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Salvador foi cogitada como sede de filial do Instituto Butantan

Segundo reportagem publicada por A TARDE em 1921, unidade seria instalada na Faculdade de Medicina da Bahia

Publicado sábado, 02 de abril de 2022 às 06:02 h | Autor: Cleidiana Ramos* | [email protected]
Bahia foi apontada como local para atividades de uma filial do Butantan especialmente na pesquisa sobre  cobras
Bahia foi apontada como local para atividades de uma filial do Butantan especialmente na pesquisa sobre cobras -

O dia 17 de janeiro de 2021 foi especial para milhões de brasileiros. Nessa data a enfermeira Mônica Calazans recebeu a primeira dose da vacina aprovada contra o coronavírus na atual pandemia. Desenvolvida no Brasil por meio de uma parceria entre o Instituto Butantan e a empresa chinesa Sinovac Biotech, a Coronavac trouxe esperança em um cenário de pavor e onda de mortes devido à Covid-19.  Essa conquista atualiza a importância do Butantan, uma das principais instituições brasileiras dedicadas à pesquisa científica para, dentre outras atividades, garantir o desenvolvimento de vacinas. O Butantan também é conhecido pelo seu departamento de produção de soro contra picada de cobras e outros animais peçonhentos.  Foi essa a sua característica mais enfatizada na tentativa de abrir uma filial do instituto na Bahia noticiada por A TARDE em 1921.   

Segundo o texto publicado na edição de 2 de março daquele ano, a instalação de uma filial do Instituto Butantan em Salvador estava praticamente certa. A Faculdade de Medicina da Bahia iria acolher a unidade e ceder equipamentos e o acervo equivalente que tinha. Nesse período, Afrânio Pompílio Bransford do Amaral, paraense, mas formado na faculdade de medicina baiana dirigia a instituição paulista. O anúncio de que Salvador poderia ganhar uma filial do Butantan foi durante uma visita que Amaral fez a Salvador. 

“— Além do desejo natural de rever a Bahia e visitar a minha família, — disse-nos o dr. Afrânio Amaral, — a minha viagem prende-se à fundação de um posto ou filial na Faculdade de Medicina, em cuja mira já há muito trabalho feito, prometendo o melhor êxito”. (A TARDE 2/3/1921, capa).   

De acordo com a reportagem, a Faculdade de Medicina iria viabilizar um serpentário e dependências no setor de História Natural, além de um pequeno museu com exemplares de serpentes venenosas e não venenosas em amostras já classificadas. 

“No museu haverá também peças demonstrativas da organização do aparelho dentário de diversas espécies de cobras no Brasil, além de alguns utensílios indispensáveis à captura das cobras, como sejam laço, ganchos, caixas, etc”. (A TARDE  2/3/1921, capa).  

O texto assegura que a iniciativa contava com o apoio do governo do Estado, então chefiado por José Joaquim Seabra. A contrapartida negociada incluía o transporte de materiais em linhas da ferrovia ou de navegação de forma gratuita e passe livre para funcionários a serviço do Butantan.  

“Far-se-á o estudo das nossas cobras, levantando-se a lista das espécies existentes, organizando-se um mappa sobre a sua distribuição geographica, cousa que entre nós começou a ser feita por scientistas estrangeiros e nunca foi alcançada por patríciosnossos. Organizar-se-á depois um pequeno laboratório para trabalhos sobre venenos, e, mais tarde, tentar-se-á fazer aqui mesmo o preparo dos soros anti-ophídicos”. (A TARDE, 2/3/1921, capa). 

Projeto 

A reportagem apresenta um panorama que deixa como ação para ser efetivada em poucos dias a inauguração da filial baiana do Instituto Butantan: 

“O Posto, que será dentro de poucos dias inaugurado, irá gradativamente desenvolvendo a sua esphera de acção e começará a distribuir gravuras e explicações sobre o processo de capturar cobras vivas e acondicioná-las para despacho e depois enviará aos fazendeiros, criadores, sitiantes, etc, que as pedirem, laços apropriados ou informações sobre o modo de os fabricarem,rótulos para despacho das caixas e enveloppes para remessa dos conhecimentos de despacho” (A TARDE 2/3/1921, capa). 

O projeto parece não ter se concretizado mesmo com a afirmação de que a abertura do posto seria realizada em alguns dias. Nas edições seguintes não há informações sobre o que ocorreu em relação ao projeto de abertura da filial baiana do Instituto Butantan, mas há um indício de como a Bahia tinha visibilidade na rota da pesquisa científica no Brasil. O terceiro diretor do Instituto Butantan, por exemplo, foi o médico baiano Artur Neiva, no período de 1919 a 1921, quando foi sucedido por Afrânio do Amaral. 

Em 1906, Neiva começou a trabalhar com Oswaldo Cruz no Instituto Soroterápico, que hoje é a Fundação Oswaldo Cruz e desenvolveu, no Brasil, a vacina Aztrazeneca. Este é o imunizante contra o coronavírus produzido pela Universidade de Oxford. Artur Neiva também participou da campanha de combate à malária em 1912 e atuou em institutos de outros países como a Argentina. Neiva dirigiu o Serviço Sanitário do estado de São Paulo e no primeiro governo de Getúlio Vargas foi interventor federal na Bahia. 

“As instituições de pesquisa não existiram apenas no eixo sudeste. Na Bahia, o governador Joaquim Manoel Rodrigues Lima (1892-1896) já havia promulgado a legislação sanitária de 1892, que criou a Inspetoria de Higiene, o Instituto Vacínico e transformou o Conselho de Salubridade em Conselho Geral de Saúde Pública”, aponta Ricardo Batista, doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), com estágio de pós-doutorado na Casa de Oswaldo Cruz e na Faculdade de Medicina Preventiva da USP. 

De acordo com Batista essas ações de incentivo às instituições de pesquisa na Bahia continuaram no governo de Luiz Viana que reformou os serviços sanitários estaduais e no governo de Severino Vieira com a implantação da Inspetoria Geral de Higiene, que possuía soba sua gerência o Instituto Bacteriológico e o Laboratório de Análises Químicas e Bromatológicas. “No governo de José Joaquim Seabra (1912-1916) foi inaugurado o Instituto Oswaldo Cruz da Bahia (IOC-BA)”, completa o historiador. 

De acordo com Batista, alguns autores questionam por que a Bahia, que tinha uma sólida tradição no ensino das ciências médicas por conta da Faculdade de Medicina, não sediou instituições científicas como os institutos Oswaldo Cruz e Butantan que são da primeira metade do século XX. Uma das explicações aponta para uma tendência conservadora no ensino e repulsa por princípios como o da bacteriologia, que é o estudo da ação das bactérias especialmente como causa de doenças.   

Para Ricardo Batista, a alta interação dos médicos baianos com a pesquisa científica realizada em outros centros e o acompanhamento sistemático que faziam de publicações de relevância os levava, geralmente, a ocupar posições de destaque, mas em outros estados. 

“Se analisarmos onde alguns dos médicos baianos ou formados na Faculdade de Medicina da Bahia estavam talvez as coisas fiquem mais nítidas: Clementino Fraga, Artur Neiva, Belisário Penna, Martagão Gesteira, Juliano Moreira, dentre outros, foram convidados por instituições do Rio de Janeiro e de São Paulo, ocupavam cargos de destaque como A TARDE demonstra no exemplo de Amaral, e, portanto, não lideravam instituições científicas na Bahia. O desfalque de toda essa massa intelectual não podia ser sanado com apenas a criação de uma filial do Butantan”, acrescenta o historiador. 

Proposta

A notícia mais contundente sobre a abertura de uma filial do Butantan em Salvador foi publicada em 1921, mas seis anos antes o jornal fez referência a algumas possibilidades nesse sentido.  Na edição de 28 de junho de 1915, uma reportagem contava detalhes da excursão do médico João Florêncio de Salles Gomes pela Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo para recolher amostras de répteis. 

Ao afirmar que pretendia retornar à Bahia para uma nova coleta, Salles Gomes mencionou a possibilidade de abertura de um posto para remessa de cobras para São Paulo. Os exemplares seriam usados nas atividades do Butantan. 

“Elle (o posto)  deverá ser fundado de accordo com o governo federal ou estadoal.Um dos eslabelecimentos: Faculdadede Medicina ou Inspectoria Agrícolaou Directoria do Agricultura doEstado poderá sera sede do posto.Elle servirá apenas para receber,dos agricultores do Estado, as cobrase transmiti-las ao ´Instituto´, como fazem os agricultores em S. Pauloque nos transmittem anualmente cerca de cinco mil cobras”. (A TARDE 28/6/1915, capa). 

Em dezembro do mesmo ano, A TARDE voltou a fazer referência a uma filial do Butantan na capital baiana ao denunciar o crescimento de mato na área de recreio do Ginásio da Bahia e o risco que havia para os estudantes. A própria instituição foi apontada como uma boa sede para o projeto. 

Não consegui localizar nesta pesquisa os motivos que inviabilizaram a criação da unidade baiana do Instituto Butantan, mas ela abre as perspectivas para perceber como esse registro do cotidiano feito pelos jornais pode ser precioso para reunir fragmentos de novas histórias. Neste caso é mais um indício da relevância da Bahia como local da pesquisa científica no campo da medicina.     

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Confira mais conteúdo de A TARDE Memória, no Portal A TARDE, e em A TARDE FM.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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