No mês dos povos indígenas, educação continua campo desafiador
Com a expansão de escolas especializadas, os novos objetivos incluem a ampliação da inserção dos conteúdos determinados pela Lei 11.645/2008
A Lei 10.639/2003 estabeleceu o ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira nas escolas brasileiras de ensino fundamental e médio há 21 anos. Em 2008, ela foi alterada pela Lei 11.645 para incluir a obrigatoriedade de História e Cultura Indígena. O debate sobre essa inclusão ainda não alcança tanta visibilidade como ocorre em relação aos temas das culturas afro-brasileiras. A educação indígena no Brasil é um campo complexo. Os avanços até aqui são resultados da luta dos movimentos organizados que tem no dia 9 de agosto uma ocasião para ser celebrada. Desde 1994, por determinação da Organização das Nações Unidas (ONU), esse é o Dia Internacional dos Povos Indígenas. No Brasil, as organizações dos movimentos indígenas têm sido fundamentais para encontrar caminhos de acesso ao direito à Educação estabelecido pela Constituição Federal. Parte dessa trajetória está registrada em reportagens de A TARDE como uma publicada em 1993:
“Retrato do abandono, a Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha tem apenas uma sala, onde se espremem por turma 30 crianças que não recebem merenda nem material didático”. (A TARDE, 18/4/1993, p.7).
A denúncia apresentada na reportagem publicada há 31 anos mostra a distância entre o que é direito e o que estava acontecendo de fato cinco anos depois da promulgação da Constituição Federal que, em seu Artigo 210, estabelece às comunidades indígenas o ensino em português, mas também em suas línguas maternas. Está também assegurado o respeito aos processos de transmissão de saberes próprios de cada povo. Os debates promovidos pelos movimentos sociais foram acumulando conquistas como a reiteração com mais ênfase do que determina a Constituição na Lei nº 9.394 de 1996.
Cinco anos depois entrou em vigor o Plano Nacional de Educação (PNE), por meio da Lei 10.172, que vigorou até 2010 e foi substituído pelo que está em andamento. O PNE de 2001 estabeleceu a responsabilidade de estados e municípios pela educação indígena com apoio financeiro e coordenação do MEC e uma universalização das diretrizes para uma política nacional. Outro objetivo dessa versão do PNE foi a adoção de parâmetros curriculares e ampliação gradativa de ensino.
Organização
Uma amostra de como essas conquistas só vieram por meio da pressão dos movimentos sociais é o registro na edição de A TARDE de 22 de agosto de 1996 do I Encontro de Educação Indígena na Bahia realizado em Salvador. Segundo a reportagem, o evento reuniu representantes de 12 comunidades indígenas sediadas na Bahia, além de pesquisadores da área de Educação. Na pauta do encontro o modelo de uma escola indígena e a formação de professores ganharam atenção especial. A atividade reuniu educadoras e educadores dos povos Kiriri, Pataxó, Kaimbé, Pankareré, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Atikum, Xuburu, Kariri, Kantaruré, Tuxá, Aricobé e Pankaru.
Essa lista de participantes do encontro de 1996 na capital baiana pode dar uma medida da diversidade de povos indígenas. Estabelecer os parâmetros educacionais para garantir o respeito às diferenças é um dos desafios. Além disso foi uma longa batalha para assegurar que as classes fossem assumidas por educadoras e educadores saídos das próprias comunidades.
Na edição de 8 de dezembro de 2000, A TARDE mostrou a importância dessa educação com a participação de membros das comunidades. O tema foi a reunião ampliada da Comissão Pró-Fórum de Educação Indígena na Bahia. Desta vez, o ponto de encontro foi a Aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália. Além dos debates, a atividade incluiu o lançamento de livros didáticos produzidos nas comunidades indígenas.
“No primeiro dia da reunião ampliada do Fórum de Educação Indígena na Bahia, acontecerá, às 20 horas, uma noite de lançamento dos livros História da Reconquista de Mirandela e História dos Kiriris e do jornal Flecha e Maracá. Esses livros têm uma importância muito grande para o projeto de educação indígena porque foram produzidos por professores pesquisadores da cultura Kiriri, eles próprios integrantes da aldeia. Onalvo, América e Solange Kiriri dão uma importante contribuição para a formação de um magistério indígena na Bahia, produzindo seu próprio material didático”. (A TARDE, 8/2/2000, Municípios, p.2).
No âmbito da Educação Escolar Indígena, a Secretaria da Educação do Estado (SEC) mantém 71 escolas indígenas, classificadas como 27 unidades e 44 anexos totalizando 7.337 estudantes matriculados. Em relação à infraestrutura o Estado fez as seguintes intervenções: obras de construção de novas unidades (Paulo Afonso, Glória, Rodelas e Prado); ampliação com modernização (Ibotirama, Muquém do São Francisco, Buerarema e Santa Cruz Cabrália); manutenção em Prado e um investimento total estimado em R$ 70 milhões. Em abril deste ano, o governador Jerônimo Rodrigues (PT-BA) sancionou a lei que reestrutura a carreira dos professores indígenas do quadro de magistério público estadual. As informações são da Assessoria de Comunicação da Secretaria da Educação do Estado da Bahia (Ascom-SEC).
Conquistas
As conquistas que resultaram da mobilização de lideranças e comunidades indígenas ganharam um impulso com as políticas de acesso inclusivo no ensino superior e que tem como marco uma conferência organizada pela ONU em Durban, na África do Sul. A 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância começou em 31 de agosto e terminou em 8 de setembro de 2001. Foi a partir desta conferência que a discussão no Brasil sobre medidas mais eficazes para combater as consequências do racismo ganharam maior fôlego. A cotas raciais nas universidades são as medidas mais conhecidas das chamadas políticas de reparação. Além de negras e negros, indígenas e quilombolas passaram a ser incluídos nestas ações.
A Universidade do Estado da Bahia (Uneb) foi a primeira instituição de ensino superior baiana a fazer um programa de inclusão étnico-racial durante a gestão da reitora Ivete Sacramento em 2002. A chegada de estudantes indígenas ao ensino superior abriu o espaço para as demandas de pesquisa sob a perspectiva de quem experimenta os problemas de exclusão literalmente na própria pele. Essa extensão de formação para os níveis de pós-graduação como mestrado e doutorado tem possibilitado análises qualificadas sobre questões cruciais para as populações indígenas, pois são os seus membros que agora estão escrevendo, pesquisando e dando visibilidade a outras formas de conhecimento bem semelhante ao que aconteceu com outros grupos étnicos e de organização tradicional.
É um movimento interessante que tem promovido debates enriquecedores. E foi nesse ambiente efervescente que a Lei 11.645/2008 se estabeleceu para apresentar novos desafios.
“Atualmente, os locais onde a gente tem a maior inserção desses conteúdos são os municípios que possuem coordenação de educação escolar indígena na Secretaria de Educação. E a maior parte das vezes fica voltado mesmo para as próprias escolas indígenas sem chegar aos professores que não são desses grupos. Na rede estadual de ensino, a gente tem conseguido avançar nessa discussão junto à rede no geral. Mas esse ainda é um avanço que a gente está consolidando”, analisa Niotxarú Pataxó, coordenador estadual de Educação Escolar Indígena da SEC- Bahia.
Especialista em Inclusão e Diversidade na Educação, licenciado em Matemática, Computação e suas Tecnologias, Niotxarú Pataxó afirma que é necessário ampliar os espaços de circulação dos conteúdos para além das escolas especializadas. “Nosso objetivo é formar cidadãos com um entendimento sobre sua própria história, sobre a história presente dos povos indígenas, quebrar estereótipos e eliminar discriminações”, acrescenta. São caminhos necessários para que a população brasileira perceba o quanto necessita se reconciliar com a sua condição multiétnica.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia