Quaresma e Semana Santa são importantes para a economia baiana
Período é marcado por procissões com encenação em linguagem teatral
Após o Carnaval está instalado um novo ciclo de celebrações importantes na Bahia. A Quaresma, que já está em curso desde a Quarta-feira de Cinzas, será seguida pela Semana Santa que culmina com a Páscoa, a mais importante festa para os cristãos, especialmente os católicos. Esse período tem alguns elementos que são bem marcantes: procissões em linguagem de encenação teatral para contar os fatos relacionados à Paixão e Morte de Jesus Cristo, alimentação com peixe e frutos do mar substituindo a carne nas quartas e sextas-feiras e almoço em família assim como no Natal. Nas coleções do Cedoc A TARDE os registros de como esse é um período especial são abundantes.
Uma fotografia realizada em 1962 mostra duas mulheres vestidas com longas túnicas. Uma está com a cabeça meio inclinada e o punho direito cerrado na altura do peito. A outra está sentada com as mãos unidas e uma expressão de desolação. À esquerda tem um homem em pé, de perfil.
A cena, possivelmente, retrata parte da descrição sobre o dia da morte de Jesus feita no Evangelho de São João, no capítulo 19. Neste trecho o evangelista afirma que estavam ao pé da cruz, ele, João, Maria, a mãe de Jesus e duas de suas homônimas: Maria de Cléofas e Maria Madalena.
O registro de 1981 mostra um homem representando Jesus crucificado e outro de roupa escura em pé ao seu lado. À frente, sentados, estão os que representam soldados. Esses seguram uma túnica. É a encenação do episódio citado no Evangelho de São Mateus que aponta um sorteio das roupas que Jesus vestia no início da trajetória que lhe levou à morte.
Já a fotografia de 1994 exibe uma das cenas do que foi a marcha de Jesus até o local da crucificação. Um homem leva a cruz enquanto à esquerda estão as personagens que choram por ele e são contidas por soldados. Atrás do ator que interpreta Jesus há um grupo de pessoas caracterizadas como soldados.
As muitas procissões do período da Quaresma e Semana Santa em Salvador marcam este período. Não é surpresa, afinal a participação da Igreja Católica no processo de colonização do Brasil deixou fortes marcas nas celebrações da capital baiana. A Companhia de Jesus integrou a frota de Tomé de Souza para fundar Salvador em 1549 e esteve envolvida diretamente no processo de construção da cidade ocupando territorialmente o seu sítio inicial. Um dos indícios é a Praça XV de Novembro até hoje muito mais conhecida como Terreiro de Jesus por conta da predominância dessa congregação na propriedade de imóveis e outros negócios dos primeiros tempos da cidade.
A Companhia de Jesus foi seguida por outras ordens e pela difusão das irmandades, instituições voltadas para leigos. As procissões consistiam em oportunidades de ouro para demonstrar poder e riqueza por meio de adereços e imponência dos andores, o que fazia desses eventos, com base nas descrições de cartas de missionários e outros documentos, um teatro a céu aberto.
No livro Procissões tradicionais da Bahia, João da Silva Campos (1880-1940) cita sete procissões já extintas que ocorriam no período da Quaresma à Semana Santa. As descrições têm ênfase no luxo e nas encenações de passagens bíblicas ou representação de personagens.
“Cada um dos mais importantes e privilegiados sodalícios religiosos da Bahia Velha tinha sua espetaculosa procissão quaresmal. Duas delas revestiam-se mesmo de pompa teatral, à imitação do que, na época, se usava na Europa católica inteira, — onde algumas ainda subsistem assim, —bem como nos domínios ultramarinos portugueses e castelhanos. Competiam-se as nossas Confraternidades entre si, caprichando na organização dos seus cortejos litúrgicos, com o dispêndio de vultosos cabedais. Todas essas procissões vinham ser cópia exata de outras realizadas em Portugal”. (Procissões Tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.92.
Descrevendo mais detalhadamente, uma delas, João da Silva Campos, chama a atenção para o luxo.
“A saída da procissão do Triunfo, pela primeira vez, na Bahia correndo o ano do Senhor de 1762, foi acontecimento que deu brado na cidade pelo inaudito luxo, imponência e extensão com que o préstito apareceu em público”. (Procissões tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.95).
Essa procissão chamada de Triunfo da Cruz de Cristo e Senhor Nosso era realizada no Domingo de Ramos pela Ordem Terceira de São Francisco. Nesse grupo tinha ainda a da Rasoura, Quarenta Horas, Cinzas, Senhor dos Passos dos Humildes e Fogaréus. Todas estão extintas, mas a tradição da encenação dos momentos mais dramáticos da Paixão e Morte de Jesus continua a ser mantida nas procissões especialmente as da Semana Santa, como a do Encontro.
Alimentação
Uma outra característica desse ciclo de festas é o consumo de peixe. Tradicionalmente, como uma forma de sacrifício, os católicos deixam o consumo de carne vermelha especialmente às quartas e sextas-feiras.
Na Bahia, esse costume se encontrou com o de herança africana ao se fazer pratos complementares à moqueca, temperados com azeite de dendê, como caruru e vatapá, para acompanhar o peixe ou outros frutos do mar. Mas o feijão de leite e o arroz de coco também foram incorporados. Esse cardápio ganha proeminência, acrescido das frigideiras recheadas com frutos do mar, na Sexta-Feira Santa. Dia que deveria ser de jejum, e que para a Igreja Católica moderna não é renunciar à comida, mas diminuir as porções, em parte significativa das famílias baianas é ocasião não apenas de um banquete, mas de reunir o maior número de membros possíveis. A bebida para acompanhar o almoço costuma ser o vinho.
Outro hábito é aproveitar o feriado da Semana Santa em cidades do interior do estado, assim como acontece durante o período das festas juninas. Por isso este é um ciclo de festas considerado estratégico para o turismo. As feiras livres na capital e no interior também são locais que têm a economia aquecida tanto para a venda de peixes e mariscos como dos ingredientes para os outros pratos. Trata- se, portanto, de mais um elo importante na extensa roda do ano festivo baiano.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
Confira as páginas de A TARDE sobre a Quaresma e Semana Santa: