Salvador é celebrada pela força das águas
A proximidade da baía foi decisiva para a escolha da primeira capital brasileira
A fundação de Salvador completou nesta sexta-feira, 30, 475 anos. A criação da cidade foi um passo decisivo nos novos rumos que Portugal adotou para a exploração da sua única colônia nas Américas. Muitos fatores estiveram conectados, mas as águas desempenharam um papel fundamental nessa história especialmente as que formam a Baía de Todos-os-Santos. Além dela, outros mananciais como o Dique do Tororó, a Lagoa do Abaeté e o Parque São Bartolomeu só aumentam a beleza da cidade e inspiram as mais diversas criações artísticas. Os registros desse patrimônio natural integram as diversas coleções imagéticas do Cedoc A TARDE.
A Baía de Todos-os-Santos passou a ser conhecida na Europa a partir de uma expedição realizada em 1501 que a batizou dessa forma por conta da festa católica realizada em 1º de novembro, dia em que ela foi avistada. Conhecida por suas águas tranquilas, tem uma superfície de 1.223 km² e estão a ela integradas as baías de Aratu e Iguape. É a segunda maior baía do Brasil. A primeira é a de São Marcos, localizada no Maranhão.
Dois importantes rios para as histórias de formação do território baiano deságuam no território entrecortado pela Baía de Todos-os-Santos: Jaguaripe e Paraguaçu. No seu interior estão 56 ilhas. A maior é a de Itaparica. Além de Salvador, Cachoeira, São Francisco do Conde, Saubara, dentre outros, formam um grupo de 14 municípios conectados por suas águas.
Antes dessa ocupação europeia, a Baía já tinha uma importância central para os povos indígenas. Ela foi chamada, por exemplo, de Kirimurê, considerada sempre como um grande patrimônio material e simbólico por conta do volume das águas e extensão da costa.
Potencialidades
Quando desembarcou na Vila do Pereira, nas imediações do hoje Porto da Barra, Tomé de Souza, avaliou que a tranquilidade das águas e facilidade de atracamento do local inviabilizava um dos principais objetivos para a construção da cidade: a defesa. Dessa forma, um sítio alto, além da proximidade com água potável, levou à escolha do hoje Centro Histórico especialmente do perímetro entre o monumento a Castro Alves e o fim da Ladeira do Pelourinho.
“A cidade do Salvador foi a primeira fundada nas terras do Brasil. Antes de 1549 existiam vilas, das quais são exemplos as que foram criadas nas capitanias ao longo da costa. É certo que nenhuma delas possuiu a categoria de cidade”. (História da Bahia, Luís Henrique Dias Tavares, p.118).
O posto de capital da mais valiosa colônia portuguesa, que deteve até 1763, fez de Salvador um centro urbano desde a sua origem. Além dos mananciais naturais, como o que foi represado e se transformou no Dique do Tororó, as cachoeiras do hoje Parque São Bartolomeu, a Lagoa do Abaeté, dentre outros, a cidade, especialmente no Centro Antigo, é marcada pelas fontes.
E o mar, como não poderia ser diferente, ganhou destaque. O lazer mais acessível para a quase totalidade dos moradores da cidade é a ida à praia. Com uma orla que se estende tanto pela Cidade Alta como a Cidade Baixa, Salvador é um dos destinos turísticos mais procurados por brasileiros e estrangeiros. Os artistas não se cansaram de enaltecer essas belezas.
Dorival Caymmi (1914-2008) cantou a beleza dessa cidade que descansa à beira do mar, mas também os habitantes mais próximos dessa vida das águas, como os pescadores.
“O mar quando quebra na praia/É bonito, é bonito/O mar... pescador quando sai/Nunca sabe se volta, nem sabe se fica/Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos/Nas ondas do mar”. (O Mar, Dorival Caymmi).
Beleza
Caymmi foi, talvez, o primeiro músico baiano com protagonismo na indústria cultural de massa nas primeiras décadas do século XX no campo da música. Tanto que na trilha sonora de uma produção dos estúdios Disney sobre a América Latina, The Three Caballeros, de 1944, a composição de Caymmi Você já foi à Bahia faz um animado Pato Donald saracotear ao lado de Zé Carioca.
As águas do mar e o culto a Iemanjá são protagonistas do romance Mar Morto, de Jorge Amado (1912-2001), mas em Bahia de Todos os Santos- Guia de Ruas e Mistérios, os elogios a Salvador e suas belezas foram mais eloquentes:
“Ah! Se amas a tua cidade, se tua cidade é Rio, Paris, Londres, ou Leningrado, Veneza de canais ou Praga de velhas torres, Pequim ou Viena, não deves passar por essa cidade da Bahia, porque um novo amor encherá teu coração. Esplêndida cidade, noiva do mar, senhora do mistério e da beleza. Nesse mar habita Iemanjá, a dos cinco nomes, e o misterioso chamado dos atabaques ressoa na noite dos casarões sob a lua, das igrejas de ouro, das ladeiras grávidas de passado. O mistério e a beleza da cidade te envolverão, darás teu coração para jamais; jamais poderás esquecer a Bahia, o óleo de sua beleza densa te banha, sua mágica realidade te perturbou para sempre”. (Bahia de Todos os Santos-Guia de Ruas e Mistérios, Jorge Amado, pp-126-127).
Caymmi e Jorge Amado celebraram o mar e a sua protetora, Iemanjá. Já o compositor e poeta, Gerônimo Santana, se lembrou do quanto de água doce também está presente na cidade. Ao lado de Vevé Calazans, ele compôs É d´Oxum, canção que aponta as filhas e filhos de Salvador como consagrados à soberana das fontes e cachoeiras.
“Nessa cidade todo mundo é d´Oxum/Homem, menino, menina mulher/ Toda essa gente irradia magia/presente na água doce/presente na água salgada e toda cidade brilha/Seja tenente ou filho de pescador/ou importante desembargador/Se der presente é tudo uma coisa só/ A força que mora n´água não faz distinção de cor/E toda cidade brilha”. (É d´Oxum- Gerônimo Santana e Vevé Calazans).
A música, a literatura, mas também outras linguagens artísticas, como a fotografia, têm tido o privilégio de traduzir esse encanto que Salvador consegue manter ao se render tão profundamente às águas que a circundam. É por elas que a capital dialoga com regiões mais distantes a partir do Paraguaçu, Jaguaripe e Subaé. Por elas, Salvador reina sobre o território baiano, que se expandiu à custa de ferro, fogo e sangue, mas também foi testemunha das resistências de indígenas, quilombolas, africanos e seus descendentes que a reivindicaram, enriqueceram e a tornaram Roma Negra. Esse é um conceito de Mãe Aninha de Xangô, a fundadora do Afonjá e é tão perspicaz, mágico e cheio de camadas como soube e sabe ser essa Cidade da Baía, Kirimurê de todos os Inquices, Orixás, Voduns, Santos e Encantados.