Professor Samuel Vida analisa força da cidadania negra
A articulação dos movimentos negros tem protagonismo no constitucionalismo embora seja pouco mencionada
Cleidiana Ramos
A Constituição do Estado da Bahia foi
promulgada em 5 de outubro de 1989. Ela tem como uma de suas características a série de direitos estipulados para a população negra como conquista de uma
forte articulação da sociedade civil organizada nos chamados movimentos negros.
É uma vitória do “constitucionalismo negro”, um conceito que o professor Samuel
Vida, coordenador do programa Direitos e Relações Raciais da Universidade
Federal da Bahia (Ufba) e doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB)
explica nesse artigo.
A Constituição do Estado da Bahia é o tema da coluna A TARDE Memória dessa semana, um projeto multimídia com inserção em canais do Grupo A TARDE: A TARDE FM (às sextas-feira); Jornal A TARDE (aos sábados) e Portal A TARDE. O conteúdo é baseado no acervo do Cedoc A TARDE.
Confira o artigo.
Em tempos de negacionismo é preciso desocultar o Constitucionalismo Negro
Samuel Vida
A memória e a história têm sido convocadas
para o enfrentamento da pandemia autoritária e negacionista que assola as
instituições políticas e jurídicas em escala mundial. Mais do que a volta a um
inexistente momento ideal anterior, é preciso recuperar o que ficou no caminho,
aprender com os erros e acertos e pensar o presente e o futuro orientado pela
maximização do pluralismo, como única vacina eficaz e condição de possibilidade
para a construção de horizontes democratizantes.
O resgate do Constitucionalismo Negro é parte
do desfio contemporâneo de construção da democracia e enfrentamento às
tentações autoritárias que buscam atualizar o negacionismo e afirmar uma versão
histórica refratária ao pluralismo, idealizando discursos e manuseando símbolos
falsamente homogêneos na esfera religiosa, patriótica, familiar ou nacional. A
ampliação da cidadania, o enfrentamento das desigualdades, o reconhecimento das
singularidades civilizatórias e dos legados negros e indígenas, o
fortalecimento das formas organizacionais e processos institucionais que
respeitam o pluralismo, a ampliação das possibilidades de participação
política, são respostas mais eficazes que as ilusões eleitorais catalisadas
emocionalmente pelo marketing político.
O constitucionalismo expressa a mais bem
sucedida resposta político-jurídica produzida pela modernidade. Entre as
últimas décadas do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, as
transformações societais nas metrópoles e nas antigas colônias americanas
produziram um novo arranjo institucional nucleado pela Constituição como
expressão política e jurídica destinada a assegurar direitos fundamentais da
cidadania e disciplinar o poder estatal, mitigando seus abusos. Desde então, as
constituições figuram como os pilares que vertebram as dinâmicas políticas e
jurídicas que movimentam todos os segmentos que compõem as sociedades modernas,
operando como o eixo de gravidade do funcionamento institucional e de sua
legitimidade.
Nos seus aspectos fundamentais, o
constitucionalismo se configurou em torno da luta pela liberdade e realização
existencial individual e coletiva, bem como pela limitação dos abusivos poderes
estatais mediante a regulamentação e desconcentração de suas atribuições
através da separação dos poderes. Os processos políticos e sociais que
produziram as constituições se desenvolveram de forma complexa e foram marcados
pelas grandes disputas políticas e civilizacionais que atravessaram os últimos
250 anos da história mundial. Em torno do constitucionalismo convergiram
expectativas e esforços diversos protagonizados por diferentes sujeitos
históricos na luta pelo reconhecimento de suas agendas e interesses
formalizados em proposições jurídicas. Legados coloniais, insurgências
emancipatórias, concepções civilizatórias, modelos econômicos, concepções
antropológicas sobre as raças humanas, dentre outros fatores
histórico-sociológicos, desaguaram em projetos de nação, expressando-se
conflitivamente nos processos de formulação e interpretação/aplicação
constitucional.
Entretanto, a história do constitucionalismo segue narrada com intrigantes lacunas, dentre as quais se destaca o silenciamento sobre a ativa participação de pessoas negras e suas organizações nos movimentos constitucionalistas. Os discursos canônicos sobre o constitucionalismo se desenvolvem numa linha genealógica eurocêntrica mitologizada, brancocêntrica, racialmente excludente e seletiva em face de fatos e processos políticos decisivos no delineamento das instituições modernas e contemporâneas, eclipsando a participação negra e o agenciamento de suas pautas, expectativas e conquistas.

No plano da história geral do constitucionalismo prevalece uma abordagem centrada nas experiências constitucionais inglesas, estadunidenses e francesas, escamoteando outras relevantes experiências. Verificou-se uma idealização sobre o conteúdo e o alcance das constituições canônicas, relevando suas muitas fragilidades e contradições. Especialmente suas insuficiências referentes à garantia de direitos da cidadania para pessoas negras, escravizadas ou livres. Seja na Inglaterra, nos Estados Unidos ou na França, o constitucionalismo canônico fracassou diante do enfrentamento da escravidão e da promoção de efetiva igualdade para as pessoas negras.
