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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos*

ACERVO DA COLUNA
Publicado Saturday, 06 de July de 2024 às 0:00 h | Autor:

Notícias inspiraram livro de contos sobre tragédia do Motel Mustang

Obra de Marcus Vinicius Rodrigues é baseada no soterramento do imóvel há 35 anos e na ampla pesquisa em acervos como o do Cedoc A TARDE

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Soterramento no Motel Mustang provocou várias mortes há 35 anos
Soterramento no Motel Mustang provocou várias mortes há 35 anos -

Em 1989 Salvador viveu uma sequência de deslizamentos e desabamentos por conta de fortes chuvas. Em meados de maio daquele ano, o número de mortos devido a essas ocorrências já alcançava a casa das dezenas quando o Motel Mustang, localizado na região da Avenida Suburbana, foi soterrado devido ao rompimento das cortinas de contenção do morro da Boa Vista do Lobato. Cerca de 30 toneladas de terra rolaram sobre o imóvel. O tipo de equipamento, voltado aos encontros sexuais, e as histórias que emergiram sobre as vítimas que eram funcionários e clientes deu contornos ainda mais dramáticos a esse tipo de ocorrência que volta e meia assombra Salvador. O soterramento é a base de Motel Mustang, novo livro do escritor e professor Marcus Vinicius Rodrigues que será lançado, hoje, sábado, das 16 às 18 horas, no Goethe-Institut- ICBA, em Salvador, e foi concebido com base na pesquisa das notícias como as veiculadas em A TARDE.

“Foi tudo muito rápido Eram 3h30 min da madrugada de ontem quando uma avalancha de terra nas encostas do subúrbio de Lobato provocou o soterramento de 35 dos 50 apartamentos do Motel Mustang deixando um saldo presumível de 16 mortos”. (A TARDE 20/05/1989, p.3).

No dia da notícia sobre o soterramento do Motel Mustang o número de mortos devido às fortes chuvas em Salvador já estava sendo contabilizado em 65 pessoas. Aconteceu com o caso do Motel Mustang uma inversão em relação às características de cobertura nesses casos. Após uma diminuição da referência sobre o assunto logo após os primeiros registos, ele voltou a receber destaque dias depois com novas informações como a busca de culpados e causas do acidente, além da atualização sobre a busca dos corpos.

Os trabalhos de remoção dos escombros e cuidados para evitar novos danos no entorno ganharam protagonismo nas reportagens.

“As enormes rachaduras nas paredes e na cortina de concreto, como ainda as fendas no asfalto da pista que margeia o Motel Mustang na Avenida Suburbana, retardaram ainda mais as buscas dos corpos das vítimas de soterramento ali registrado na última semana. Representando ameaça iminente do desabamento da área construída que certamente causaria nova tragédia, pois atingiria várias casas vizinhas, além do risco para as pessoas que trabalham no local, a operação das pesadas máquinas escavadeiras foi suspensa gerando tensão e medo”. (A TARDE, 24/05/1989, p.3).

A tragédia marcou de forma significativa o imaginário social de Salvador.

“O soterramento do Motel Mustang foi muito marcante para a cidade, lembro bem das notícias. Na época, me disseram que o marido de uma professora tinha morrido na tragédia. Não sei se é verdade, mas histórias como essas foram recorrentes. Virou uma lenda urbana. Eu estava indo apresentar um projeto de antologia para a P55 Edição. No caminho me ocorreu um livro que se passasse no Motel Mustang. Cada autor escreveria um conto. Imediatamente descartei a ideia de livro coletivo e resolvi fazer eu mesmo. Isso porque me ocorreu que o livro deveria dar conta de toda a tragédia com coesão e não poderia ser coletivo”, conta o escritor Marcus Vinicius Rodrigues, que é o atual vice-presidente da Academia de Letras da Bahia (ALB).

  • Soterramento no Motel Mustang provocou várias mortes há 35 anos
    Soterramento no Motel Mustang provocou várias mortes há 35 anos |
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    Soterramento no Motel Mustang provocou várias mortes há 35 anos |

Jornalismo e literatura

Sua pesquisa começou pela Internet, mas, de acordo com ele, as informações encontradas foram insuficientes. O escritor iniciou a busca no acervo do Cedoc A TARDE, o que lhe permitiu ampliar a análise não apenas para o caso do motel, mas da tragédia que se desenvolvia por outras áreas da cidade e ainda em Santo Amaro.

“O soterramento do motel nem era o acontecimento mais grave. Houve tragédias com mais vítimas antes e depois. Santo Amaro estava em estado de calamidade pública. Salvador estava um caos. O motel chama a atenção pela ironia da morte em meio a uma noite de amor”, acrescenta.

No seu processo de criação, o escritor buscou retratar, por meio da ficção, quais sentimentos podem ter sido experimentados pelas vítimas no momento da tragédia. “Para isso a ficção é melhor que o relato histórico ou jornalístico. Fui ao jornal buscar os fatos para tirar dali as personagens ficcionais”, diz.

Um deles é o personagem Sargento Torres. “Havia uma notícia de uma corrida da infantaria que aconteceu um dia depois do acidente. Imaginei um homem que precisou levar a namorada ao motel e não queria transar porque ia correr no dia seguinte. A namorada fica insegura com o relacionamento porque o namorado está reticente para o sexo. Veja: são dramas comuns. Eu imagino que os casais nos quartos viviam seus conflitos corriqueiros, seus pequenos dramas. A tragédia enterra essas histórias”, analisa Marcus Vinicius Rodrigues.

Outra história contada no livro é a de um menino que encontra uma toalha entre os escombros ainda limpa por estar protegida pela embalagem de plástico. “Ele a leva para a casa e a mãe, diante daquela toalha macia de motel, o oposto da toalha áspera que tem, se sente inspirada para voltar a transar com o marido. É um conto esperançoso e que só se tornou possível porque li no jornal que houve muitos saques e que toalhas do motel foram encontradas na vizinhança”, completa.

As informações de outras questões do cotidiano se encontraram com a criação fictícia de Marcus Vinicius, como a notícia sobre a Festa de Corpus Christi no período em que ocorreu o soterramento. “Essa notícia me ajudou a criar uma personagem católica que está dividida entre assistir à missa com o cardeal ou viajar com o namorado para transar pela primeira vez. Essa moça é funcionária do motel e é na história dela que vivenciamos o desabamento”, aponta.

Ele afirma que as notícias de jornal, como A TARDE foram estratégicas para a recriação do contexto da cidade naquele período. “Eu não poderia compreender o que aconteceu sem o jornal. Foi no jornal que consegui informações sobre o acidente e pude ver fotos de arquivo que me esclareceram a dinâmica daquela noite. Fiquei sabendo que já tinha havido deslizamentos antes e que os donos resolveram continuar funcionando mesmo com quartos já interditados”, acrescenta.

  • O escritor Marcus Vinicius Rodrigues lança neste sábado livro inspirado na tragédia do Motel Mustang
    O escritor Marcus Vinicius Rodrigues lança neste sábado livro inspirado na tragédia do Motel Mustang |
  • O escritor Marcus Vinicius Rodrigues lança neste sábado livro inspirado na tragédia do Motel Mustang
    O escritor Marcus Vinicius Rodrigues lança neste sábado livro inspirado na tragédia do Motel Mustang |

Reencontros

Os desafios vividos por jornalistas para dar conta das histórias em meio a uma tragédia como essa foram percebidos pelo escritor. As informações sobre o número de vítimas, por exemplo, variaram durante os dias de cobertura. “Foi mencionado 19, 16, 12. Os números variavam. Parece que ao final os jornais disseram que houve oito vítimas. Mas isso aparece no decorrer dos dias, quando o assunto já não chamava tanta atenção. No inquérito policial que pesquisei na justiça há o número de nove vítimas”, explica.

Mesmo com informações mais precisas, como a que baseou as providências policiais e judiciais, ainda há histórias não confirmadas, mas que dá a dimensão de como a tragédia no motel se manteve no imaginário social da cidade. “Ficou, por exemplo, a lenda de que havia uma outra vítima não informada, assim como a história de que um bombeiro teria encontrado a namorada no motel. Se não me engano, sobrevivente. Essas histórias me foram contadas por conhecidos. Sempre que falo do Motel Mustang tem alguém para me contar alguma história. Dá para escrever um outro livro”, diz o autor.

Há também técnicas de cobertura utilizadas no período que foram abandonadas devido à reflexão da prática jornalística sobre assuntos sensíveis como esse. É o caso de preservar detalhes sobre as vítimas especialmente quando dramas pessoais podem ter sido revelados, como traição em relacionamentos. Nas notícias iniciais, por exemplo, foi informado o estado civil de um homem que era casado e não estava acompanhado da esposa. Também havia o hábito de se publicar fotos dos corpos, o que há algumas décadas é vetado em A TARDE.

Segundo Marcus Vinicius, o volume de informações, inclusive das fotos das vítimas, é maior no acervo do Cedoc A TARDE do que no inquérito. “É digno de nota porque no inquérito é que elas deveriam estar em maior número por causa dos laudos”, diz.

O livro de Macus Vinicius reforça as contribuições do jornalismo para a micro memória do cotidiano. É também um reencontro entre a literatura o texto jornalístico muito presente no século XIX e ainda nas primeiras décadas do século XX. Escritores como José de Alencar, Lima Barreto, Machado de Assis e Euclides da Cunha transitaram entre as duas áreas. É mais um indício de como as notícias de ontem ganham novos contornos quando se busca contar com maestria as histórias que têm relevância para o imaginário social.

CONFIRA AS PÁGINAS DE A TARDE:

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*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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