Propagandas são um registro dos costumes e modas ao longo do tempo
Edições de A TARDE do começo do século XX recontam as histórias da evolução da publicidade nos jornais e dos hábitos dos baianos
Pergunte aos seus avós. Certamente, vão contar histórias da própria infância e das caretas para evitar ‘o remédio’ ministrado em colher de sopa bem cheia. Emulsão de Scott para fortalecer o sangue. O gosto do composto vitamínico não era atrativo para as crianças, mas elas não tinham muita opção além de abrir a boca e engolir a substância. O ingrediente principal? Óleo de fígado de bacalhau. Ainda à venda nas farmácias e pela internet, o elixir atravessou gerações, mas simboliza os hábitos de uma época. A marca também foi uma das mais assíduas desde o século XIX em anunciar nos jornais. As páginas de A TARDE, fundado em 1912, já no século XX, trazem a garrafinha e as legendas com as propriedades medicinais que convenciam seus bisavós do investimento na saúde familiar.
Olhando atentamente as propagandas de antigamente veiculadas na imprensa, cronistas de habilidade ou pesquisadores dedicados encontram um portal para o passado nem tão distante. Nas coleções históricas de A TARDE, diversos tónicos podem render estudo sobre a medicina praticada há mais de 100 anos, quando ainda não havia antibióticos, vacinas e as técnicas cirúrgicas atuais. É possível, também, entender as antigas oficinas de ourives, a evolução da indústria naval e do comércio, acompanhar as atualizações da moda, perfumaria e cosméticos. Uma tese inteira sobre a relação das pessoas com o próprio cabelo pode sair das publicidades do antigo Tônico Americano, que prometia até rejuvenescer e embelezar.
Em 15 de outubro de 1982, A TARDE publicou um caderno especial sobre os 168 anos da propaganda na Bahia. A edição especial comemorava os 70 anos da fundação do jornal e trazia um apanhado histórico sobre a publicidade veiculada na imprensa desde os anos 1800, demonstrando as inovações trazidas pelo próprio jornal, que foi o primeiro da Bahia a publicar um anúncio com fotografia.
“Não seria exagero dizer que A TARDE já surgiu inovando no ramo da publicidade. Com melhores recursos gráficos e tendo como exclusiva a clicheria ‘Adolfo Linderman'. No dia 17 de fevereiro de 1913, com menos de um ano de existência, o caçula dos jornais da época divulgava pela primeira vez na Bahia um anúncio com ilustração fotográfica. Era do filme Um Salto da Morte, exibido no Teatro Santo António”, diz trecho de uma das reportagens do caderno.
No acervo do jornal, além da referência a esse primeiro anúncio com fotografia, há uma imagem que registra as atrizes de outra produção, Sodoma e Gomorra, épico bíblico de 1962, visitando a oficina de composição, na antiga sede da Praça da Sé, vestidas como as personagens da produção, em uma ação da turnê de divulgação do filme, promovida na Bahia pelo exibidor Francisco Pithon.
A era do clichê
Em 13 de Julho de 1913, A TARDE inaugurou a própria clicheria, o que permitiu que fizesse os seus anúncios com independência. Os mais comuns eram os reclames de remédios fabricados em laboratórios do Rio de Janeiro e São Paulo, casas comerciais baianas, navios mercantes e até de multinacionais como a Kodak e a Singer. Uma agência de turismo anunciou na primeira edição e manteve a assiduidade por décadas.
“Os primeiros anúncios de A TARDE começam em 1912, no próprio ano da fundação do jornal. Uma empresa da época que anunciava muito, inclusive, no número inaugural, era a Conde Turismo, que ainda existe e é uma das marcas mais antigas da Bahia. O primeiro anúncio com fotografia no jornal foi publicado em 1913, que era um anúncio de cinema. E por que? Porque o cinema precisava, para divulgar o filme, ter uma referência visual”, conta o jornalista, publicitário e escritor Nelson Cadena, ele mesmo um estudioso de edições antigas dos jornais baianos.
O clichê, acrescenta Cadena, era a matriz onde se fazia a impressão do jornal. Basicamente,uma peça de zinco ou chumbo onde eram gravados os textos e ilustrações ou fotografias das notícias e anúncios que, depois, seriam impressos em um processo manual e artesanal. Em 1913, o primeiro anúncio com fotografia representou uma profunda mudança e uma inovação tecnológica. “A fotografia exigia um processo difícil para gravar no clichê”, complementa o pesquisador.
Logo na sequência do salto que representava esse desenvolvimento da clicheria própria, o jornal criaria os classificados, os Populares de A TARDE, organizados e publicados por ordem alfabética. Os postos para recebimento dos anúncios vieram à reboque. Quase todos os anúncios eram elaborados na clicheria do jornal e só a partir dos anos 1920, com o desenvolvimento da indústria automobilística, é que surgiram as primeiras agências de publicidade e propaganda.
“A indústria automobilística passou a ser o principal anunciante em todo o país e A TARDE acompanhou esse desenvolvimento, publicando anúncios cada vez melhor elaborados”, diz outro trecho do caderno ‘Os 168 anos da propaganda na Bahia’.
Origem oitocentista
A publicidade nasceu junto com a imprensa, no século XIX, diz Nelson Cadena. Primeiro, no Rio de Janeiro, a capital do país entre o fim da era colonial, o período imperial e até a construção e inauguração de Brasília, em 1960. A Gazeta do Rio de Janeiro veiculava anúncios desde 1808, ano da chegada da família real ao Brasil.
“Aqui na Bahia, desde 1811, anúncios eram veiculados em A idade d'ouro do Brasil, que durante mais ou menos 10 anos, foi o único jornal que circulava em Salvador. Esses primeiros anúncios eram dos ingleses, que iniciaram um forte comércio marítimo e tinham outros negócios correlatos. Tanto que, o primeiro anúncio veiculado em A idade d'ouro do Brasil era vendendo o casco de um navio inglês”, revela Cadena.
Infelizmente, no alvorecer do século XIX, o Brasil ainda mantinha africanos e seus descendentes escravizados e muitos dos anúncios desses jornais do começo dos anos 1800 eram relativos à compra e venda de escravizados, principalmente na imprensa de Salvador, Rio de Janeiro e Recife, principais entrepostos do tráfico negreiro. “Os jornais do século XIX também publicavam anúncios de recompensas pela captura de escravizados em fuga, com as descrições dos fugitivos”, complementa o publicitário. Não à toa, os jornais da época são valiosos documentos para pesquisadores do período escravista e dos movimentos pró-abolição.
No século XIX, também não havia ainda muita tecnologia para a confecção de anúncios como conhecemos na atualidade e, lembra Cadena, praticamente não existia imagem, “a não ser a xilografia, que era feita em casca de cajazeira e imprimia vinhetas que já estavam prontas”, diz.
Segundo ele, existiam vinhetas exclusivas para o anúncio das fugas de escravizados, representadas pelo desenho de um escravo carregando uma trouxa. Vinhetas para anúncios referentes ao comércio marítimo eram representadas por desenhos de barcos. “Esses se referiam aos negócios no porto de Salvador”.
Da xilogravura, o processo para publicação de imagens nos jornais evoluiu para a litografia, processo de impressão feito em matriz de pedra polida, com a imagem pressionada contra o papel. A fotografia é a grande revolução. Inicialmente, em preto e branco e, depois, colorida.
A cara da Bahia
Nas páginas das edições históricas de A TARDE, chamam a atenção as ilustrações dos anúncios dos tempos do clichê. Segundo Nelson Cadena, o inusitado dessas imagens se deve ao fato de existir uma caracterização exagerada dos tipos retratados. “Teve uma época no Brasil, e na Bahia, em que os anúncios eram feitos por ilustradores que eram caricaturistas, chargistas, então, eles faziam tipo uma charge”.
Ele recorda de já ter visto anúncios da Alfaiataria Londres em que um garçom ‘servia’ a cabeça de um homem em uma bandeja, fazendo referência à ideia de que os homens tinham de ir à Alfaiataria Londres para ficarem bonitos e bem vestidos. “Havia outro que mostrava um homem engolindo uma cabeça de touro, para vender um elixir para o estômago. E outro, ainda, com um homem careca incomodado por moscas, que era de um tônico para recuperar o cabelo”, enumera.
Submetidos ao crivo do tempo, muitos anúncios do século XIX e do começo do XX seriam, no mínimo, inadequados nos dias de hoje. Mas, sua permanência nos acervos de memória dos jornais centenários serve de material de estudo e também de alerta para o que deixou de ser socialmente aceito com o passar dos anos.
A publicidade baiana só ganhou uma identidade própria a partir da década de 1970, continua Nelson Cadena. Antes disso, diz, a publicidade praticada aqui no século XIX era influenciada pela Corte, o Rio de Janeiro, e outras praças. “Era também um pouco calcada na publicidade feita em toda a América Latina e em Portugal. Depois, passamos a ter uma influência francesa marcante”.
A moda francesa na propaganda sucumbiu ao american way of life (modo de vida americano, em tradução livre, referente aos hábitos, costumes e modas dos Estados Unidos), depois das grandes guerras mundiais. Os americanos, ainda segundo Cadena, dominaram totalmente a publicidade, inclusive com símbolos e modelos que não tinham nada a ver com a propaganda baiana.
“A partir da década de 1970 é que se cria essa publicidade regional e a Bahia foi pioneira no Brasil a partir de agências como a Propeg e com o publicitário Duda Mendonça, que lideraram esse processo de regionalização, mostrando elementos da cultura baiana e afro baiana, como as baianas de acarajé”, finaliza o pesquisador.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE