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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 05 de junho de 2021 às 6:00 h | Autor:

No Dia Mundial do Meio Ambiente, A TARDE fez bela homenagem ao Paraguaçu

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Aspectos sobre o Paraguaçu foram abordados em especial de A TARDE. Data: Fevereiro de 1997. Foto: Cedoc A TARDE
Aspectos sobre o Paraguaçu foram abordados em especial de A TARDE. Data: Fevereiro de 1997. Foto: Cedoc A TARDE -

Eu nasci em Cachoeira, cidade banhada pelo Paraguaçu, e cresci =em outra terra atravessada por ele: Iaçu. A ligação entre essas duas cidades não é aleatória. Embora a primeira esteja situada no Recôncavo e a segunda na Chapada Diamantina, elas foram conectadas pela construção da ferrovia no final do século XIX. Mas a chegada da estrada de ferro está vinculada a outra ligação mais antiga: o Paraguaçu é o rio da integração baiana, afinal nos seus cerca de 600 quilômetros de extensão banha 80 municípios, contribui para o abastecimento da capital, Salvador, e atravessa três ecossistemas- cerrado, caatinga e Mata Atlântica.

Mesmo com essa importância o Paraguaçu perde em visibilidade para o São Francisco, por exemplo, em produtos da indústria cultural. Por isso, em 2004, A TARDE escolheu o chamado “Rio Grande”, em tradução livre do tupi, como o tema de um especial para celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente, publicado na edição de 5 de junho de 2004. Com 24 páginas, o especial intitulado ‘Água Grande’ foi resultado de um investimento do jornal no gênero denominado grande reportagem que requer um conteúdo atento à informação, mas também análise e liberdade no estilo que até pode se aproximar da literatura. E o Paraguaçu possui todos os elementos para inspirar projetos com estas características. Foi com estes argumentos que consegui a autorização das chefias de redação para desenvolver o projeto.

Para executá-lo, durante 12 dias, eu e o repórter fotográfico Luciano Andrade, um profissional extremamente talentoso que faleceu em março deste ano, acompanhamos a trajetória do Paraguaçu em suas muitas curvas. Começamos a rota para seguir seu entorno na nascente localizada no município de Barra da Estiva, a 579 quilômetros de Salvador, na chamada Alta Chapada Diamantina, até a foz em Barra do Paraguaçu, território do município de Salinas das Margaridas, já na região da Baía de Todos-os-Santos.

O caderno buscou mapear aspectos históricos do rio, como a sua “descoberta” pelos colonizadores a partir de 1504. Essa chegada resultou no massacre das populações indígenas a partir das chamadas “guerras dos sertões”, ou seja, a interiorização da dominação portuguesa e a desenfreada busca por metais preciosos, como o ouro. Mais tarde, os diamantes fizeram a opulência de parte do território às margens do Paraguaçu ou de seus afluentes, como Andaraí e Lençóis.

Para mapear essas informações foi necessária a consulta a obras clássicas e a especialistas como a doutora em História Social e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Maria Hilda Baqueiro Paraíso. “O Paraguaçu foi a primeira rota para os sertões, tanto que servia como marco divisório para o sertão de cima e o sertão de baixo. A primeira leva de saída da Baía de Todos os Santos foi feita por este rio”, explica a professora Maria Hilda Baqueiro Paraíso, doutora em História Social e coordenadora do programa de pós-graduação em história da Ufba.

Na segunda metade do século XVI, área da atual cidade de Cachoeira, começaram as bandeiras de colonização, que iriam se constituir numa tragédia para os povos indígenas do Paraguaçu. Ao norte estavam grupos da nação kiriri e tupi e ao sul mais tupi e kamakã-mongoió e aimoré/ gren/botocudo”. (Especial Água Grande, A TARDE, 5/6/2004 p. 18). Pescadores, lavadeiras, ceramistas e outros especialistas em saberes e ofícios ligados à convivência com o rio receberam destaque ao longo do especial. Os impactos de intervenções humanas nos ecossistemas do Paraguaçu com destaque para a construção das barragens, como o complexo Pedra do Cavalo, em São Félix, também foram analisados. Há 17 anos, o sistema estava se preparando para começar a gerar energia elétrica.

