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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 06 de maio de 2023 às 6:45 h | Autor:

Rito destinado a viúvas indica forte presença do povo cigano na Bahia

Texto publicado em 1919 reitera aspectos da antiguidade cigana em Salvador

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Casamento e batizado cigano
Casamento e batizado cigano -

Na edição de 5 de novembro de 1919, A TARDE contou a história de uma cerimônia que identificou como necessária para que viúvas ciganas pudessem estar preparadas para um novo relacionamento. Além desse rito também houve, segundo a reportagem, um casamento e um batizado com festas que são comparadas, pela fartura da comida servida, às realizadas para São Cosme e São Damião. Embora tenha algumas informações aparentemente equivocadas do ponto de vista étnico, a reportagem dá uma dimensão da visibilidade para uma das culturas com forte presença no território baiano: a cigana. No Brasil, em 24 de maio, comemora-se o Dia Nacional dos Ciganos desde 2006.

O texto da reportagem de 1919 coloca os ciganos como contemporâneos da fundação de Salvador e ocupantes importantes da região da Mouraria, embora em alguns momentos os definam como judeus. No texto chega a ser contado o mito de Ashaverus, o Judeu Errante, condenado a vagar pela terra até a volta de Jesus, como introdução para os acontecimentos que serão narrados. Já em outro trecho há a informação de que o batizado, o casamento e rito de passagem da viúva foram oficiados por um padre. São alguns equívocos aparentes que atestam o desconhecimento sobre esses povos que é vigente ainda hoje.

Acervo fotográfico de A TARDE tem vários registros sobre cotidiano e tradições ciganas.
povos ciganos
Acervo fotográfico de A TARDE tem vários registros sobre cotidiano e tradições ciganas. povos ciganos | Foto: Cedoc A TARDE

Segundo a reportagem, o grupo estava em Salvador há dois meses devido a perseguições que havia sofrido no sul do país. Os visitantes foram alvo de diversos boatos, especialmente o de que traziam uma grande fortuna em ouro.

Mas foram as três celebrações que transformaram o grupo em notícia de A TARDE especialmente o rito apresentado como necessário para que uma viúva deixasse esse estado para se tornar apta a poder casar-se novamente. No texto há a afirmação de que ela chorava, possivelmente ao lembrar do marido morto, mas também sorria com a perspectiva de logo ter uma nova companhia.

Cigano da etnia Calon, o doutor em Ciências Biológicas e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Jucelho Dantas, não conhece entre as etnias presentes no Brasil um rito como o descrito na reportagem.

“Entre os povos ciganos presentes na Bahia eu desconheço um rito de passagem para as viúvas. Havia um resguardo para as ciganas viúvas que há muitas décadas era bem rigoroso: elas cortavam o cabelo, vestiam preto e ficavam assim para o resto da vida. Não mais se casavam e passavam a cuidar dos filhos, dos idosos e dos sobrinhos. Hoje é bem diferente. As ciganas que ficam viúvas já não cortam mais o cabelo e nem tampouco vivem vestidas com roupas escuras”, acrescenta.

A afirmação de que o grupo estava de passagem reitera a avaliação do professor Jucelho Dantas de que ele poderia ser formado por ciganos de outros países com práticas culturais diferentes das comunidades que já estavam fixadas no Brasil. Mas a mobilidade e a antiguidade em território baiano, como é destacado na reportagem ao afirmar que eles estão desde a fundação da cidade, é resultado, infelizmente, de um histórico de perseguição a esses povos.

“Os ciganos começaram o seu processo migratório por volta do ano mil quando foram expulsos da Índia por determinadas castas. Isso se repetiu em outras eras na Europa e quando começaram os processos de colonização, como o de Portugal em relação ao Brasil, eles vieram muitas vezes como resultado de degredo”, conta o professor.

Diversidade

Segundo o professor Jucelho Dantas, os povos ciganos pertencem a três grandes grupos: o Rom, que tem como língua o romani; o Calon, que fala o chibe; e o Sinte, cujo idioma é o sintô. O povo Rom é o majoritário no mundo, mas no Brasil predomina o grupo Calon. “Posso afirmar que 95% dos ciganos nordestinos são da etnia Calon. Existem outros segmentos dos povos ciganos espalhados pelo mundo que reivindicam o reconhecimento para as suas etnias, embora em grupos menores”, diz.

Ainda há poucas informações mesmo sobre grupos majoritários como o dos Calon. Tanto que uma das reivindicações das lutas ciganas é para que haja um censo que responda a questões básicas sobre o número de pessoas ciganas, onde estão em território baiano e quais as suas principais atividades. “Eu costumo dizer que nós ciganos não queremos um sol e uma lua particular para nós. Queremos ser tratados como pessoas que compõem a sociedade brasileira. De modo geral o que os ciganos brasileiros reivindicam é cidadania com direito a moradia, a saneamento básico e educação”, completa.

Ter informações sobre um dos povos tradicionais presente nas mais variadas regiões da Bahia é um instrumento para o desenvolvimento de políticas públicas, mas também pode ser uma arma de combate às violências originadas pela persistência do racismo. Os ciganos continuam vítimas das mais variadas perseguições, inclusive policiais, de acordo com Jucelho Dantas.

“Tivemos episódios de ações policiais extremamente violentas como a que resultou na morte de oito irmãos em Vitória da Conquista e um outro episódio parecido em Jeremoabo. No sul do país, durante a pandemia, os ciganos em trânsito por municípios foram impedidos de acampar por prefeituras com a alegação de que estavam doentes e iam transmitir o vírus. Em Alagoinhas um grupo foi impedido de entrar numa churrascaria só por ser formado por ciganos. São muitos os episódios de preconceito explícito”, relata o professor.

O preconceito e a intolerância impedem o que poderiam ser trocas culturais mais intensas para reforçar a já preciosa diversidade baiana. Na reportagem de A TARDE de 1919, por exemplo, o repórter não consegue conter a sua admiração pela festa. Sem conseguir definir com precisão os elementos que a compõem usa o recurso de comparação com os festejos para São Cosme e São Damião e São Crispim e São Crispiniano, celebrações já associadas às heranças africanas de cultos para divindades e encantados infantis. Possivelmente, o que o fez estabelecer a relação foi a fartura dos alimentos servidos.

Capa de A TARDE com pautas sobre os ciganos
Capa de A TARDE com pautas sobre os ciganos | Foto: Cedoc A TARDE

De acordo com o relato, após os ritos religiosos um banquete foi oferecido com um cardápio formado por perus assados; quatro leitões preparados no forno e galinhas acompanhadas por um molho que exalava um cheiro convidativo. A variedade nos tipos de pães fez o repórter comparar o serviço ao de uma padaria. Outro destaque dado por ele foi para a oferta de bebidas.

“Chopps, seis barris; cerveja em garrafas, doze caixas; afora a miuçalha incontável de vinhos, licores, etc. De Santo Amaro, authentica de Meieira Grande, apenas um décimo”. (A TARDE, 5/11/1919, capa).

É uma pena que ainda no século XXI, grupos culturais tão antigos na Bahia necessitem viver em estado de ativismo permanente para fazer valer o princípio que deveria ser de entendimento básico: o respeito às suas contribuições para o conjunto do que identificamos como uma nação comum a todos.

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