Reportagens traçam trajetória de um cientista persistente: Hideyo Noguchi | A TARDE
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Reportagens traçam trajetória de um cientista persistente: Hideyo Noguchi

Publicado sábado, 13 de março de 2021 às 08:52 h | Atualizado em 13/03/2021, 09:10 | Autor: Cleidiana Ramos
A TARDE noticiou trabalhos de Noguchi sobre combate à raiva | Foto: Arquivo A TARDE | 03.01.1914
A TARDE noticiou trabalhos de Noguchi sobre combate à raiva | Foto: Arquivo A TARDE | 03.01.1914 -

O trabalho de cientistas, especialmente diante de uma pandemia, como a atual de coronavírus, não tem pausas. Além da busca por cura e vacinas há a luta contra mutações, como as chamadas variantes, que atualmente são outras fontes de preocupação. Em 1923, A TARDE registrou a chegada a Salvador de um desses pesquisadores incansáveis: Hideyo Noguchi, que dedicou sua vida à perseguição do que acreditava ser o agente causador da febre amarela, mas também deu contribuições às descobertas relacionadas ao combate à raiva e à sífilis.  

Japonês, Noguchi se tornou pesquisador da Fundação Rockfeller, organização fundada em 1913 para o financiamento de estudo e pesquisas no campo da saúde. A organização foi criada com fundos da poderosa e rica família norte-americana que fez fortuna a partir da exploração de petróleo. No Brasil, a Rockfeller passou a atuar em 1916 e foi estabelecendo bases mais sólidas até 1942. A TARDE noticiou a chegada de Noguchi na edição de 29 de novembro de 1923: 

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Em reportagem há citação de pesquisa de Hideyo Noguchi | Foto: Arquivo A TARDE

“O vapor Parahyba, do Lloyd Brasileiro, apesar de navio misto, trouxe passageiros de destaque para este porto. Esperado durante todo o dia de hontem só entrou à noite, em hora que não podia ser mais visitado, ficando ao largo. Ao amanhecer, cumpridas as formalidades, desembarcaram os drs. Joseph White, americano, chefe da "Rockfeller" no Brasil; Hideyo Noguchi, sábio japonez, cujos estudos sobre a febre amarella são célebres; Henry Muller, médico americano; J. Thomaz Alves, médico do Departamento Nacional de Saúde Pública; Harold Richardson, médico americano e senhora; José Figueirôa, médico mexicano. Todos estes médicos teem se especializado no combate à febre amarella e vêm completar na Bahia o estado-maior da Rockfeller Foundation que vae atacar corajosamente o terrível mal na capital e interior” (A TARDE, 29/11/1923, capa).   

A febre amarela, mais comum em regiões de clima tropical, assustou também a Europa e os EUA devido a fenômenos como a colonização. Por conta dos desdobramentos das ações expansionistas das grandes potências para manter algumas das suas colônias ainda no século XX, especialmente nos continentes africano e asiático, as pessoas circulavam intensamente entre as diferentes regiões do mundo. A febre amarela é uma arbovirose porque o vírus que a causa tem um mosquito, o Aedes aegypti, como hospedeiro. É o mesmo vetor para a transmissão da dengue, chikungunya e zika. No Brasil, o controle da febre amarela ocorreu a partir do pioneiro e intenso trabalho de Oswaldo Cruz (1872-1917). 

A infecção por febre amarela pode ser assintomática ou com sintomas repentinos: febre alta, calafrios, cansaço, dor de cabeça, náuseas, vômito e dor muscular por três dias. Na forma mais grave, o doente melhora, geralmente, por dois dias, mas pode apresentar insuficiência hepática e renal, icterícia, hemorragias e cansaço com risco de morte no período de uma semana a dez dias. 

“Acredita-se que a febre amarela chegou a Salvador em 1849, trazida por um navio oriundo de New Orleans, quando irrompeu uma grande epidemia da doença no estado. A febre amarela se juntou a outras doenças que também tinham caráter epidêmico, como a varíola e o cólera, alternando entre períodos endêmicos e outros, epidêmicos”, explica Ricardo dos Santos Batista, doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pós doutorando na Faculdade de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP).  

Autor de livros como Sifílis e reforma da saúde na Bahia,  Mulheres livres: uma história sobre prostituição, sífilis, convenções de gênero e sexualidade, e das coletâneas, Quando a história encontra a saúde e História e Saúde: políticas, assistência, doenças e instituições na Bahia, Batista está organizando, em conjunto com o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Azemar dos Santos Soares Júnior, o I Seminário de História da Saúde e das Doenças no Nordeste do Brasil. O encontro vai reunir, de 28 a 30 de abril, em conferências online, pesquisadores do Nordeste para debater, por meio da historiografia, as experiências sociais com saúde e doença em um contexto de pandemia. 

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Reportagem publicada em A TARDE mostra papel do cientista | Foto: Arquivo A TARDE

O sábio

Na edição de 30 de novembro de 1923, A TARDE apresentou melhor uma das estrelas da comitiva: Hideyo Noguchi. O texto usa termos como “sábio” e “célebre” para se referir ao  bacteriologista. A reportagem também informa sobre as suas experiências em outros locais, como o Peru, e a sua disposição para realizar pesquisas em ambientes com climas diferentes. 

De acordo com Ricardo Batista, ao longo da segunda metade do século XIX, a bacteriologia havia começado a identificar os micro-organismos como causa de determinadas doenças substituindo a tendência de apontar fluidos circulando pelo ar, principalmente os que causavam mau cheiro, como responsáveis pela contaminação. Ocorreu a substituição das explicações “miasmáticas” para a atenção aos vetores que atuam como hospedeiros.     

