Pioneiro em incluir negros em sua formação, Ypiranga completa 115 anos no próximo dia 7 | A TARDE
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Pioneiro em incluir negros em sua formação, Ypiranga completa 115 anos no próximo dia 7

Publicado sábado, 04 de setembro de 2021 às 06:01 h | Autor: Cleidiana Ramos*
Ypiranga surgiu como uma força arrebatadora no futebol baiano | Foto: Arquivo A TARDE | 30.1.1970
Ypiranga surgiu como uma força arrebatadora no futebol baiano | Foto: Arquivo A TARDE | 30.1.1970 -

Lance a lance foi a forma como a reportagem da edição de 8 de fevereiro de 1929 de A TARDE contou a partida final do campeonato baiano. Parece o estilo que os sites de notícias utilizam atualmente para oferecer um panorama do jogo a internautas que estão sem transmissão por rádio e TV. E a narrativa em detalhes ajuda a visualizar a importância da partida que tem as características daquelas que se tornam inesquecíveis para quem gosta de futebol, especialmente os torcedores das equipes envolvidas. No primeiro tempo de jogo, uma delas já vencia por 5x0. Na segunda etapa o placar foi ampliado ainda nos minutos iniciais. O adversário chegou a esboçar reação com a marcação de três gols, mas aí veio o sétimo. Fim de jogo. O vencedor do confronto com esse placar demolidor foi o Ypiranga, que ali conquistou seu sexto título contra o Bahiano de Tênis. Conhecido como “o time do povo”, no próximo dia 7 o clube completa 115 anos.

“Está terminando o campeonato da cidade de 1928 com a ruidosa victória do Ypiranga sobre o Bahiano de Tenis pelo alto score de 7X3. E pela sexta vez levanta o club mais popular da Bahia o honroso título tendo, na temporada finda, registrado apenas um empate, que foi com o valoroso Fluminense”. (A TARDE, 08/02/1929, p.4).

É pouco o que já se contou, escreveu e cantou sobre um time tão especial e que não à toa tem na sua cota de torcedores ilustres a primeira brasileira alçada à honra dos altares, Santa Dulce dos Pobres; Mestre Pastinha, o fundador da capoeira angola; o maior escritor baiano e um dos maiores da literatura de língua portuguesa, Jorge Amado; e o responsável por emplacar o cancioneiro das belezas de Salvador mundo afora: Dorival Caymmi.

O segredo para tanto encanto é que o Ypiranga foi o primeiro clube de futebol baiano a trazer em suas fileiras gente do povo, ou seja, trabalhadores negros: alfaiates, barbeiros e estivadores em contraponto aos jovens das elites econômicas que migraram para o futebol a partir dos clubes com quadro de sócios, dedicados a esportes como críquete, remo e tênis. Estas foram as origens de Vitória e Bahia. Este último surgiu em 1931, mas a partir da reunião de ex-membros das equipes de futebol do Bahiano de Tênis e da Associação Atlética da Bahia.

Pioneirismo

O Ypiranga foi fundado em 7 de setembro de 1906 como renovação de uma equipe criada dois anos antes: o Sport Club Sete de Setembro que tinha a mesma configuração de reunir trabalhadores. Apenas 11 anos depois da fundação veio primeiro título, em 1917, no contexto de um esporte ainda considerado de elite e que ainda usava termos em inglês, como “match”, “team” e “center half”. Esta última expressão se refere à posição em que jogou no clube a maior estrela do futebol baiano nas primeiras décadas da sua popularização: Apolinário Santana (1902-1955), mais conhecido como “Popó” e chamado de “Pelé Baiano”. Na partida que terminou em 7X3 ele foi um dos destaques.

“As 22h21 sob delirantes applausos, finaliza o jogo com a linda, brilhante e merecida victoria do glorioso S C Ypiranga pela alta e expressiva contagem de 7X3 que diz bem da forma como se portaram os seus players e do domínio que exerceram”. (A TARDE, 08/02/1929, p.4).

A equipe aurinegra campeã de 1928, pois as cores do Ypiranga são o preto e amarelo e, por isso, também recebeu o apelido de “canário”, foi formada por José, Juliano, Silvino, Azevêdo, Popó, Francisco, Pelagio, Lago, Vivi, o capitão, Mila e Sandoval. O time, de acordo com o texto, parecia jogar com um impressionante entrosamento e sobra de talento.

“O Ypiranga chegou com esse apelo popular, afinal era um time formado por trabalhadores. Tanto que se costuma dizer que o Bahia roubou a torcida que foi do Ypiranga”, destaca o jornalista Antônio Matos, 73 anos. Bacharel em Direito e delegado da Polícia Civil da Bahia, Matos é autor do livro intitulado Herois de 59- A história do primeiro título brasileiro conquistado pelo Esporte Clube Bahia.

Apaixonado por futebol, Matos estreou na cobertura esportiva em 1968 na Rádio Cruzeiro. Um ano depois tornou-se o editor de esportes da Tribuna da Bahia. Depois passou pelo Diário de Notícias, onde foi editor, colunista e redator, além de ter atuado como repórter da sucursal baiana da Manchete Esportiva e freelance do Estado de S. Paulo. Em 1981 migrou para A TARDE, onde ficou até 2004, em outras funções que o distanciaram da cobertura esportiva, mas não o afastaram do hábito de colecionar boas histórias sobre o futebol. Com esse repertório ele analisa a importância do início do Ypiranga, reunindo negros quando eles ainda eram exceção como jogadores.

“Atletas negros nos times do Rio viviam driblando suas características físicas, como Arthur Friedenreich que usava produtos para disfarçar o cabelo crespo. Os atletas de futebol não entravam pelo mesmo portão dos sócios no Fluminense do Rio. Tanto que tem o caso de um acadêmico de medicina, baiano, Pedro Amorim que quebrou essa regra. Lembro de partidas entre o Náutico, de Recife, e o Bahia em que no primeiro não se via jogadores negros já na década de 1960, completa”, Matos.

Era uma época também em que o campeonato baiano durava meses. Tanto que, geralmente, começava em abril de um ano e só terminava em janeiro ou fevereiro do outro. A demora levou os times, em 1932 a fazer um apelo, com o apoio da imprensa esportiva, para que o campeão daquele ano fosse declarado em poucos dias. A notícia sobre a carta foi publicada na edição de A TARDE de 23 de dezembro. Deu certo. Quatro dias depois, o jornal trouxe a informação sobre o vencedor: o Ypiranga, que conquistou seu oitavo título.

Imagem ilustrativa da imagem Pioneiro em incluir negros em sua formação, Ypiranga completa 115 anos no próximo dia 7
Avassalador, Ypiranga chegou ao seu 8º título baiano em 1932

“Não se tinham tantas competições nacionais ou internacionais como hoje. Assim os campeonatos estaduais chegavam a ter até quatro turnos. E, no caso da Bahia, só os times sediados em Salvador competiam. Só a partir de 1954 que o Fluminense de Feira de Santana começou a participar, mas a regionalização mais forte mesmo foi em 1967 com times de Ilhéus, Itabuna”, completa Matos.

Registro

Fundado em 1912, A TARDE não fez o registro do primeiro e segundo títulos do Ypiranga (1917 e 1918). Em uma pesquisa mais rápida não dá para apurar os motivos, mesmo porque os esportes aquáticos, como o remo, ocupavam maior espaço nos registros sobre esportes no jornal e não havia uma cobertura especializada tão constante como nas décadas seguintes.

Mas o título de 1920 obteve destaque na capa de A TARDE com o que se chama em jornalismo foto-legenda e mostra a formação do time campeão daquele ano. O texto conta alguns detalhes da conquista, embora não informe o adversário que foi derrotado: o Fluminense, de Salvador.

“O team do Ypiranga, que hontem arrancou o campeonato de foot-ball, encerrando a estação esportiva de 1920 – No alto, a linha de frente (da esquerda para a direita): Fernando que fez o goal decisivo, J. Magalhães, Oscar Nova, J. Silva (Dois- lados) e A. Piedade – No meio: Pericles, João Nova e Bahia I, backs e goal-kiper. Em baixo: os três Half-backs Gregório, Coelho e Bahia II (A TARDE, 20/12/1920, capa).

Imagem ilustrativa da imagem Pioneiro em incluir negros em sua formação, Ypiranga completa 115 anos no próximo dia 7
Edição registrou o 3º título do Ypiranga como campeão baiano

A legenda de uma foto talvez resuma, de uma forma perfeita, a trajetória do Ypiranga na cobertura realizada por A TARDE do último título baiano até aqui do “glorioso” referente ao campeonato de 1951. Mas a partida decisiva foi realizada, como era comum, em fevereiro do ano seguinte:

“Grito de Carnaval? Nada disso. Ipiranga campeão! O povo a pé, de automóvel, de qualquer maneira, em espetacular demonstração de júbilo, trouxe os seus atletas e dirigentes da Graça para o centro, num desfile de grande envergadura”. (A TARDE, 11/02/1952, p5).

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Edição registrou a grande festa que tomou a cidade

Desde então foram mais desafios do que conquistas para o Ypiranga. Com Bahia e Vitória participando de campeonatos nacionais, como aponta Matos, o campeonato local perdeu visibilidade e manter a competitividade foi se tornando mais difícil. O Ypiranga chegou a receber na década de 1960 aporte financeiro de um diretor, Humberto Rebouças.

“Tem até uma história interessante. Nesse período o time mudou o uniforme para verde e branco porque Humberto Rebouças teria sido aconselhado por uma mãe de santo a fazer a mudança para voltar a vencer. Mas o título estadual não veio e o preto e ouro voltaram. Ainda bem”, completa Matos.

Algumas tentativas para fazer o Ypiranga retornar aos dias de glória têm sido realizadas desde então, mas ele ainda não retomou seu lugar, que deveria ser cativo, na primeira divisão do campeonato baiano.

Em fevereiro deste ano foi anunciado que o Ypiranga cedeu parte da área de sua propriedade, onde tem um estádio, na localidade de Vila Canária, para a construção de uma escola e o governo do Estado em contrapartida vai viabilizar um projeto de melhoria na infraestrutura do clube como a construção de um centro de treinamento. Que sejam sinais de novas vitórias, pois o “time do povo” merece brilhar por conta de uma história tão fascinante, que mereceu registro de um dos seus mais entusiasmados torcedores, Jorge Amado, em Bahia de Todos os Santos- Guia de ruas e mistérios:

“Outros clubes do futebol baiano podem ser mais ricos, mais prósperos, mais badalados pela imprensa, donos até de maior torcida e de maior número de títulos recentes. Nenhum de tão gloriosa tradição quando o Ipiranga, o time de Popó, antigamente poderoso, milionário, invencível, supercampeão, hoje pobre e batido, mas, em glórias, quem se compara a ele?”

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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