“Em 1985 uma imponente construção era apresentada como a solução para as cheias do Paraguaçu que atormentavam Cachoeira e São Félix. O nome do empreendimento: Barragem de Pedra do Cavalo. Agora, 19 anos depois, vem mais novidade de lá: o funcionamento de uma hiderelétrica. A barragem, que já fornece 31,7% da água consumida em Salvador, vai possibilitar o crescimento de 4% no fornecimento da energia elétrica na Bahia, beneficiando Salvador e Região Metropolitana, a chamada zona fumageira e a microrregião de Feira de Santana. O projeto da usina prevê o atendimento de 775 mil pessoas”. (Especial Água Grande, A TARDE, 5/6/2004, p.23.)

Diversidade

Para apresentar outras informações sobre o rio, o projeto gráfico desenvolvido por Ana Clélia Rebouças e Iansã Negrão incluiu no alto de cada página informações sobre a fauna, a flora e outros elementos relacionados ao rio. Cada referência foi acompanhada por uma ilustração, o que deu mais leveza ao conjunto de informações.

Na segunda página do especial, por exemplo, um mapa destacou a dimensão da extensão impressionante do Paraguaçu e a sua presença por uma vasta área do território baiano: 11% do total. O patrimônio material- a ponte Dom Pedro II, que liga Cachoeira a São Félix, sobrados e igrejas- foram apresentados ao lado de bens culturais simbólicos, como os seres encantados que habitam as águas e margens do Paraguaçu: a Mãe D’Água, o Nego D’Água e a Sucuiuba. Esta última situa-se no limite entre o real e o imaginário.

Réptil típico dessas águas, conhecida em outras regiões com sucuri, nas narrativas do povo das margens do Paraguaçu é descrita como um ser com características fantásticas. Dependendo da versão, pode ter escamas, aparência feroz lembrando um dragão ou olhos que à noite emitem um brilho azulado. “Sucuiuba é o nome que a temida sucuri recebe nas margens do Paraguaçu. Seu tamanho gigantesco (pode chegar a 10 metros) a transformou, no imaginário das populações ribeirinhas, num ser quase mítico, a quem são emprestadas características fantásticas, como grandes olhos que se tornam em faróis azulados à espera da presa”. (Especial Água Grande, A TARDE, 5/6/2004, p15).

Aventuras

O trabalho de apuração denso e intenso nos rendeu sustos e algumas surpresas. Já na busca pela nascente do Paraguaçu veio a primeira decepção que resultou em aventura. Eu imaginava que, diante da importância do Paraguaçu, não seria difícil localizar a sua nascente no Morro do Ouro, na Serra do Cocal, em Barra da Estiva. Como disse a Luciano Andrade, durante a viagem, imaginei que teria uma grande placa anunciando o local. Engano absoluto.

Levamos quase um dia para percorrer os quase 600 quilômetros que separam Salvador de Barra da Estiva. É necessário sempre levar em consideração o estado nem sempre ideal de rodovias e outras variantes.

Além disso, em meados de maio quando realizamos o trajeto, a região da Chapada já costuma ter temperaturas mais baixas a partir do meio da tarde e que vai produzindo mais neblina à medida que anoitece. Ao chegar, portanto, por volta das 16 horas em Barra da Estiva imaginei que seria bom ir ao menos fazer um reconhecimento do local da nascente.

A primeira surpresa: ninguém sabia onde ficava o Paraguaçu porque em Barra da Estiva tem nascentes de outros rios e, por lá, pelo menos nesse período, ninguém imaginava que ele fosse tão longe, como me disse no dia seguinte uma fonte.

Encontramos um lavrador, Isael Pina, que se dispôs a nos levar até a nascente. O carro da reportagem teve que ficar a pelos menos 200 metros do local onde nosso guia imaginava que estava o início do rio. Como havia chovido, segundo ele explicou, a mata estava mais fechada e por isso dificultava a localização rápida dos caminhos.

Depois de uma procura de cerca de 40 minutos, finalmente encontramos uma pequena poça borbulhante apontada como a nascente. Luciano fez as primeiras imagens e ficou satisfeito mesmo com a pouca luz do fim de tarde. Mas, no dia seguinte, fomos informados por dirigentes de uma ong que aquela não era a nascente do Paraguaçu.