O constitucionalismo haitiano de Dessalines, em 1805, e seu ousado enfrentamento da escravização negra, as lutas abolicionistas nas metrópoles e em toda a diáspora negra, o quilombismo e suas experiências de autonomia territorial e política, as insurreições emancipacionistas que sacudiram as antigas colônias nas Américas, por exemplo, seguem desconsideradas pelo constitucionalismo canônico.
Lacunas
Na história do constitucionalismo brasileiro a
seletividade e a exclusão do protagonismo negro se repetem. Ignora-se a Revolta
de Búzios, em 1798, assim como a insurreição pernambucana liderada por Emiliano
Mundurucu e sua ousada chamada inspirada na Revolução haitiana: “Qual eu imito
a Cristovão/ Esse imortal haitiano, / Eia! imitai ao seu povo,/ Ó meu povo
soberano!” No processo de desfecho das lutas por independência o protagonismo
negro no 2 de julho sobreviveu graças à memória e iniciativa popular, embora
descentrado como referente apenas à Independência da Bahia. Mesmo durante a
construção constitucional republicana, episódios relevantes como a realização
da Convenção Nacional do Negro, em 1945, coordenada pelo Teatro Experimental do
Negro, sob a direção de Abdias Nascimento, que encaminhou importantes
proposições à Assembleia Constituinte que produziu a Constituição de 1946,
segue desprezado.
Por fim, nos estertores da ditadura
civil-militar instalada em 1964, o constitucionalismo negro produziu importante
agenda político-jurídica durante o último processo constituinte, contribuindo
decisivamente para a adoção de um horizonte antirracista na atual ordem
constitucional em vigor, desde 5 de outubro de 1988. Nessa ocasião, a mobilização
negra, potencializada pela denúncia do centenário da abolição, traduziu parte
de seu programa político em proposições estratégicas recepcionadas na
Assembleia Constituinte através dos parlamentares negros Benedita da Silva,
Paulo Paim, Carlos Alberto de Oliveira – Caó – e Edmilson Valentim, além do
aliado Florestan Fernandes.
Embora dispersos ao longo da topografia
constitucional, as normas originadas da mobilização negra constituem um
microssistema constitucional antirracista e devem ensejar uma interpretação
constitucional sistêmica que reconhece tardiamente direitos constitucionais
para parte do povo negro e gera obrigações estatais em diversos domínios de sua
atuação.
Desde o preâmbulo constitucional, na afirmação orientadora do sentido atribuído à comunidade política ao “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, até o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT -, que dispõe: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

Entre estes dois marcos limítrofes da arquitetura constitucional, podem ser destacados os seguintes dispositivos e seus impactos na atuação do estado e na garantia de direitos para o povo negro:1. A fixação de programa permanente de ação mediante políticas públicas, para a devida consecução dos objetivos fundamentais da República, indicados no artigo 3º, com destaque para o disposto nos incisos III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
2. Comprometimento
com o combate ao racismo no plano das relações internacionais, equiparando a
gravidade do racismo ao terrorismo, conforme disposto no art. 4º, VIII.
3. A retirada de ressalvas à Liberdade Religiosa, no
art. 5º, VI, tornando expressamente inconstitucional qualquer restrição aos
cultos das religiões de matrizes africanas.
4. Criminalização do racismo, no art. 5º, XLII.
5. Proibição de discriminação salarial por motivação
racial, estipulada no art. 7º, XXX.
6. Constitucionalização do trabalho doméstico, no art. 7º, parágrafo único.
7. A constitucionalização da cultura negra, nos artigos 215 e 216, através de medidas como: o reconhecimento do caráter pluricultural da sociedade brasileira e do legado cultural afro-brasileiro como parte do patrimônio cultural nacional; definição do dever de proteção das manifestações culturais afro-brasileiras: fixação das datas comemorativas dos diferentes grupos étnicos partícipes da formação nacional; determinação do tombamento dos documentos e sítios referentes aos quilombos.
8. Obrigatoriedade de inclusão da história do negro na
educação, conforme o artigo 242, § 1º O ensino da História do
Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a
formação do povo brasileiro.
No processo constituinte baiano, a tradição longeva
do constitucionalismo negro produziu resultados expressivos. Mesmo sem ter
representação negra vinculada aos movimentos negros, a partir da intensa
mobilização das organizações e comunidades negras assegurou-se a inclusão de
importantes dispositivos constitucionais. Sob o aspecto normativo formal, a
Constituição Estadual aglutinou as proposições negras nos Capítulos
relacionados à Cultura; Do Negro; e no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.
No artigo 275, que integra o Capítulo Da Cultura,
são estabelecidas disposições referentes ao respeito e devido reconhecimento
das religiões de matrizes africanas, invertendo um histórico de discriminação
institucional e menosprezo. É realçada a responsabilidade estatal no
enfrentamento às discriminações, cabendo-lhe a adoção de diversas medidas
positivas destinadas à proteção e defesa destas comunidades religiosas. Proíbe
a apropriação cultural dos símbolos e expressões religiosas por parte dos
órgãos encarregados da promoção do turismo. Estabelece a garantia da presença
de representação destas religiosidades nos órgãos e atividades cuja presença de
representantes religiosos esteja prevista. Determina a fixação de referências
curriculares obrigatórias para a abordagem pluricultural no ensino.
Art. 275 -
É dever do Estado preservar e garantir a integridade, a respeitabilidade e a
permanência dos valores da religião afro-brasileira e especialmente:
I - inventariar,
restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de valor artístico e
cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados à
religião afro-brasileira, cuja identificação caberá aos terreiros e à Federação
do Culto Afro-Brasileiro;
II -
proibir aos órgãos encarregados da promoção turística, vinculados ao Estado, a
exposição, exploração comercial, veiculação, titulação ou procedimento
prejudicial aos símbolos, expressões, músicas, danças, instrumentos, adereços,
vestuário e culinária, estritamente vinculados à religião afro-brasileira;
III -
assegurar a participação proporcional de representantes da religião
afro-brasileira, ao lado da representação das demais religiões, em comissões,
conselhos e órgãos que venham a ser criados, bem como em eventos e promoções de
caráter religioso;
IV -
promover a adequação dos programas de ensino das disciplinas de geografia,
história, comunicação e expressão, estudos sociais e educação artística à
realidade histórica afro-brasileira, nos estabelecimentos estaduais de 1º, 2º e
3º graus.
A Constituição Estadual inovou ao destacar um capítulo temático intitulado Do Negro, numa manifestação explícita de reconhecimento e constitucionalização do antirracismo. Neste capítulo, através de disposições em 5 artigos, afirma-se o reconhecimento da comunidade negra como elemento formador da sociedade e da cultura baiana; reitera-se o repúdio ao racismo enquanto manifestação criminosa; proíbe-se o intercâmbio cultural e desportivo com estados que adotem política oficial racista, bem como o relacionamento com empresas neles situadas; exige-se a expressa inclusão de disciplina sobre a participação do negro na formação histórica da sociedade brasileira, no ensino público e nos cursos de formação dos servidores públicos civis e militares; cria-se a primeira política de reserva de vagas para negros na ordem jurídica brasileira, aplicável à publicidade; define-se o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, no calendário oficial do Estado.

Art. 286 - A sociedade baiana é cultural e
historicamente marcada pela presença da comunidade afro-brasileira,
constituindo a prática do racismo crime inafiançável e imprescritível, sujeito
a pena de reclusão, nos termos da Constituição Federal.
Art. 287 - Com países que mantiverem política
oficial de discriminação racial, o Estado não poderá:
I - admitir participação, ainda que indireta,
através de empresas neles sediadas, em qualquer processo licitatório da
Administração Pública direta ou indireta;
II - manter intercâmbio cultural ou desportivo,
através de delegações oficiais.
Art. 288 - A rede estadual de ensino e os cursos de
formação e aperfeiçoamento do servidor público civil e militar incluirão em
seus programas disciplina que valorize a participação do negro na formação
histórica da sociedade brasileira.
Art. 289 - Sempre que for veiculada publicidade
estadual com mais de duas pessoas, será assegurada a inclusão de uma da raça
negra.
Art. 290 - O dia 20 de novembro será considerado,
no calendário oficial, como Dia da Consciência Negra.
Finalmente, no ADCT, são firmadas três importantes
determinações constitucionais que obrigam o Estado da Bahia a implementar
políticas públicas compensatórias para a comunidade negra. No artigo 50,
determina a regularização fundiária dos terreiros. No artigo 51, determina a
identificação, demarcação e titulação dos territórios quilombolas situados em
terras devolutas estaduais. No artigo 54, cria a Comenda do Mérito da
Conjuração Baiana, a ser conferida aos defensores dos direitos sociais.
ADCT
Art. 50 - O Estado promoverá, no prazo máximo de doze meses a contar da
data da promulgação desta Constituição, as ações necessárias à legalização dos
terrenos onde se situam os templos das religiões afro-brasileiras, por
iniciativa da competente Federação.
Art. 51 - O Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação
desta Constituição, a identificação, discriminação e titulação das suas terras
ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Art. 54 - O Poder Executivo deverá, a contar da promulgação desta
Constituição, encaminhar à Assembléia Legislativa projetos de lei destinados a:
I - criação da Comenda do Mérito da Conjuração Baiana, a ser conferida
aos defensores dos direitos sociais, no dia 08 de novembro, no prazo de cento e
oitenta dias;
Samuel Vida é ogã de Xangô do Terreiro do Cobre, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba)
onde coordena o Programa Direitos e Relações Raciais e doutorando em Direito na
Universidade de Brasília (UnB).