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A Tarde Memória

Por Andreia Santana*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 21 de setembro de 2024 às 1:00 h | Autor:

No caminho da Liberdade tem uma igreja que congrega todos os credos

Fundada em 1941, a paróquia de São Cosme e São Damião tem sua história ligada ao bairro e sua comunidade; festa é tradição de cinco gerações

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Caruru de São Cosme e São Damião servido para frequentadores do Pelourinho, em 27 de setembro de 1995
Caruru de São Cosme e São Damião servido para frequentadores do Pelourinho, em 27 de setembro de 1995 -

Carregar tijolos e bater laje em nome da fé. O cansaço pela dureza da lida cede lugar à satisfação de cultuar os santos da devoção em um templo construído só para eles. Com sua existência ligada à história do bairro que a hospeda, a paróquia de São Cosme e São Damião, na Liberdade, se prepara para mais um ano de celebração aos padroeiros, recebendo católicos e fiéis das religiões de matriz africana, nos dias 26 e 27 de setembro. Fundada em 1941, após desmembrar-se da paróquia de Santo Antônio Além do Carmo, a igreja foi erguida com o suor e a devoção dos moradores da comunidade e, ainda hoje, alguns deles, ‘os antigos’ como são chamados, junto com seus descendentes, marcam presença nas novenas e missas festivas.

As primeiras reuniões da devoção, no começo do século XX, ocorriam na casa de um devoto situada perto do Plano Inclinado Liberdade-Calçada, conta o pároco atual, padre Damião Pereira, responsável pela igreja há mais de sete anos. Com o aumento no número de fiéis, as reuniões se transferiram para as proximidades do Colégio Abrigo dos Filhos do Povo, a primeira escola fundada na região, em 1918, e que tinha, entre seus apoiadores e administradores, o educador Anísio Teixeira, o jornalista e fundador de A TARDE, Ernesto Simões Filho, e o pai da Santa Dulce dos Pobres, o médico José de Aguiar Costa Pinto; além da própria freira baiana.

Com o crescimento do bairro e da devoção, a fundação da paróquia foi autorizada pelo cardeal e arcebispo primaz de Salvador nos anos 1940, Dom Augusto Álvaro da Silva. Os moradores iniciaram as campanhas de arrecadação de recursos para a construção da igreja e botaram, literalmente, a mão na massa.

  • Procissão de São Cosme e São Damião em 1986, no bairro da Liberdade
    Procissão de São Cosme e São Damião em 1986, no bairro da Liberdade |
  • Preparação para Festa de São Cosme em 1947 em Salvador
    Preparação para Festa de São Cosme em 1947 em Salvador |
  • Caruru de São Cosme e São Damião servido para frequentadores do Pelourinho, em 27 de setembro de 1995
    Caruru de São Cosme e São Damião servido para frequentadores do Pelourinho, em 27 de setembro de 1995 |
  • Igreja de São Cosme e São Damião na Liberdade
    Igreja de São Cosme e São Damião na Liberdade |
  • Missa de São Cosme e São Damião celebrada na igreja dedicada aos santos na Liberdade, em 1982
    Missa de São Cosme e São Damião celebrada na igreja dedicada aos santos na Liberdade, em 1982 |

“Essa paróquia tem uma história bonita e um povo de uma religiosidade muito forte, mas também muito alegre. O povo da Liberdade tem uma história muito próxima à paróquia. A catolicidade e a religiosidade de todo o povo da Liberdade se encontram aqui”, afirma o padre Damião Pereira.

A história da Liberdade é uma das mais potentes de Salvador. A região onde hoje está o bairro começou a ser povoada antes do século XVIII, com a formação de quilombos. Antigamente, o local era conhecido como Caminho do Sertão, porque era cercado de chácaras que ligavam a capital a outras partes da província da Bahia. Por ser usada como passagem para o gado, a localidade ficou conhecida como Estrada das Boiadas, rebatizada de Estrada da Liberdade já no século XIX, devido a servir de rota para os soldados que lutaram na Independência do Brasil na Bahia, em 02 de Julho de 1823.

No começo do século XX, após ganhar sua primeira escola, a comunidade da Liberdade passou a reivindicar melhorias como água, energia elétrica e uma linha de bondes. Nos anos 1940, quando a igreja para São Cosme e São Damião começou a ser construída pela comunidade, a Liberdade vivia uma intensa urbanização, principalmente após a chegada de famílias oriundas do interior.

Esmola para o santo

O mutirão de moradores em torno da construção da igreja, seja com arrecadação financeira ou participando ativamente do canteiro da obra, vem de um hábito antigo na cidade, o de fazer campanhas para levantar dinheiro para as causas religiosas. Essa tradição sempre foi forte tanto entre os católicos quanto entre seguidores de outras religiões, como o candomblé.

Em edição de 18 de setembro de 1936, A TARDE destaca as saídas dos “pedintes de missa”, com cestos ou caixas, forrados de tecidos bordados, enfeitados de flores e com a imagem dos santos, para angariar os donativos. Havia, ainda, a prática dos santos visitarem as casas do bairro para abençoar seus moradores. Em gratidão, eles davam as contribuições para as festividades.

"Quando o santo não vae á rua. para influir com a sua presença, na generosidade dos seus devotos, aparecem os cartões para furar. Quadrados de papel grosso, com os seguintes dizeres -'Para S. Cosme e S. Damião — Um furo — 100 réis'", diz trecho da crônica de costumes publicada nos anos 1930 e ilustrada com uma charge que representava o “desfile de convidados para uma festa de Dois-Dois, após a missa”. Dois-Dois é uma forma popular de referir-se a Cosme e Damião.

Os cartões eram divididos em 100 quadrados e quem arrecadava as doações levava um alfinete para que o doador fizesse um ou quantos furos o bolso permitisse em cada quadradinho. Lojas do comércio de rua e repartições públicas eram os locais preferidos para as coletas em nome dos santos.

Tradição de décadas

Outra edição, de 26 de setembro de 1944, lembra no título que setembro é “o mês do caruru, do vatapá e do efó” e que a tradição de honrar os santos de origem síria e praticantes da medicina, embora não fosse tão forte na época quanto outras devoções como as de São João e Santo Antônio ou mesmo o Mês de Maria (Maio), não dava sinais de se extinguir na cidade.

“Pode dizer-se assim, que setembro é o mês do caruru e do azeite. E amanhã será o dia maior dessas comemorações, quando os cânticos e ladainhas mais se elevarão aos céus, em prece e louvores aos santos que teem tantos admiradores e fiéis", destaca o texto.

A referência ao caruru aparece em toda a cobertura jornalística das festas ao longo dos anos. Originário no candomblé, o banquete formado por caruru, vatapá, feijão fradinho, efó e outros pratos da culinária afro-baiana sempre esteve associado tanto aos Ibejis, orixás também celebrados em setembro, quanto aos santos cristãos.

Setenta anos mais tarde, a previsão do jornal de que a festa dos ‘santos gêmeos’ não dava sinais de extinção em Salvador se concretizou e as tradições de setembro seguem firmes na igreja, nos terreiros e nas cozinhas onde o cheiro do quiabo cozinhando se integra à rotina da cidade durante o mês.

“Nessa comunidade são cinco gerações que estão aqui reunidas para celebrar a novena e a festa de São Cosme e São Damião”, diz o pároco da igreja na Liberdade.

Sete décadas também é o tempo que dona Nilza Assis de Almeida, 80 anos, frequenta a paróquia. Ela começou a ir à festa de São Cosme e São Damião na infância e nunca mais parou. A família de dona Nilza faz parte dos grupos que se mudaram para a Liberdade nos anos 1940.

“Nós viemos morar aqui, éramos de outro bairro e viemos morar na Liberdade, quando eu ia completar 10 anos. A minha família já era católica, principalmente a minha avó, e eu comecei a vir com ela. Ainda não tinha o templo, esse templo estava em construção”, conta dona Nilza.

Ela conheceu o marido, com quem está casada desde 1966, na Liberdade, e junto com ele, criou os oito filhos do casal também na devoção aos padroeiros. “Já temos mais de 50 anos nessa caminhada. Mais de 60, na verdade, entre a caminhada na igreja, o namoro, o noivado. Aqui nós formamos nossa família, criamos nossos filhos com toda a clareza da necessidade de ter uma família participante da igreja”, afirma.

Um concílio e duas datas

Dona Nilza recorda ainda do tempo em que a festa mudou de data, após o Concílio Vaticano II, e das inovações promovidas na igreja após esse evento. “O Concílio Vaticano II trouxe muitas novidades, os leigos começaram a ter uma participação mais efetiva na celebração. As mulheres, que não subiam ao altar naquela época, eram só os padres e os ajudantes masculinos, o concílio trouxe essa oportunidade delas participarem também”, lembra.

O padre Damião Pereira explica que oficialmente, o Dia de São Cosme e São Damião passou a ser o 26 de setembro depois do concílio católico, mas que a data de 27 de setembro também é celebrada na igreja da Liberdade por conta da tradição popular.

“No calendário litúrgico da igreja, o dia de São Cosme e São Damião, desde o Concílio Vaticano II, passou a ser o 26 de setembro. Até o concílio, era o 27. Depois da reforma litúrgica, o dia 27 passou a ser o dia de São Vicente de Paulo. Mas, a tradição, os antigos, a piedade popular, não abandonou o dia 27. Então, aqui, nós celebramos dois dias: o dia 26, que é a memória litúrgica junto com toda a igreja, e o dia 27, para acolher todos os devotos que vêm, de diversos credos”, conta o padre.

Padre Damião diferencia que, embora a igreja receba gente de todos os credos, é uma casa católica. “É uma casa cristã, que executa o rito cristão. Porém, o acolhimento é próprio da igreja. Quem vem, vem porque tem fé e a fé deve ser respeitada. Então nós acolhemos a fé das pessoas e rezamos com elas”.

A convivência entre os devotos de tradições diferentes é um exemplo aprendido com os padroeiros e um indicativo da união da comunidade, que acolhe a diversidade religiosa e se une mesmo em momentos de dificuldade. Um exemplo de que a festa é soberana está na cobertura das celebrações em 28 de setembro de 1998, quando A TARDE noticiou a alegria da celebração mesmo diante dos problemas para concluir uma reforma na igreja construída mais de 40 anos antes.

“A participação animada dos fiéis acabou dando brilho à festa, apesar das dificuldades que a paróquia vem enfrentando para concluir os serviços de restauração da igreja dedicada a São Cosme e São Damião [...]. O processo de reforma foi iniciado e ainda não foi terminado devido à falta de recursos”, diz a reportagem da época.

Atualmente, padre Damião diz que a igreja já está pequena para a quantidade de devotos e já requer outra reforma. Cada vez chega mais gente para celebrar, acrescenta, porque a igreja é muito querida. “A imagem e o exemplo de São Cosme e São Damião atrai, porque são homens de caridade, do acolhimento, que deram a vida em favor de curar e amenizar as dores alheias. E isso atrai quem é simples, atrai quem sofre, porque encontra na intercessão dos nossos padroeiros o consolo”.

*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes

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