“Em 1881, o epidemiologista cubano Carlos Juan Finlay apresentou um trabalho que indicava a possibilidade de o Aedes aegypti ser o responsável pela transmissão da febre amarela. Devido ao caráter endêmico da febre amarela na Bahia, que eventualmente se tornava em epidêmico, Noguchi, que acreditava ter descoberto o agente causador da febre amarela, o leptospita icteróides, escolheu o Nordeste, em especial Salvador, para tentar isolar esse agente e comprovar a sua teoria”, completa Batista.

Antes do seu desembarque em Salvador, Hideyo Noguchi já havia recebido destaque em outras reportagens de A TARDE. Na edição de 3 de janeiro de 1914 ele é citado como autor de uma descoberta para diagnóstico e possível tratamento da raiva. Seis anos depois, em 1º de outubro de 1920, o jornal noticiou que o cientista japonês estava trabalhando em um soro destinado ao tratamento contra a febre amarela.  

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Edição destaca desembarque da comitiva de cientistas | Foto: Arquivo A TARDE

Outro achado

As pesquisas de Noguchi acabaram relacionando-se com uma outra doença que também preocupava a Bahia: a leptospirose. Essa doença impõe o debate sobre a importância do saneamento básico, assim como a febre amarela, afinal a falta desse benefício favorece a proliferação de um dos seus vetores: ratos. 

“Noguchi acreditava que a leptospirose, conhecida como doença de Weil, não era a mesma doença causada pelo agente que ele descobriu. Naquele momento, muitas doenças ainda não tinham seus agentes etiológicos diagnosticados, muito menos a sua cura. Mesmo assim, pesquisas como a de Noguchi, que não estava correta em relação ao agente transmissor da febre amarela, não podem ser ignoradas nem reduzidas em importância”, avalia Ricardo Batista. 

O historiador aponta que, mesmo não tendo conseguido êxito no principal motivo da instalação do seu laboratório de pesquisa na Bahia, que era isolar o agente da febre amarela, suas pesquisas auxiliaram o entendimento da necessidade de enfrentamento à doença de forma coordenada para além de cada país.  “Incialmente as medidas adotadas eram as quarentenas dos navios, para conferir se havia alguém infectado durante alguns dias. Aos poucos, tornaram-se necessárias conferências sanitárias internacionais e ações coordenadas como aquelas desenvolvidas pela filantropia da Fundação Rockefeller, que também tinha interesse em ampliar a sua esfera de influência de forma global”, completa Batista. De acordo com ele, foram avaliações nesse sentido que resultaram, por exemplo, na instituição da Organização Mundial de Saúde (OMS). 

Além disso, a passagem de Noguchi foi importante para a troca de experiências e aprimoramento da formação de pesquisadores baianos. “Médicos como Octavio Torres, principal discípulo de Noguchi na Bahia, Enoch Torres e Eduardo Araújo foram contemplados com bolsas de financiamento da Fundação Rockefeller para estudarem na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Octavio Torres continuou a interagir com Noguchi nas pesquisas que desenvolveu no laboratório da Fundação Rockefeller em Nova Iorque. Essa interação médica foi de grande importância para as trocas de conhecimento”, acrescenta Ricardo Batista. 

Homenagens

O reconhecimento a essas contribuições ficou marcado em homenagens continuadas ao pesquisador que foram registradas por reportagens de A TARDE. Na edição de 6 de junho de 1929, um texto destacou a sessão, devido a um ano de morte de Noguchi, realizada por membros do Instituto Oswaldo Cruz na Bahia. Na aula inaugural do curso de Patologia Geral, na Faculdade de Medicina na Bahia, Octávio Torres também fez um registro, de acordo com o jornal. Hideyo Noguchi morreu em Acra, capital de Gana, em 1928, por complicações da febre amarela. 

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Texto traz notícias sobre homenagem a Hideyo Noguchi | Foto: Arquivo A TARDE

Em 1997, A TARDE publicou mais uma homenagem: uma solenidade realizada na Famed para celebrar a memória do pesquisador. A lista de instituições envolvidas no evento dá uma dimensão do reconhecimento que ele sedimentou com a passagem de pouco mais de um ano pela capital baiana:    

“O cientista e médico japonês Hideyo Noguchi, que realizou pesquisas na Bahia na década de 20, com professores da Faculdade de Medicina, terá sua memória homenageada com sessão solene realizada no saIão nobre da Faculdade de Medicina do Terreiro, no próximo dia 8, às 20 horas, sendo oradores o professor Zilton Andrade, da Famed, e o professor Roberto Badaró,  pelas associações japonesas. A festa é promovida conjuntamente pela Faculdade de Medicina da UFBA, Academia de Medicina da Bahia, Escola Bahiana de Medicina, Consulado Geral do Japão no Nordeste, Consulado do Japão na Bahia, Associação Cultural Brasil-Japão,  Associação Nipo-Brasileira de Salvador e Federação Cultural Nipo-Brasileira do Estado da Bahia”. (A TARDE, 9/4/1997, p.6).  

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Famed e associações culturais japonesas reverenciam Noguchi | Foto: Arquivo A TARDE

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. 

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. 

Para saber mais: I Seminário de História da Saúde e das Doenças no Nordeste do Brasil. Data: 28 a 30 de abril de 2021, em ambiente online. Inscrições: https://www.even3. com.br/ historiasaudenordeste

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