélia Bastos que, além de elucidar fatos capitais acerca das condições em que viviam as mulheres negras, forras ou escravizadas na Bahia dos séculos XIX e XX, revelou o nome completo da retratada: Florinda Anna do Nascimento, carinhosamente chamada de Dona Fulô”, conta Musse, em texto escrito para o A TARDE Memória.
Nascida em Cruz das Almas, Florinda Anna do Nascimento teria vivido até os 103 anos. A edição de A TARDE de 09 de Junho de 1931 traz uma pequena nota que convida amigos e familiares para a missa de um mês de falecimento de Dona Fulô. A missa ocorreu no dia seguinte, 10 de Junho, às 8h, na Igreja de São Pedro.
Organizações solidárias
O acervo do Centro de Documentação e Memória de A TARDE (Cedoc) possui inúmeras imagens de integrantes da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte paramentadas com as roupas cerimoniais luxuosas e as joias de crioula. Uma dessas imagens retrata uma das irmãs no final do século XIX, enquanto outros registros foram feitos pelo fotógrafo Adenor Gondim e pelos fotojornalistas de A TARDE ao longo do século XX, nas coberturas da festa, que é realizada em Cachoeira, há 200 anos.
Fundada em 1821 por mulheres negras alforriadas, a Irmandade da Boa Morte se incumbe até hoje de celebrar a festa da padroeira em pagamento a uma promessa feita ainda nos anos 1800, pela conquista da liberdade de suas fundadoras. Nas origens, também atuava na assistência social às integrantes e seus familiares, incluindo a compra de alforrias até a abolição oficial da escravatura, em 1888, e no auxílio às negras e negros libertos no pós-abolição.
Reportagem de A TARDE de 01 de agosto de 1982, descreve o começo da Irmandade da Boa Morte e a tradição da festa: “O começo da devoção à Nossa Senhora da Boa Morte na cidade de Cachoeira aconteceu quando um grupo de negras escravas conseguiu a carta de alforria, mediante o pagamento de uma dívida, mantendo até hoje os rituais dentro dos rigores estabelecidos na época. Com mais de 200 negras àquela época, a sociedade conta atualmente com cerca de 45 irmãs que nutrem um simbolismo de raro luxo, fundindo o espírito religioso à graça profana do samba de roda”, diz o texto, dando detalhes da festa ao longo da publicação.
A Boa Morte nasceu como uma entidade religiosa afro-baiana criada por mulheres negras em uma sociedade que não só era escravagista, como machista e patriarcal. Mais do que estrategistas da economia da liberdade, as fundadoras eram visionárias e resgatar suas histórias, como diz Carol Barreto, é olhar as mulheres negras brasileiras sob outra perspectiva, muito mais condizente com sua força e representatividade.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE