Penicilina revolucionou medicina ao ser descoberta por acaso
Medicamento abriu caminho para a era dos antibióticos e durante a II Guerra virou arma secreta. Na Bahia, primeiras doses chegaram em 1944

A descoberta da penicilina, em 22 de setembro de 1928, mudou os rumos da medicina e deu início à era dos antibióticos. Descoberta por acaso pelo bacteriologista Alexander Fleming, o uso em larga escala durante a II Guerra Mundial salvou milhares de soldados feridos, tendo um grande papel no curso da guerra e na ciência. A chegada do medicamento à Bahia, em 1944, revolucionou o atendimento nos hospitais locais, reduziu mortes e marcou o início de uma nova fase na saúde pública estadual, trazendo esperança para pacientes que antes não tinham tratamento eficaz contra infecções graves.
“Ao retornar de férias, em 1928, o bacteriologista escocês Alexander Fleming percebeu que uma de suas placas com colônias de Staphylococcus aureus havia sido contaminada por um fungo, uma espécie de bolor. O interessante era que, ao redor desse fungo, as bactérias não cresciam ou existiam. Foi aí que ele identificou que a substância era capaz de destruir aquelas bactérias e, possivelmente, poderia tratar infecções até então fatais”, explica Robson Reis, infectologista e professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
O impacto da descoberta da penicilina foi tão grande, que há pouco espaço para duvidar do quão diferente seria o mundo sem ela. "O uso da penicilina, assim como a vacinação e o saneamento básico, revolucionou a expectativa e a qualidade de vida em todo o mundo, sobretudo no que diz respeito a queda da mortalidade neonatal e das mães após o parto. Ela inaugurou a era de antimicrobianos e é difícil pensar como estaríamos hoje sem antibióticos", reflete o infectologista.
Desde a descoberta da penicilina, o avanço nas pesquisas e o uso bem-sucedido eram motivos de comemoração e divulgação constantes. A TARDE acompanhou de perto os caminhos da chamada “bala mágica da medicina”, apelido que a medicação recebeu durante a II Guerra.
"Chegou ontem a esta capital pela Panair a primeira remessa de Penicilina destinada a Bahia. Foi a mesma conseguida em Manguinhos pelo sr. Abraão Bouças para aplicação no filho de um dos funcionários do Serviço Hollerites. Foram enviadas 4 doses encerrando-se ontem a aplicação no doentinho", informava o jornal na edição de 2 de março de 1944..
Já no dia 1º de março do mesmo ano, A TARDE noticiava que a penicilina havia sido aplicada em uma pessoa com infecção dental e "os resultados da cura foram comprovados no laboratório, com a contagem dos glóbulos brancos, que voltaram a percentagem normal".
Outra edição, de 18 de abril de 1944, traz a chamada "Salvou-se, graças à penicilina", e relata que, em Porto Alegre (RS), uma parturiente havia sobrevivido graças ao medicamento. "Foi salva uma senhora atacada de septicemia puerperal com o emprêgo da penicilina: A enferma estava em estado de coma".
Antibiótico natural derivado de fungos do gênero Penicillium, a penicilina impede a formação da parede celular bacteriana, o que leva à destruição dos agentes infecciosos. O medicamento, desde a origem, foi usado para tratar infecções como pneumonia, sífilis, meningite e amigdalite, entre outras. Foram 13 anos entre a sua descoberta e a aplicação em humanos, mas até a espera contribuiu para evidenciar sua importância, pois passou a ser receitada para tratamentos em meio aos conflitos da II Guerra.
Antibiótico no front

Embora a penicilina tenha sido descoberta em 1928, Alexander Fleming só publicou sua pesquisa em 1929. Mas, na época, ninguém acreditou no poder da substância. Uma década depois, em 1939, o farmacêutico australiano Howard Florey e o bioquímico alemão de origem judaica Ernst Boris Chain, pesquisadores da Universidade de Oxford, conseguiram isolar a penicilina em sua forma pura e ela, finalmente, recebeu a devida atenção. O primeiro teste com seres humanos foi feito em 1941, em um agente policial britânico com infecção generalizada (sepse).
O paciente melhorou, mas acabou morrendo durante o tratamento porque a medicação acabou. "Isso mostrou a necessidade da produção em massa e fez da penicilina uma arma na II Guerra Mundial. A descoberta e uso da medicação diminuiu a perda de soldados e permitiu que alguns voltassem aos campos de batalha", explica Robson Reis.
Na época da guerra, o uso da penicilina se restringia aos países que lutavam ao lado dos Aliados (Reino Unido, Estados Unidos, China e União Soviética). "Na época, a penicilina era um segredo militar e era utilizada como uma estratégia", afirma o infectologista.
Na tese "Como se saneia a Bahia: a sífilis e um projeto político-sanitário nacional em tempos de federalismo", o mestre e doutor em história Ricardo dos Santos Batista explica que mesmo tendo sido descoberta em 1928, a penicilina não foi produzida em larga escala até quase a metade do século XX.
"No desencadear da Segunda Guerra Mundial a penicilina ainda estava latente nos laboratórios e continuou racionada por muitos anos. Como prova disso, em 1944, a Bahia recebeu um comunicado do diretor do Departamento Nacional de Saúde (DNS), João de Barros Barreto, com orientações sobre a distribuição da medicação, importada do exterior", explica o pesquisador no texto.
O DNS dividiu o Brasil em oito regiões. A Bahia fazia parte da 6ª, junto com Sergipe e Espírito Santo, onde o controle e a distribuição da medicação ocorreram por meio das Delegacias Federais de Saúde, que se articulavam com os Departamentos de Saúde dos Estados. "O comunicado solicitava que o uso do medicamento fosse limitado aos casos em que houvesse rigorosa indicação clínica, dado o pequeno estoque", diz Ricardo em outro trecho da tese.
Mesmo adotada em outros países na década de 1940, para ser usada e produzida no Brasil, a penicilina precisava passar por testes em laboratórios do país. O escolhido foi o Instituto Butantan. No dia 14 de janeiro de 1944, A TARDE informava que as pesquisas do instituto ainda não haviam saído das experimentações em laboratório, "não tendo sido possível até agora obter a quantidade suficiente do produto para experimentação em casos humanos". Isso mudou em fevereiro do mesmo ano, com o anúncio de Sebastião Nogueira de Lima, titular da Secretaria de Educação e Saúde do Estado de São Paulo.
"No dizer dos dirigentes da guerra, a penicilina é quase tão necessária à vitória como os explosivos, mas é, certamente, mais difícil de obter. Quer o interventor Fernando Costa aparelhar o Butantan para darmos ao nosso Corpo Expedicionário o volume de penicilina que ele necessitará. Foi este desejo que determinou a imediata abertura de um crédito de sete milhões de cruzeiros para o perfeito equipamento dos laboratórios", informava a edição de 3 de fevereiro de 1944.
No mês seguinte, o bacteriologista Oswaldo Cruz Filho, do Instituto Oswaldo Cruz, e Nicanor Botafogo Gonçalves, diretor dos Laboratórios de Produtos Terapêuticos, viajaram aos Estados Unidos realizar estudos sobre a produção de penicilina, informou A TARDE em 31 de março.
O desafio das superbactérias

O acaso permitiu que Alexander Fleming descobrisse a penicilina e muitos medicamentos e procedimentos foram criados dessa mesma forma, lembra o infectologista Robson Reis. “Pesquisas inicialmente desenvolvidas para determinados fins com reações não esperadas, diante de um pesquisador atento, geram outros potenciais benefícios. A descoberta da penicilina nos mostra que a observância e a perseverança são fundamentais para que possamos avançar não só na área da saúde, mas em todas as outras áreas também", defende o médico.
Em 1945, Alexander Fleming, Ernst Boris Chain e Howard Walter Florey receberam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta da penicilina e seu efeito curativo em várias doenças infecciosas.
“Sem dúvida, a penicilina foi um divisor de águas na medicina e inaugurou a era dos antibióticos, mas logo após sua descoberta, já surgiram bactérias capazes de produzir enzimas que a destruíam. Isso mostrou a necessidade contínua de desenvolver novos antimicrobianos, algo que ainda enfrentamos hoje", alerta o infectologista.
Parte do problema, enumera o especialista, vem do uso indiscriminado de antibióticos, com prescrições excessivas, automedicação e até o uso em animais de criação, como porcos tratados com polimixina, um dos antibióticos mais potentes. Tudo isso contribui para um fenômeno preocupante: a resistência antimicrobiana.
"Hoje, há casos em que uma simples infecção urinária exige internação porque não há mais opção de tratamento oral. As bactérias evoluem mais rápido do que conseguimos desenvolver novos medicamentos, e a Organização Mundial da Saúde já trata isso como uma ameaça global, não só pelos custos crescentes, mas pelas vidas que correm risco diante da falta de alternativas terapêuticas”, adverte Robson Reis.
Leia as matérias de acervo abaixo
Cobertura do Brasil na Guerra apresenta importância da penicilina para a Força Expedicionária Brasileira (FEB) | Crédito: CEDOC A TARDE/03/02/1944
A TARDE noticia chegada do primeiro carregamento de penicilina à Bahia | Crédito: CEDOC A TARDE/02/03/1944
*Com a colaboração de Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas
*Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE
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