Queima de Judas era celebrada em várias partes de Salvador | A TARDE
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Queima de Judas era celebrada em várias partes de Salvador

Levantamento em A TARDE por um período de 105 anos mostra o quanto a cidade acolhia esta manifestações

Publicado sábado, 16 de abril de 2022 às 06:00 h | Atualizado em 16/04/2022, 14:24 | Autor: Cleidiana Ramos* | [email protected]
Imagem da manifestação, em 1974, mostra como a queima de Judas mobilizava as comunidades na Semana Santa
Imagem da manifestação, em 1974, mostra como a queima de Judas mobilizava as comunidades na Semana Santa -

“Na rua alvoraça-se a garotada. Sôam pancadas em latas e bacias velhas. Estoiram foguetes. Pandemônio. E as cantigas infantis enchem a cidade. “Aleluia/Carne no prato/Farinha na cuia”. Mais tarde a alegria popular torna-se um símbolo de revolta. Nas forcas que se levantam por todos os cantos, erguem-se Judas, grotescos pêndulos de forma humana, que o fogo reduzirá a cinzas, castigando ainda 2 mil anos depois do crime nefando a sua traição inominável. Aleluia”.  

O trecho acima é de uma reportagem publicada por A TARDE em 23 de março de 1940. O título faz referência ao que é definido como tradição popular e que persiste: a Queima de Judas, realizada anualmente no Sábado de Páscoa também chamado de Sábado de Aleluia. 

O evento acontecia em diversas localidades de Salvador. Em um levantamento realizado na coleção das edições de A TARDE com um ano de cada década, no período de 1915 a 2010, as referências são constantes, embora com algumas variações. 

Em 1915 e 1920, por exemplo, a Queima de Judas ocorria no início ou na véspera da “Micaremme”, que era uma nova despedida do Carnaval na capital baiana e que, mais tarde, virou “Micareta”, festa abordada em A TARDE Memória na edição de 5 de fevereiro desse ano.     Além da Queima de Judas aconteciam bailes nos clubes e desfiles nas ruas. Madragoa, Água de Meninos, Plataforma, Garcia, Mouraria, Soledade e Baixa dos Sapateiros são alguns dos locais indicados como endereços da festa. 

Nas reportagens de A TARDE percebe-se uma característica marcante do evento: a organização por comissões formadas por moradores das localidades onde ele acontecia. Essa marca fortalecia um dos ritos da festa: a leitura dos testamentos que faziam referência a pessoas conhecidas por meio da zombaria. 

Mas nem sempre tudo corria de forma perfeita. Na edição de 25 de março de 1940, por exemplo, uma reportagem contou como algumas festas não chegaram ao ápice, ou seja, a queima do boneco. Isso porque sem o pagamento de uma taxa de licença a polícia recolhia o Judas. 

“A cidade assistiu, no último sábado em vários pontos a queima dos “Judas”. Entretanto, alguns deles viram-se livres da forca e da incineração, graças à Polícia. Não que ela se compadecesse do suplício a que estava condenado o Iscariotes. Podia morrer o discípulo traidor, milhares de vezes, que isso não teria nenhuma importância. Mas o que é imprescindível é que Judas, para morrer, pague a necessária licença. E houve Judas paupérrimos, que, por isso, tiveram um passeio na “carrocinha” até a delegacia próxima onde ficarão até que se arranjem os niqueis precisos para que possam morrer, dentro dos regulamentos policiais, no próximo ano”. (A TARDE, 25/3/1940, p2). 

Dentre os casos em que a Queima de Judas ficou pelo caminho, segundo a reportagem, o mais espetacular foi o do Tororó. A animação era crescente, quando a polícia acabou com a festa apreendendo não apenas o boneco, mas também aprisionando o organizador do evento.  

“Grande era a concorrência na rua do Amparo, quando cerca de meia-noite, justamente na hora H, apareceu uma “banheira”, com policiais, que, sem mais aquela, retiraram o Iscariotes que se balançava na forca, e levaram-no em companhia do encarregado dos festejos, sr. José Bento da Silva, que ficou encarcerado na Chefatura da Polícia até o dia seguinte, ao meio-dia, quando, após muitos pedidos, foi posto em liberdade. O Judas salvou-se da forca, porém foi preso...”(A TARDE, 25/3/1940, p2). 

Especialista

A Queima de Judas ganhou tanta importância na capital baiana que, em 1970, a Superintendência do Turismo da Cidade do Salvador (Sutursa), órgão da Prefeitura, passou a oferecer suporte para a realização das atividades. Uma reportagem publicada por A TARDE em 28 de março de 1970 trouxe o serviço sobre os passos para a organização de uma dessas festas com apoio da administração municipal. 

“Para que haja a queima de Judas, cada bairro cria uma comissão organizadora tendo à frente um nome conhecido no local. A comissão é encarregada de angariar fundos junto aos moradores e comerciantes do lugar e encaminhar a petição à Sutursa para que esta envie auxílio em dinheiro e iluminação”. (A TARDE, 28/3/1970, p2). 

De acordo com o texto, naquele ano, 38 localidades de Salvador iriam realizar Queima de Judas. Na lista estavam a Rua Apolinário de Santana, no Engenho Velho da Federação, Pernambués, Daniel Lisboa, Alto de Amaralina, Beco do Cirilo, Engenho Velho de Brotas, Pero Vaz, dentre outras. 

Com essa dedicação da cidade a esse rito foi natural o surgimento de um especialista considerado uma referência na fabricação dos bonecos: Florentino Moreira Alves, que ficou conhecido como Florentino Fogueiro. Em uma reportagem publicada na edição de 14 de abril de 1990 são informadas algumas das características do trabalho de Florentino: ele estava há 51 anos na atividade e não dava aos bonecos traços de políticos alegando que estes estavam entre os seus clientes. 

Mas o fio condutor da reportagem era exatamente como essa atividade poderia se transformar em uma faca de dois gumes para os interessados em agradar eleitores, pois se, em um ano, estavam na condição de promotores do julgamento do Judas em outro poderiam estar na “pele” dele, ou seja, sendo associado ao traidor. Fernando Collor, vencedor da primeira eleição direta para presidente da República, após 21 anos de ditadura militar, por exemplo, já estava perdendo a popularidade devido ao plano econômico que, inclusive, era apontado como responsável por uma queda de 50% na venda de Judas em 1990 com base nos cálculos de Florentino. 

Diferentemente do então presidente, Florentino Fogueteiro, mesmo com a baixa nas vendas, continuava a ter prestígio. O texto relata como ele tinha clientes em outras capitais brasileiras e em países como Argentina, Uruguai e Paraguai. Além disso, recebia demandas, no mínimo, intrigantes. 

“Uma das encomendas mais curiosas este ano foi feita pelo prefeito de Fortaleza, que encomendou dois casais de Judas, com o detalhe de que as mulheres deveriam estar grávidas. Conforme explica Florentino, na queima de explosão dos bonecos, os filhos ´nascem´ forçosamente e são recolhidos pela população pra serem queimados no próximo ano. Continuando a tradição”. (A TARDE, 14/4/1990, p2). 

Edição de 14/4/1990 revela a importância
Edição de 14/4/1990 revela a importância |  Foto: Arquivo A TARDE
 

Riso sagrado 

 A Queima de Judas é um dos traços de como práticas religiosas diferentes podem coexistir mesmo que os participantes não racionalizem frequentemente sobre isso. Além disso, esse rito também aponta para o uso do humor em ambiente sagrado como forma de catequese por meio de uma catarse coletiva. 

Malhar Judas, o apóstolo que traiu Jesus e que, após o arrependimento se enforcou, em meio à galhofa é uma prática antiga no Brasil associada a formas de espantar o mal.  Em artigo publicado na edição de A TARDE de 16 de abril de 1960, a folclorista e escritora Hildegardes Vianna, que foi articulista do jornal por 39 anos, aponta como o boneco é associado ao demônio e, por isso, precisa ser exorcizado. 

“O povo confunde nas alegrias da Ressurreição a figura de Judas com a do diabo. Antigamente, como ainda hoje era costume ao romper da Aleluia, aos primeiros repiques de sino incensarem as casas, tocarem sinetas e matracas por todos os cômodos, despacharem a porta com água afugentando o demônio que não tendo onde ficar sossegado fugia para as profundas. Enquanto isto as crianças fartas do silêncio dos dias da Paixão expandiam-se batendo latas velhas atormentando a cabeça de Judas o causador execrado de toda a tragédia do Gólgota”. (A TARDE, 16/04/1960, p2). 

O folclorista Luís da Câmara Cascudo afirma em Dicionário do Folclore Brasileiro que o ato de queimar Judas era uma atividade popular em toda a Península Ibérica e que se espalhou rapidamente por toda a América Latina por conta da colonização portuguesa e espanhola. Segundo Câmara Cascudo, além da tentativa de expulsar o mal personificado no boneco, a prática guarda reminiscências das celebrações de passagem das estações realizadas por moradores dos campos. 

“Queimava-se um manequim representando o deus da vegetação. Pela magia simpática, o fogo é o sol, e o processo se destinava a garantir às árvores e plantações o calor e a luz indispensáveis, submetendo a figura ao poder das chamas. Com vários nomes, Homem da Quaresma, Jacques da Quaresma, Judas de Palha, Homem de Palha etc o sacrifício do mau apóstolo é uma convergência de tradições vivas no trabalho agrícola”. (Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, p. 417). 

O deboche como uma das formas de exorcizar o mal era bastante presente nas celebrações da Semana Santa e Páscoa na capital baiana. Em Procissões Tradicionais da Bahia, João da Silva Campos conta sobre a malhação do Gato da Misericórdia, personagem da Procissão de Fogaréus que acontecia no Centro Histórico de Salvador na Quinta-feira Santa: 

“À frente do cortejo ia a mó de capadócios, de moleques, de vadios, numa zoada de entontecer, apupando o “gato da Misericórdia”, lapidando-o, o que ensejava conflitos dos desclassificados com os policiais que resguardavam o homem das suas agressões, e com as pessoas atingidas pelas pedradas”. (Procissões Tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.125). 

Policiais e outras autoridades acabavam sendo atingidas por insultos e pedras dirigidas ao Gato da Misericórdia o que nos leva a considerar que eram realmente o alvo e o personagem apenas uma desculpa, numa espécie de catarse do descontentamento das mais variadas tensões do cotidiano experimentadas pela parte da população que, com base na descrição de João Campos, era a que vivia nas situações de exclusão. A situação chegou a tal perda de controle que, em 1872, segundo o autor, a procissão foi extinta.  

No caso da Queima de Judas os tumultos, geralmente, têm origem quando alguém não leva na brincadeira a herança apontada na leitura do testamento, mas este é mais um indício de como festas, mesmo as de fundo religioso, não podem ser encarceradas rigorosamente em categorias, sem uma certa flexibilidade. Uma penitência pode virar a explosão de uma alegria contida ou esta pode redundar em um protesto, mas o que fica patente é a riqueza das nuances das celebrações brasileiras.    

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDECedoc A TARDE. Confira mais conteúdo de A TARDE Memória, no Portal A TARDE, e em A TARDE FM.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia 

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