Faltava uma bananeira que, segundo eles, era o marco. Voltamos à serra, acompanhados por um novo guia. E deu-se o drama: nos descobrimos perdidos em meio a uma vegetação que apresentava, volta e meia, verdadeiras muralhas da vegetação conhecida como Unha de Gato. Não há como passar por elas. Demorou alguns minutos para que o nosso acompanhante reconhecesse que não sabia mais o caminho. E para piorar nossa situação sofremos um ataque de marimbondos.

Em meio a calafrios, porque tenho reação alérgica a picadas de insetos, confesso que chamei por todos os encantados da mata, especialmente a Caipora, tomando o cuidado de explicar para ela que nossa missão ali era de defesa de natureza e não de depredação. Lembrei ainda da minha infância quando ia buscar umbu e constatei que não tinha sequer o fumo para dar de agrado à encantada das matas nos sertões. Mas me consolei lembrando dos relatos sobre a generosidade da Caipora com que tem boas intenções direcionadas às matas, os bichos e mistérios que elas abrigam. Luciano Andrade então nos tirou do sufocou ao encontrar nossas pegadas da tarde anterior.

Chegamos ao local para descobrir que a “nascente oficial” era o prolongamento da que havia sido apontada por seu Isael. Nos dias seguintes novas aventuras nos esperavam. Em Andaraí, por exemplo, fomos explorar Igatu, conhecida como a “cidade das pedras”. Lá decidimos ir conhecer a Rampa do Caim onde o Paraguaçu encontra um de seus tributários, o Rio Pati. Encontramos um guia e achamos que seria fácil percorrer uma das trilhas consideradas mais tranquilas. Aprendi nesse dia uma lição: nunca subestime os caminhos da Chapada Diamantina por mais que pessoas experientes considerem o esforço mínimo. Elas, possivelmente, estão avaliando a partir da sua experiência.

Andamos por trilhas que me deixaram sem fôlego, pois tenho medo de altura. E, apesar do guia dizer que estávamos cada vez mais perto nunca chegávamos ao destino. Em um determinado momento expliquei a Luciano que havia esquecido que, na linguagem ribeirinha, um “tá perto” pode não necessariamente significar metros, mas quilômetros. Realmente, entre ida e volta, descobrimos no final do dia, em meio ao meu ataque de estresse muscular nas pernas, que havíamos percorrido 15 quilômetros de uma trajetória que incluía subir morros e contornar penhascos. Em meio ao cansaço ouvi do guia: -Não dê mais um passo moça.

Estava a alguns metros da beira de um penhasco e o que vi diante de mim até hoje tem um lugar especial no que considero tradução de beleza: um grande paredão em meio a um canyon. De lá o Pati escorre para encontrar o Paraguaçu que corre por baixo aumentando a força das suas quedas d’água em Andaraí e ganhando volume para chegar como o “rio de águas caudalosas” em municípios como Iaçu, Itaetê, Iramaia, dentre outros.

Outro momento emocionante foi a visão de ver o Paraguaçu- que àquela altura eu já conhecia melhor em detalhes, como as cores que as águas vão assumindo a cada trecho da sua trajetória, unir-se às águas do mar na Baía de Todos-os-Santos. Na viagem de retorno, as boas lembranças foram o combustível para mais trabalho: processar informações, reunir artigos de especialistas, e adaptar conteúdo ao projeto gráfico cortando trechos dos textos, o que é sofrimento para repórteres ainda mais, no meu caso, que sou encantada pelo Paraguaçu. O resultado foi o belo presente que A TARDE ofereceu aos seus leitores ao mesmo tempo que contribuiu para dar visibilidade a um patrimônio tão especial.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

Imagem ilustrativa da imagem No Dia Mundial do Meio Ambiente, A TARDE fez bela homenagem ao Paraguaçu
| Foto: Cedoc A TARDE
Diversos aspectos sobre o Rio Paraguaçu foram abordados no especial "Água Grande"

A TARDE Memoria traz histórias baseadas no material que compõe o acervo do Cedoc A TARDE. A coluna tem versão, às sextas-feiras, também em A TARDE FM.

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